É isto que separa governo, patrões e sindicatos no trabalho digno

O Governo levou 64 propostas aos parceiros sociais no âmbito da agenda do trabalho digno. Sindicatos e patrões já fizeram saber as suas opiniões e de ambos os lados ouvem-se críticas.

Depois de vários meses a discutir o futuro do trabalho, o Governo levou aos parceiros sociais seis dezenas de propostas que dão corpo a algumas das principais reflexões que vinham sendo feitas, nomeadamente no que diz respeito ao teletrabalho, à negociação coletiva e às plataformas digitais. Sindicatos e patrões já responderam com os seus pareceres, ouvindo-se agora críticas às posições do Executivo de ambos os lados.

Da parte dos representantes dos trabalhadores, a principal exigência é que o Governo vá mais longe e que integre outras questões — como os salários e a eliminação das normas introduzidas durante o período da troika — no pacote a que chamou de “agenda do trabalho digno e valorização dos jovens no mercado de trabalho”. A CGTP, cujo parecer não foi divulgado, considera que as propostas do Executivo, como estão, são “meros paliativos“. Isso “na melhor das hipóteses”, já que estão longe de atacar “a raiz do problema”, sublinha a central sindical de Isabel Camarinha, em comunicado. E a UGT lembra que há medidas do acordo de 2018 — que deu azo à revisão laboral de 2019 — ainda por cumprir.

Já da parte dos patrões, pede-se mais flexibilidade e critica-se as propostas que oneram as empresas com mais custos e mais obrigações burocráticas. A Confederação do Comércio e Serviços de Portugal (CCP) diz, por exemplo, que ter a Autoridade para as Condições do Trabalho (ACT) a travar os despedimentos é “uma extravagância” que não será justificada pós pandemia. E a Confederação Empresarial de Portugal (CIP) insiste na defesa da revogação da “moratória” atualmente em vigor na caducidade da contratação coletiva.

O Governo volta a sentar-se à mesa com empresários e sindicalistas para discutir a agenda laboral a 3 de setembro. Até lá, ecoam críticas em relação a todos os capítulos incluídos nesse documento.

Trabalho temporário

  • O que propõe o Governo? As propostas a este respeito são quase um quinto da agenda e passam pelo reforço das regras sobre a sucessão de contratos de utilização — impedindo, nomeadamente, a celebração de novos contratos com sociedades do mesmo grupo –, pela consagração da obrigatoriedade de celebrar contratos por tempo indeterminado entre as empresas de trabalho temporário e os trabalhadores sempre que este seja cedido sucessivamente a diferentes utilizadores e pelo aposta em tornar mais rigorosas as regras dos contratos de trabalho temporários, “aproximando-as dos contratos a termos”. O Governo diz estar a ponderar também a introdução de quotas de vínculos estáveis nas empresas de trabalho temporário, reforçar a ação da ACT e a responsabilização das cadeias de contratação, bem como densificar as contraordenações associadas a incumprimentos para com trabalhadores temporários e estabelecer que a integração do trabalhador, no caso da empresa de trabalho temporário não ser licenciada, dever ser feita sem termo na empresa utilizadora.
  • O que respondem os parceiros sociais? Do lado dos patrões, a CCP frisa que as propostas avançadas pelo Governo seguem a “técnica da execração do trabalho temporário”, que tem sido tradição nos últimos anos, esquecendo o papel dessa modalidade de trabalho no mercado. A confederação salienta que já há regulação há vários anos e defende que o cumprimento é “fiscalizado rigorosamente”. A CCP é, particularmente, contra a hipótese da fixação de quotas porque “diaboliza esta modalidade” de trabalho e de os trabalhadores de empresas de trabalho temporário sem licença serem integrados nas empresas utilizadoras uma vez que tal “subverte os princípios em que deve assentar a fiscalização do trabalho e da economia”. Já a CIP, diz que não vê necessidade de fazer qualquer alteração à lei a respeito do trabalho temporário até porque o “recurso abusivo” não tem verdadeira aderência à realidade. Do lado dos sindicatos, também se ouvem críticas. A UGT avisa que devem ser evitadas “soluções que remetam para a individualização de opções”.

