De Pinho a Berardo: quais são as cauções mais altas de sempre?
Luís Filipe Vieira e Berardo tiveram de pagar cauções de três milhões e cinco milhões de euros, respetivamente. A Advocatus falou com advogados que explicam quais os critérios para decidir valores.
Nos últimos meses foram aplicadas a dois dos arguidos mais mediáticos da história recente da Justiça portuguesa — o ex-presidente do SLB, Luís Filipe Vieira e o empresário madeirense, Joe Berardo — o pagamento de cauções de valor elevado (três milhões e cinco milhões de euros, respetivamente). Dois exemplos que entraram diretamente para o topo da tabela das cauções milionárias aplicadas na justiça portuguesa por juízes de instrução.
Agora, com a decisão relativa a Manuel Pinho e a aplicação de uma caução de seis milhões, o ex-ministro socialista entra diretamente para o primeiro lugar dessa tabela das fianças elevadas. Porém, como explicou o advogado de Pinho, Ricardo Sá Fernandes, o ex-ministro não vai conseguir pagar esse valor e, por isso, ficará em prisão domiciliária, com pulseira eletrónica. Ambas as medidas nunca poderão ser aplicadas em conjunto porque a lei processual portuguesa não permite.
O ECO/Advocatus fez um levantamento em agosto deste ano e relembra agora quais os arguidos obrigados a pagar os valores mais altos, quais as regras para definir esse valor e ainda o que dizem os especialistas sobre esta medida de coação não privativa da liberdade.
O que é uma caução?
A caução é uma medida de coação não privativa da liberdade que visa, como todas as outras, prevenir a continuação da atividade criminosa ou proteger a prova. Pode ser aplicada apenas a crimes punidos com pena de prisão. Esta medida pode acumular‑se com qualquer outra, exceto a prisão preventiva e a obrigação de permanência na habitação.
Se o arguido faltar sem justificação a um ato processual a que devesse comparecer ou não cumprir as obrigações decorrentes de outra medida de coação, a caução considera‑se quebrada, revertendo o seu valor para o Estado. Quando um arguido presta a caução, esse valor fica numa conta bancária ‘congelada’ apensa ao processo. Esta medida de coação pode ser substituída, por iniciativa do juiz, ou por requerimento, por qualquer outra medida de coação, caso o arguido esteja impossibilitado de a prestar.
Como é calculado o valor da caução pelo juiz de instrução?
A lei discrimina como deve ser calculado o montante da caução, mas com critérios demasiado subjetivos. O Código de Processo Penal, no artigo 197.º, n.º 3 diz que o juiz toma em consideração “os fins a que se destina, a gravidade do crime imputado, o dano que este causou e a condição socioeconómica do arguido”. O arguido pode prestar caução mediante depósito, penhor, hipoteca, fiança bancária ou fiança.
Se o arguido não prestar a caução, o seu património poderá ser objeto de arresto preventivo, isto é, de uma apreensão judicial de bens (artigos 206.º, n.º 4 e 228.º do CPP). Ou pode ainda ficar sujeito a outra medida de coação, desde que explique porque não conseguiu pagar o valor em causa.
A quem foram aplicadas cauções mais elevadas?
Caução de Manuel Pinho: seis milhões de euros
Esta quarta-feira, Carlos Alexandre aplicou uma caução de seis milhões a Manuel Pinho e prisão domiciliária com pulseira eletrónica, discordando com a proposta que tinha sido feita pelo Ministério Público de aplicar a medida de coação mais grave. Mas a prisão domiciliária só será aplicada se o arguido não pagar a caução. Mas o advogado Ricardo Sá Fernandes admitiu que o seu cliente não tem disponibilidade para pagar esse valor. Manuel Pinho foi constituído arguido no âmbito do caso EDP no verão de 2017, por suspeitas de corrupção e branqueamento de capitais, num processo relacionado com dinheiros provenientes do Grupo Espírito Santo.
Caução de Joe Berardo: cinco milhões de euros
Após primeiro interrogatório judicial, o empresário, que foi detido a 29 de junho deste ano, ficou indiciado de oito crimes de burla qualificada, branqueamento de capitais, fraude fiscal qualificada, dois crimes de abuso de confiança qualificada e um crime de descaminho. Ficando assim sujeito ao pagamento de uma caução de cinco milhões de euros, impedido de sair do país e de entrega do seu passaporte. Carlos Alexandre aceitou a proposta de caução apresentada por Joe Berardo, que deu como contrapartida imóveis avaliados em oito milhões de euros, que pertencem a empresas de familiares.
Ricardo Oliveira, do processo BPN: cinco milhões de euros
Quando Oliveira Costa e o antigo ministro Arlindo Carvalho foram pronunciados, o ex-administrador do BPN, Ricardo Oliveira viu confirmado pelo tribunal o pagamento de uma caução no valor de cinco milhões de euros, em janeiro de 2014.
