A advogada da Gama Glória, Débora Melo Fernandes, refere que uma justiça lenta deixa de ser justa e acredita que a OA não deve substituir-se à faculdade nem ao patrono.
Débora Melo Fernandes, advogada especializada em direito público da Gama Glória, esteve à conversa com a Advocatus e fez um balanço sobre as recentes alterações na contratação pública e o estado da justiça.
Segundo a advogada, uma justiça lenta deixa de ser justa e, por isso, se “tivesse uma varinha mágica”, melhorava o estado da justiça administrativa. Acredita ainda que a OA não deve substituir-se à faculdade nem ao patrono, mas antes focar-se naquilo que é específico da profissão.
Licenciou-se há 14 anos, que balanço faz do seu percurso desde então?
Tem sido um percurso de escolhas ditadas pelo desejo de crescer na profissão e no Direito, que me levou a lugares muito diferentes.
Tive o privilégio de começar a vida profissional e de me tornar advogada numa das melhores sociedades do país, a Morais Leitão, o que deixou em mim uma enorme marca para o futuro. A dada altura, senti ser fundamental alargar fronteiras e diversificar o percurso. E a verdade é que a decisão difícil de mudar tem sido compensada com projetos que, cada um à sua medida, têm trazido sempre novidade e acrescentado valor, como a passagem muito enriquecedora pela sociedade de referência na área do Direito Público em Portugal, a Sérvulo, o mestrado e a ligação à academia como investigadora, autora e formadora e até uma curta experiência num gabinete ministerial. A decisão de me juntar à Gama Glória é fruto dessa vontade de continuar a crescer e a expandir horizontes.
Sente que os alunos nos dias de hoje saem da faculdade com mais ou menos aptidão para exercer direito do que há 14 anos?
Acho que saem exatamente com a mesma aptidão e preparação. Como em qualquer altura, há alunos com e sem aptidão e preparação. Não penso que seja uma questão geracional.
O que me parece geracional, isso sim, é a forma como gerem a relação com a profissão. Acho que, por um lado, a encaram com maior desprendimento, por terem crescido numa altura em que o modelo de um emprego para a vida deixou de ser uma realidade ou sequer uma ambição. Mesmo aqueles que têm por certo que a advocacia é a sua vocação procuram ter experiências diversificadas ao longo do percurso (no setor privado, em reguladores, no governo, nas instituições europeias, em ONGs, etc.), o que considero enriquecedor. Por outro lado, tenho a ideia de que esse desprendimento é compensado com o desejo de se envolverem em projetos e assuntos com impacto, o que também me parece muito positivo e é, aliás, um desejo com o qual me identifico. Finalmente, penso que valorizam e reivindicam, mais do que os estagiários de há uns anos, um equilíbrio cada vez maior entre vida profissional e vida pessoal, o que não considero falta de aptidão nem sequer de ambição, mas simplesmente um sinal dos tempos.
Qual é a sua posição sobre a proposta de alterações aos Estatutos da Ordem dos Advogados, em que se pretende que só mestres ou doutorados em direito ou licenciados pré-bolonha possam requerer a sua inscrição como advogados estagiários?
Tenho dúvidas sobre a bondade da medida, mesmo sabendo que encontra paralelo noutros países. Acho que esta não contribui para assegurar um nível mínimo de qualidade na profissão. Aliás, tenho-me cruzado com excelentes estagiários com e sem mestrado. A garantia de um certo nível de qualidade na advocacia alcança-se de outras formas, designadamente a montante, isto é, no próprio ensino do Direito, mas também com a reformulação e modernização do estágio, que deve ser exigente, é certo, mas adaptado ao mundo atual e ao tipo de prática jurídica que cada um pretenda seguir. Não faz sentido que um advogado que não irá exercer na área do contencioso tenha de receber mais formação sobre prática processual. A formação de base, sempre necessária, já terá sido adquirida na faculdade. A Ordem dos Advogados não deve substituir-se à faculdade nem ao patrono, mas focar-se naquilo que é específico da profissão, na defesa do papel do advogado no Estado de Direito e na deontologia.
Considera que esta alteração irá contribuir para uma maior precariedade no setor?
Infelizmente, não acho que a vida daqueles advogados que enfrentam condições muito difíceis ficasse substancialmente melhor com esta medida.