“Falsos empresários”

  • O que propõe o Governo? Há duas grandes medidas neste ponto: ponderar o alargamento de uma taxa contributiva sobre a empresa beneficiária relativamente aos empresários em nome individual economicamente dependentes (como já acontece com os trabalhadores independentes). E tornar claro na lei que a legislação de combate aos “falsos recibos verdes” também se aplica aos empresários em nome individual.
  • O que respondem os parceiros sociais? Da parte dos patrões, a CCP critica duramente a hipótese de uma nova taxa contributiva. “É atentar contra a iniciativa privada, neste caso de pequenas unidades empresariais”, considera a confederação. E a CIP diz discordar frontalmente com as propostas do Governo, até porque podem aumentar os custos das empresas. Da parte dos sindicatos, a UGT admite que as propostas do Governo poderão “ser aperfeiçoadas”, mas saúda-as.

Contratação a prazo

  • O que propõe o Governo? Sobre o trabalho não permanente, há três grandes propostas: reforçar as regras da sucessão de contratos a termo de modo a evitar abusos (impedindo, por exemplo, que o trabalhador volte a ser admitido com um contrato não permanente para o mesmo posto de trabalho, para o mesmo objeto ou para a mesma atividade), reforçar os mecanismos de intervenção da ACT para a conversão dos contratos a termo em permanentes, e definir “critérios de estabilidade de vínculos e trabalho digno nos cadernos de encargos” dos contratos de prestação de serviços pelo Estado e demais entidades públicas.
  • O que respondem os parceiros sociais? Da parte dos patrões, a CCP responde ao Governo dizendo que quem deve “julgar” estas situações são os tribunais, não a ACT. E frisando que “não há qualquer razão objetiva” para penalizar a contratação a termo nos casos em que esta tenha fundamentos lícitos. Também a CIP manifesta reservas a respeito destas propostas. Já do lado dos sindicatos, a UGT lembra que a taxa de rotatividade ainda não saiu da gaveta, medida que foi desenhada precisamente para penalizar os empregadores que recorram a contratos precários “em excesso”.

Período experimental

  • O que propõe o Governo? O período experimental foi uma das matérias mais polémicas da revisão do Código do Trabalho de 2019 e o Governo volta agora a trazê-la para cima da mesa. Desta vez quer clarificar na lei o que ficou disposto na decisão do Tribunal, estabelecer um prazo de 30 dias de aviso prévio para denúncia do contrato durante este período, depois de decorridos os primeiros 120 dias (dos 180) e introduzir o dever de comunicar à ACT, no prazo de 15 dias, a denúncia após 90 dias, nos contratos sem termo de pessoas à procura do primeiro emprego. Propõe também avaliar a definição de trabalhador à procura do primeiro emprego, avaliar a criação de uma compensação específica para situações de denúncia do contrato durante o período experimental de trabalhadores à procura do primeiro emprego após os primeiros 120 dias, e estabelecer que o empregador tem de justificar ao trabalhador as razões da denúncia.
  • O que respondem os parceiros sociais? Da parte dos patrões, a CCP frisa que a denúncia é um ato lícito que não é acompanhado nem de justificações, nem de compensações. Diz também que “de nada serve” verter na lei o que está na decisão do Constitucional, já que esta tem por si mesma força obrigatória geral. A CIP, por sua vez, discorda das propostas do Governo, já que oneram as empresas nomeadamente com mais obrigações burocráticas. Já do lado dos sindicatos, a UGT alerta para o risco de haver “trabalhadores perpetuamente à procura de primeiro emprego”, perante a natureza ampla desse conceito.