O Tribunal Central de Instrução Criminal (TCIC) fixou “um depósito à ordem dos autos, fiança ou hipoteca de imóvel com valor compatível ou ainda por penhor sobre participações sociais detidas” por Ricardo Oliveira. Na fixação da caução económica, foram tidos em conta pelo juiz Carlos Alexandre os factos pelos quais o arguido está “fortemente indiciado” e “ponderadas as razões apresentadas pelo Ministério Público”.
Caução de Ricardo Salgado: três milhões de euros
O ex-presidente do Banco Espírito Santo (BES) Ricardo Salgado viu as suas medidas de coação alteradas, em outubro de 2015, podendo ficar em liberdade, mediante a prestação de uma caução de três milhões de euros. Ricardo Salgado estava em prisão domiciliária desde 24 de julho, no âmbito do processo “Universo Espírito Santo”. Um mês depois, o Tribunal Central de Instrução Criminal reduziu de três milhões para 1,5 milhões de euros a caução aplicada ao banqueiro Ricardo Salgado no âmbito do processo Monte Branco. Determinou ainda que o valor de 1,5 milhões de euros resultante dessa redução fosse afeto à caução fixada ao arguido no âmbito do processo Universo ES. Ficou então sujeito à entrega do remanescente valor de 1,5 milhões de euros.
Caução de Luís Filipe Vieira: três milhões de euros.
O ex-presidente do Benfica, Luís Filipe Vieira quis pagar a sua caução de três milhões de euros através de um imóvel e de ações do Benfica. Mas o juiz acabou por não aceitar. O arguido está em prisão domiciliária, sem pulseira eletrónica. No caso de Luís Filipe Vieira, estão em causa suspeitas de “crimes de abuso de confiança, burla qualificada, falsificação, fraude fiscal e branqueamento” por “factos ocorridos, essencialmente, a partir de 2014 e até ao presente”. Carlos Alexandre considerou que devido às oscilações de valor das ações da SAD do Benfica, sujeitas à volatilidade do mercado e até aos resultados do clube dos encarnados em campo, não estão reunidas as condições para aceitar a proposta de pagamento da caução de três milhões por Luís Filipe Vieira. A defesa está agora a tentar encontrar outras formas de pagamento, tendo entretanto apresentado recurso desta caução.
Caução de Alexandra Pinho: um milhão de euros
Esta quarta-feira, o juiz de instrução aplicou a Alexandra Pinho uma caução de um milhão de euros. Fica ainda obrigada a apresentar-se periodicamente às autoridades e proibição de se ausentar do país. Já Alexandra Pinho, que entre 2004 e 2014, trabalhou no BES como curadora da coleção de arte do banco, foi confrontada com os cerca de 600 factos que o MP reuniu. É suspeita de corrupção e branqueamento de capitais.
Caução de Mexia e Manso Neto: um milhão.
Os dois antigos gestores da EDP António Mexia e João Manso Neto já recuperaram — em março deste ano — as cauções que tiveram de desembolsar por ordem do juiz de instrução criminal Carlos Alexandre. A obrigação de cada um entregar uma caução no valor de um milhão de euros foi uma de várias medidas de coação aplicadas por Carlos Alexandre no contexto do processo EDP, que incluíram ainda a suspensão de funções, a proibição de entrar em qualquer instalação da EDP e de contactar testemunhas e outros arguidos;
Caução Armando Vara (Operação Marquês): 300 mil euros
No final de 2019, o Tribunal de Relação determinou que Armando Vara pagasse uma caução de 300 mil euros, no âmbito da Operação Marquês. As autoridades consideraram que existia o perigo de fuga e de perturbação do decurso da instrução. Em novembro de 2018, o juiz de instrução Ivo Rosa tinha revogado a aplicação desta caução, alegando que era “desproporcional e desnecessária”. A Relação justificou a medida com a hipótese de Armando Vara fugir depois de cumprir pena no processo Face Oculta, podendo assim escapar ao processo Marquês, onde Vara é também arguido. Em julho, Armando Vara foi condenado a dois anos de prisão efetiva pelo crime de branqueamento de capitais. Este crime resulta do processo separado da Operação Marquês, sendo o primeiro do caso a conhecer uma decisão.
Caução Hermínio Loureiro (Ajuste secreto): 60 mil euros
Em junho de 2017, a juíza de instrução criminal do Tribunal da Feira fixou uma caução de 60 mil euros para o vice-presidente da Federação Portuguesa de Futebol, Hermínio Loureiro, um dos arguidos na operação “Ajuste Secreto”. Os arguidos eram suspeitos de crimes de corrupção ativa e passiva, prevaricação, peculato e tráfico de influência. Em causa estavam ilegalidades cometidas em concursos públicos e nos ajustes diretos de obras municipais. A operação “Ajuste Secreto” resultou de uma investigação que durava há um ano e culminou no dia 19 de junho com a detenção de sete pessoas. O vice-presidente da Federação Portuguesa de Futebol e antigo presidente da Liga Portuguesa de Futebol também foi presidente da Câmara de Oliveira de Azeméis até dezembro de 2016.