A profissão é muito assimétrica em termos de rendimentos, meios e condições. Compreendo a necessidade de olhar para essa assimetria, mas é preciso enfrentar sem preconceitos as suas verdadeiras causas e reconhecer que porventura a solução está, em grande medida, fora da esfera da Ordem dos Advogados. Exigir a realização do mestrado e, desta forma, dificultar o acesso à profissão não só não assegura a melhoria da qualidade da advocacia e da vida dos advogados, como contribui para aumentar o fosso entre os que podem continuar os seus estudos e aqueles que, não tendo condições para isso, têm de ingressar de imediato na vida profissional, porque têm contas para pagar. Neste sentido, a medida pode, isso sim, tornar muito mais difícil a situação de muitos estudantes de Direito cheios de mérito que, com muito esforço financeiro, conseguiram entrar e concluir a licenciatura, o que acaba até por ser prejudicial para a qualidade da profissão.
Tenho a certeza de que as mulheres competentes podem e vão acrescentar muito valor e fazer a diferença em cargos de liderança.
Tem centrado a sua atividade na área de direito público. Se pudesse, qual seria a grande mudança que faria nesta área?
Se eu tivesse uma varinha mágica, melhorava o estado da justiça administrativa em Portugal. É um lugar comum dizer isto, mas é a mais pura verdade que uma justiça lenta deixa de ser justa. E é infelizmente nesse estado que se encontra o contencioso administrativo no nosso país, apesar do esforço de todos para que assim não seja.
Noutra vertente, e aqui apelando ao meu lado mais ativista, gostava que toda a regulação estivesse coerentemente alinhada no combate às alterações climáticas e que os instrumentos jurídicos e regulatórios fossem melhorados ou devidamente aplicados para dar resposta a essa que é uma das necessidades mais prementes à escala global. Nos últimos anos, tenho-me dedicado à regulação da mobilidade elétrica e é muito satisfatório desenvolver trabalho numa área em que Portugal, fruto do regime jurídico-regulatório que aprovou logo em 2010, foi pioneiro na criação de condições para o crescimento de uma mobilidade sustentável.
Como estão a funcionar na prática as alterações recentes na contratação pública?
As alterações são muito recentes e ainda não decorreu tempo suficiente para que possamos perceber o seu impacto real. Algumas alterações são melhorias que visam ultrapassar dúvidas ou inconsistências da redação anterior. Essas, sendo positivas para os operadores jurídicos, terão na prática pouco impacto em termos estruturais. Mas há outras medidas, como a possibilidade de os contratos serem reservados a favor de empresas locais, que podem ter consequências muito significativas no mercado dos contratos públicos, fragmentando-o e tornando-o menos acessível em geral, o que não é positivo. O tempo dirá se as autarquias locais vão lançar mão desta permissão dada pelo legislador nacional, que não é isenta de riscos de inconstitucionalidade e de violação do Direito da União Europeia. Haverá justificação atendível para impedir que uma empresa de Torres Vedras concorra a um concurso lançado pelo município de Mafra e vice-versa?
Tendo em conta os indícios de inconstitucionalidade houve algum tipo de desenvolvimentos a esse nível?
Ainda não há decisões dos tribunais administrativos nem do Tribunal Constitucional sobre esta matéria, mas sabe-se que a Comissão Europeia está a acompanhar a questão sob o ponto de vista do Direito europeu e já fez perguntas ao Estado português.
Acredita que haverá um aumento das fraudes, ou será possível fiscalizar devidamente os contratos?
Em abstrato, esse risco existe, por causa do aumento muito significativo dos contratos que passaram a poder ser celebrados através de procedimentos não concorrenciais ou com um nível de concorrência muito limitado, incluindo contratos para projetos financiados por fundos europeus. Mas paralelamente está contemplado um sistema de fiscalização, em primeira linha pelo Tribunal de Contas e depois por uma comissão criada para o efeito, que poderá ter um papel decisivo em evitar práticas menos transparentes e imparciais. Creio que a eficácia deste sistema de fiscalização dependerá do rigor e da exigência com que, nestes primeiros tempos de aplicação das medidas, for exercido o controlo previsto na lei, dando sinais claros que desincentivem a adoção desse tipo de práticas no futuro.
