O gira e gira e volta a girar do Processo Civil
Apostar num processo civil mais moderno e eficaz é, portanto, apostar numa justiça melhor. Mas é fundamental o compromisso com alguma consistência e estabilidade legislativa.
Em antecipação do previsível aumento da pendência judicial em resultado do contexto pandémico, foi apresentada pelo Governo a Proposta de Lei n.º 92/XIV/2, que visa alterar, entre outros diplomas, o Código de Processo Civil.
Entre algumas propostas importantes, destaca-se a possibilidade de ser prestado depoimento por escrito, independentemente do acordo das partes nesse sentido, pela testemunha com conhecimento dos factos, por virtude do exercício das suas funções. Aliás, como incentivo, prevê-se a redução das custas do processo a metade, quando todos os depoimentos sejam reduzidos a escrito. As formalidades a observar e a possibilidade de renovação do depoimento na presença do juiz (por iniciativa deste ou a requerimento da contraparte) são suficientes para afastar um qualquer preconceito quanto à menor genuinidade de um tal depoimento e paternalismo excessivo em relação a juízes treinados e experientes para averiguar a credibilidade do depoimento nas suas diversas manifestações. Como já tinha escrito no passado, os depoimentos escritos – previstos hoje de forma subsidiária e dependendo do acordo das partes – poderão ser uma via para imprimir celeridade à tramitação do processo (abreviando em particular a duração da fase do julgamento), estando já testados com sucesso em processos arbitrais.
A utilização de testemunhas-perito (já comum e importante, mas não formalizada e, portanto, sempre objeto de alguma insegurança jurídica quanto aos termos da sua admissibilidade) e a clarificação dos pressupostos da impugnação de matéria de facto em sede de recurso de apelação são também alterações importantes.
Outras modificações propostas mostram-se, contudo – e no mínimo precipitadas -, também à custa da reversão de soluções muito recentes, colocando-se consequentemente em crise a segurança e consistência da prática processual civil.
Paradigmática é a revogação da possibilidade, que vigorava desde janeiro de 2020, de o recurso de revisão ser interposto quanto à decisão que padece de um erro judiciário. Tal revogação repristina, assim, a discussão sobre o facto de a Lei da Responsabilidade Civil Extracontratual do Estado fazer depender a responsabilidade por erro judiciário da prévia revogação da decisão errada, quando tal revogação não se mostre possível por via de recurso ordinário. Tal como escrevi à data, a utilização do recurso de revisão para o efeito não era isenta de críticas, mas a revogação, sem mais, desta tão recente possibilidade não é menos criticável.
Também a restrição das hipóteses em que há lugar a audiência prévia não parece acertada: este é o primeiro encontro entre partes e juiz e permite, sem a pressão dos ritos do julgamento, que se discuta o objeto do processo, com efeitos práticos importantes para uma tramitação mais eficaz do processo. E uma vez que não há, nessa sede, lugar a produção de prova, era fácil prever que esta diligência se realizasse, por definição, por meios telemáticos, sem qualquer necessidade de deslocação dos intervenientes ao Tribunal, o que é (portanto, sem sentido) apontado na Proposta de Lei como a razão para ser revista a obrigatoriedade de realização da audiência prévia.
Por outro lado, há a lamentar que esta proposta importe poucos ensinamentos da litigância em contexto pandémico, por exemplo no que se refere à possibilidade de inquirição de testemunhas por videochamada (webex ou skype), antes continuando a obrigar as mesmas a se deslocarem a um Tribunal ou edifício público (neste caso, com dificuldades acrescidas de planeamento) para prestar depoimento.
A demanda civil é a resposta à violação (ou ameaça de violação) de um direito legal ou contratual (e isto inclusive independentemente de tal violação poder também consubstanciar um ilícito criminal), e as regras do processo civil são supletivamente aplicáveis, por exemplo, ao processo penal, laboral e administrativo. Apostar num processo civil mais moderno e eficaz é, portanto, apostar numa justiça melhor. Mas é fundamental o compromisso com alguma consistência e estabilidade legislativa.
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