Trabalho não declarado

  • O que propõe o Governo? Reforçar as sanções aplicadas ao trabalho totalmente não declarado, atribuir à ACT o poder de presunção da existência da prestação de trabalho no caso de trabalho por conta de outrem não declarado, aumentar para dois anos antes o período relevante para a verificação da presunção de laboralidade, bem como fixar uma sanção para as empresas associadas a trabalho não declarado, reforçar o combate à informalidade no trabalho doméstico e simplificar os procedimentos de modo a facilitar a circulação entre países de trabalhadores da mesma empresa ou grupo.
  • O que respondem os parceiros sociais? Da parte dos patrões, a CCP condena a prática do trabalho clandestino, mas salienta que sancionar as empresas pela “simples não comunicação à Segurança Social” com a conversão do contrato em permanente “subverte vários princípios de Direito”. Já a CIP vai mais longe e diz que há um foco na vertente repressiva, quando o que deveria existir era a promoção do ingresso na economia formal, através designadamente da redução das taxas e contribuições. Da parte dos sindicatos, a UGT também manifesta “dúvidas e apreensões profundas” relativamente às propostas do Governo, apelando ao esclarecimento da simplificação das regras de cedência de trabalhadores entre países.

Plataformas digitais

  • O que propõe o Governo? A regulação do trabalho em plataformas digitais é um dos temas mais quentes do momento. Neste ponto, o Governo propõe a criação de um mecanismo de presunção de existência de contrato de trabalho com a plataforma ou com a empresa que nela opere, afastável apenas mediante demonstração com base em indícios objetivos por parte do beneficiário de que o prestador da atividade não é trabalhador subordinado. O Governo quer também estabelecer deveres de informação e transparência das plataformas quanto ao trabalho nelas prestado, bem como quanto às relações contratuais entre operadores das plataformas e trabalhadores.
  • O que respondem os parceiros sociais? Os patrões criticam duramente estas propostas. A CIP fala em incerteza, “senão mesmo inviabilidade jurídica” e a CCP atira: “Nunca um único indício, ademais um índice absurdo como este, apenas assente na natureza da pessoa do empregador, é suficiente para estabelecer tal presunção”. Da parte dos sindicatos, a UGT defende que a presunção de existência de contrato de trabalho deve ser, cada vez mais, abrangente e “aplicável a uma multiplicidade de falsos vínculos” e salienta que não deve ser esquecido o papel da negociação coletiva também na regulação destas plataformas.

Negociação coletiva

  • O que propõe o Governo? Há seis propostas relativamente a este ponto, nomeadamente alargar a cobertura da negociação coletiva aos trabalhadores em outsourcing e aos trabalhadores independentes economicamente dependentes, introduzir incentivos através do acesso a apoios públicos, financiamento comunitário e contratação pública, clarificar a articulação entre o regime da escolha de convenção coletiva por trabalhador não sindicalizado e a emissão de Portarias de Extensão, bem como clarificar na lei que o direito de afixação e distribuição de informação sindical nas instalações da empresa se estende a espaços virtuais existentes na empresa como é o caso da intranet.
  • O que respondem os parceiros sociais? “Este capítulo do [documento] mais parece uma agenda sindical”, atira a CCP. Também do lado dos patrões, a CIP faz questão de defender a revogação da suspensão atualmente em vigor dos prazos associados à sobrevigência e caducidade de convenção coletiva de trabalho. Já do lado dos sindicatos, a UGT faz uma avaliação positiva das propostas, mas defende que “estas exigem maior aprofundamento e discussão”.

Trabalhadores-estudantes e estagiários

  • O que propõe o Governo? As propostas passam pela eliminação da possibilidade de pagar aos estagiários menos do que 80% do salário mínimo, pelo alargamento da redução ou dispensa do período experimental em situações de estágios com avaliação positiva independentemente do empregador, desde que na mesma atividade, e pela uniformização das regras dos regimes de estágios profissionais previstas na lei. O Governo quer também “reforçar a proteção dos trabalhadores-estudantes, nomeadamente impedindo a perda de benefícios sociais”.
  • O que respondem os parceiros sociais? Da parte dos patrões, a CCP lembra o acordo recente de Concertação Social sobre formação profissional e defende que a retribuição dos estagiários “não pode ser agora revista mediante uma disposição legal avulsa”. A CIP também deixa críticas, considerando, por exemplo, a proposta que prevê a redução do período experimental “totalmente desconectada da realidade”. Já do lado dos sindicatos, a UGT apoia as propostas do Executivo, mas defende que deveriam ser mais “integradas e articuladas”.