A Ordem dos Advogados não deve substituir-se à faculdade nem ao patrono, mas focar-se naquilo que é específico da profissão, na defesa do papel do advogado no Estado de Direito e na deontologia.
Em 2015, foi adjunta do Gabinete do ministro da Modernização Administrativa. Como correu essa experiência?
Por força das condições políticas de então, a experiência foi muito curta, mas intensa e por isso foi mais um contexto que contribuiu para enriquecer o meu percurso. Fiquei a conhecer, ainda que episodicamente, a dinâmica de funcionamento do governo, o que é muito relevante para um jurista.
Gostou de estar envolvida mais diretamente no mundo político?
Eu tinha uma função de assessoria eminentemente jurídica, mas, claro, ao serviço de opções políticas. Uma das tarefas, particularmente desafiante e interessante, foi a preparação do programa do governo na parte da modernização administrativa, em que, além de ministro e de secretários de estado, todo o gabinete esteve envolvido.
Integrou a Gama Glória em fevereiro 2020. Como está a correr este novo desafio profissional?
Este novo desafio profissional tem-me dado oportunidade de investir parte relevante do meu tempo no Direito da Regulação, em particular na área da mobilidade e das cidades. Poder assessorar clientes na definição de políticas e estratégias cruciais para a sua missão ou negócio e ajudar a antecipar riscos regulatórios é algo que me preenche, pelo grande impacto que tem na vida dos clientes e mesmo do país. Tenho estado envolvida em assuntos e projetos em setores em mudança e acompanhado intensos processos de transformação, o que me dá grande satisfação profissional e pessoal.
Ao mesmo tempo, o trabalho não deixa de ser muitíssimo variado, para clientes com perfis distintos e em setores de atividades diversos, o que me permite não perder a mão nas restantes matérias em que também me fui especializando ao longo dos anos (assessoria em matéria de contratação pública e execução de contratos, contencioso administrativo e arbitragem, projetos, entre outras).
Qual é a principal diferença entre exercer num escritório mais pequeno e em escritórios grandes como a Morais Leitão ou Sérvulo, onde já esteve integrada?
A maior diferença está na versatilidade que é exigida ao advogado. Esta versatilidade prende-se, por um lado, com o alargamento das matérias a que é chamado a responder, sem que isso represente uma quebra na qualidade do trabalho produzido. Obriga a manter elevados padrões de qualidade e de especialização, ao mesmo tempo que precisa de ter a capacidade de fazer zoom out e de expandir fronteiras. A especialização faz-se muito por setores de atividade, o que se adequa à realidade, que também não está fragmentada ou organizada por áreas do Direito. Por outro lado, a versatilidade tem também a ver com a necessidade de desempenhar papéis e funções que em sociedades de maior dimensão podem estar distribuídas por várias pessoas, advogados ou não, e que remetem para fora do campo mais estrito da prática jurídica. É, ao mesmo tempo, um desafio e uma oportunidade.
Mas a verdade é que os valores e a cultura de rigor e de excelência são essencialmente os mesmos nos três escritórios.
A decisão de me juntar à Gama Glória é fruto dessa vontade de continuar a crescer e a expandir horizontes.
Qual considera ser o principal fator para existirem poucas mulheres em cargos de liderança nos escritórios de advogados?
No que toca à diversidade, julgo que a advocacia não se afasta do mundo empresarial e do mundo político. São essencialmente fatores culturais históricos das nossas comunidades e das nossas organizações. Creio que as coisas começam finalmente a mudar e tenho a certeza de que as mulheres competentes podem e vão acrescentar muito valor e fazer a diferença em cargos de liderança.
Quais são as perspetivas para os próximos 15 anos de profissão?
A perspetiva é continuar a explorar novos caminhos no Direito e na profissão. Além disso, começa a ser o tempo de partilhar a minha visão e forma de estar na profissão (também enquanto mulher) com a organização, com as advogadas e os advogados mais novos e com a comunidade em que me insiro. O futuro entusiasma-me e inspira-me. Espero um dia poder inspirar outros advogados.
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“Se tivesse uma varinha mágica, melhorava a justiça administrativa em Portugal”, diz Débora Melo Fernandes
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