Uma estranha reforma da qual, curiosamente, nada resulta

A limitação de testemunhas por referência a factos revela um afastamento da realidade quase artístico e, portanto, desadequado ao processo.

A menos que tenha sido aprovada até 6 de Dezembro, data provável da dissolução do Parlamento ao tempo em que escrevo estas linhas, a proposta de alteração ao Código de Processo Civil “CPC” que, a pretexto dos atrasos na justiça, visava alterar, entre outros pontos, os regimes da prova, recursos, audiência prévia, repristinar a réplica e a tréplica, não avançou. Ainda bem se assim foi. É que intervenções desta natureza, a menos que resultassem da infinita sabedoria divina, exigiriam amplo debate, o que não aconteceu. Sem prejuízo de uma ou outra boa intenção não isenta de crítica, a coisa apresentava alguns atributos de sofrimento. Pelo menos o desconforto de uma certa dor ou pena que se tem que suportar.

Primeiro atributo de sofrimento: limitar o número de testemunhas por cada facto, mais que anacrónico e errado, dói. Há muito que a prova se produz a partir da definição prévia de grandes temas de prova. A limitação de testemunhas por referência a factos revela um afastamento da realidade quase artístico e, portanto, desadequado ao processo. Ainda a propósito de testemunhas, se bem que a ideia proposta de um alargamento das possibilidades de recurso a depoimentos escritos seja excelente, é errado admitir a possibilidade de uma renovação oral do depoimento por vontade do juiz. Isso é desperdício de vida. O que faz sentido não é, obviamente, renovar o depoimento mas sim assegurar à contraparte a hipótese de, querendo, contra inquirir a testemunha que tenha deposto por escrito a fim de esclarecer dúvidas ou contradições.

Segundo atributo de sofrimento: a bem da celeridade pretende-se ressuscitar as figuras da réplica e da tréplica, solução que vigorou num tempo mágico em que a imagem e eficiência da justiça eram motivos de um orgulho nacional de proporções apenas comparáveis aos dos sucessos do inefável Almirante Gouveia e Melo. Estou, obviamente, a brincar. A verdade é que a consequência lógica da reforma proposta será a generalização da apresentação de réplicas, e tudo o mais que com elas sempre entrou no processo para além da resposta às exceções, contribuindo para maiores atrasos. Ora, se bem que inicialmente, logo após a reforma de 2013 que justamente em nome da celeridade fez desaparecer aqueles articulados, se tenha criado uma certa incerteza quanto ao modo e tempo de resposta às exceções, a verdade é que a jurisprudência foi sedimentando boas práticas. Intervir agora como se propõe é reintroduzir incerteza que tendia a desvanecer.

Terceiro atributo de sofrimento: restringir, como é proposto, a obrigatoriedade da audiência prévia naqueles casos em que apenas cumpra ao Tribunal apreciar exceções dilatórias ou conhecer do mérito da causa desde que já tenha havido contraditório escrito não chega talvez a causar sofrimento mas é destituído de sentido. A exceção à obrigatoriedade da audiência prévia já resulta do atual artigo 592 n.º 1 al. b) do CPC que determina a não obrigatoriedade de tal diligência quando o processo deva findar no despacho saneador pela procedência de uma exceção dilatória previamente debatida. A proposta propunha-se, pois, fazer o que acontece.

Quarto e último atributo de sofrimento: É proposta em nome da celeridade a revogação do n.º 7 do art. 638.º do CPC que confere a quem recorra e pretenda ver reapreciada a prova um prazo adicional de 10 dias para interposição do recurso. Ora tal prazo faz todo o sentido e justifica-se pelo ónus de alegação que recai sobre o recorrente de indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso sob pena de imediata rejeição do mesmo nessa parte. Acabar com tal prazo, a não ser demagogia ou desconsideração, é demonstração de um desconhecimento confrangedor da realidade.

Pode nesta altura ter-se dado o caso de a proposta ter sido aprovada antes da dissolução do parlamento. Porém, com sorte, nada aconteceu; e este será mais um estranho caso do qual, curiosamente, nada resulta.

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