Conciliação da vida pessoal e profissional

  • O que propõe o Governo? É um dos pacotes de propostas que mais tem gerado discussão. O Governo propõe, por exemplo, “alargar aos trabalhadores e trabalhadoras com filhos menores de oito anos de idade ou filhos com deficiência ou doença crónica o direito a exercer a atividade em teletrabalho, condicionado a partilha entre homens e mulheres e quando compatível com as funções”. Não está, contudo, claro se o empregador poderá ou não opor-se a esta adoção do teletrabalho. Neste capítulo, o Governo diz querer também reforçar os incentivos à partilha entre homens e mulheres no gozo das licenças parentais — designadamente através da majoração progressiva do valor dos subsídios –, reforçar as licenças complementares de apoio familiar, reforçar o regime de licenças parentais em situações de adoção, bem como criar uma licença de cuidador informal não principal a quem tenha sido reconhecido o respetivo estatuto, como direito anual. Prevê-se também o acesso a modelos de trabalho mais flexíveis para cuidadores informais.
  • O que respondem os parceiros sociais? Da parte dos patrões, a principal exigência é que o alargamento do teletrabalho a pais de filhos até oito anos possa ser rejeitado pelos empregadores. “Nem o projeto de lei do Partido Socialista foi tão longe quanto a impor a obrigatoriedade do teletrabalho”, diz a CCP. A CIP sugere, além disso, um estudo sobre os impactos (os custos) destas medidas. Da parte dos sindicatos, a UGT avisa: “As questões da conciliação não se jogam apenas nas pessoas com filhos, justificando o contexto social atual medidas concretas que permitam uma melhor conciliação a todos trabalhadores, nomeadamente os que assumem o cuidado de ascendentes”.

Autoridade para as Condições do Trabalho

  • O que propõe o Governo? São dez as propostas sobre a ACT e passam por tornar permanente o poder de suspender despedimentos com indícios de ilicitude — medida introduzida de forma transitória em 2020 –, tornar mais “célere e efetivo” o regime processual das contraordenações laborais, assegurar a interconexão de dados com outros serviços públicos relevantes, densificar os critérios de emissão de despachos de laboração contínua e tornar permanente a obrigação de registo diário de trabalhadores em explorações agrícolas e estaleiros da construção civil introduzida recentemente. O Governo quer ainda garantir a maior efetividade na responsabilização das cadeias de contratação, reforçar a autonomia institucional e a capacidade de intervenção da Comissão para a Igualdade no Trabalho e continuar a dotar de mais meios a ACT, nomeadamente ao nível dos inspetores. E defende a comunicação automática da contratação e cessação de contratos com trabalhadores estrangeiros pela Segurança Social à ACT, eliminando a obrigatoriedade de comunicação por parte das empresas.
  • O que respondem os parceiros sociais? Os patrões estão contra o reforço dos poderes da ACT. A CCP considera que o poder suspensivo dos despedimentos, por exemplo, é “uma anomalia do sistema”. “É uma extravagância” justificada apenas e só no contexto pandémico, diz a confederação, que entende que a ACT deve caminhar para um papel mais “pedagógico do que repressivo”. ” O objetivo deve ser esclarecer e corrigir, mais do que reprimir e sancionar”, defende a CCP. Já a CIP diz ter “as maiores reservas” perante o reforço dos poderes dos inspetores “mormente na perspetiva da respetiva constitucionalidade”. Do lado dos sindicatos, a UGT “concorda na generalidade com as medidas”, mas também levanta algumas dúvidas sobre o ponto relativo aos trabalhadores estrangeiros. “Questionamos de que forma terá acesso a ACT à informação sobre a cessação desses contratos”, atira a central sindical liderada por Carlos Silva.

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