Caução de Armando Vara (Face Oculta): 25 mil euros
No final de 2019, Armando Vara saiu do tribunal de Instrução Criminal de Aveiro com uma caução de 25 mil euros e impedido de contactar com cinco arguidos do processo «Face Oculta». O vice-presidente do Millennium BCP, que suspendeu funções na sequência deste processo, afirmara esperar sair “só com o Termo de Identidade e Residência”. Armando Vara está desde 16 de janeiro de 2019 a cumprir uma pena de cinco anos de prisão no âmbito do processo Face Oculta. Em finais de março de 2019, o Tribunal de Aveiro aceitou descontar os três meses e sete dias de prisão domiciliária a que esteve sujeito, no âmbito da Operação Marquês.
Caução aplicada a advogado (Operação Lex): 25 mil euros
Em fevereiro de 2018, o juiz decidiu ainda aplicar a um dos arguidos da Operação Lex, um advogado, a prestação de caução no valor de 25 mil euros. Entre os arguidos estão os juízes desembargadores Rui Rangel e Fátima Galante, Rita Figueira, o presidente do Benfica, Luís Filipe Vieira, o vice-presidente do clube Fernando Tavares, o ex-presidente da Federação Portuguesa de Futebol João Rodrigues e três advogados. Neste processo investigam-se suspeitas de crimes de tráfico de influência, de corrupção/recebimento indevido de vantagem, de branqueamento e de fraude fiscal.
O que dizem os especialistas sobre a lei?
E como avaliam os especialistas a lei neste contexto e a forma como são calculados os valores destas cauções? “A lei estipula diretrizes muito claras, que passam, em primeiro lugar, pela exigência de proporcionalidade desse valor, mas também, com igual peso, pela relevância daquilo que se pretende acautelar e, bem assim, pela necessidade de se atender às condições socioeconómicas do arguido”, explica o advogado da Vieira de Almeida, Rui Costa Pereira.
Sérgio Figueiredo, coordenador da Comissão de Penal e Processo Penal da JALP, defende que o despacho que determina a aplicação do valor da caução “deve ser fundamento, tal como o requerimento do Ministério Público que a promove”, No entanto, admite que o que se verifica é que nem sempre existe essa “explicação cabal e que acaba por transmitir uma ideia de aleatoriedade judicial na aplicação desta medida”. Criticando a magistratura ao dizer que os argumentos para a aplicação de determinado valor “é manifestamente insuficiente criando a ideia de aleatoriedade e pessoalização na aplicação desta medida”.
Rui Costa Pereira admite que “haverá juízes menos capazes de o fazerem. É um problema das decisões respeitantes à aplicação de medidas de coação ou medidas de garantia patrimonial, como é, infelizmente, um problema de muitas outras decisões que constituem formas de ingerência (e de lesão) nos direitos fundamentais das pessoas”.
O advogado Sérgio Figueiredo admite mesmo que o problema legislativo prende-se com as alterações “a quente” que muitas vezes criam mais problemas do que aqueles que resolvem”. “Mais do que uma alteração legislativa, entendo que o que deve existir é um reforço da exigência da fundamentação da decisão que determina a aplicação da caução”, sublinha.
Já o advogado da VdA admite que são necessárias “soluções mais pragmáticas, no sentido de oferecer guidelines aos juízes, sem que se tenha de estar alterar o Código de Processo Penal”. Veja-se o exemplo: “No contexto da distribuição de processos, a lei não oferece qualquer diretriz sobre como o processo deve ser classificado (como processo comum, ou como megaprocesso, por exemplo) no momento que antecede a operação de distribuição; essa classificação é relevante, desde logo, para assegurar uma distribuição equitativa do serviço entre os diversos juízes que compõem um determinado Tribunal (seria claramente irrazoável deixar nas mãos da aleatoriedade desejada da distribuição, a possibilidade de a um só juiz serem, por exemplo, distribuídos todos os megaprocessos que devessem ser distribuídos no Tribunal onde exerce funções); ora, sem que tivesse sentido a necessidade de haver qualquer concretização da lei, o Conselho Superior da Magistratura vem há anos definindo em que termos os processos devem ser classificados, de modo a assegurar o equilíbrio do sistema”, explica.
Do mesmo modo, o advogado admite que não o chocaria uma solução que, atendendo aos rendimentos e património (mesmo que incluindo os não declarados) do arguido e aos prejuízos e danos causados, se oferecessem aos juízes guidelines como, “com rendimentos e património até A e prejuízos até B, pode ser aplicado o valor de C; até D e E, o valor F” e por aí fora. “Penso que podem ser orientações relevantes, mas continuo a achar que a lei já oferece a orientação necessária e suficiente”, acrescenta.
O advogado assume que o preocupa “a ausência de rigor ou a forma tabelar como possa por vezes ser aplicada” a caução. “Até poderia ser aplicada em todos os processos, desde que, claro está, se mostrassem reunidos os pressupostos legalmente fixados”, admite. “Dizer que o crime é grave, sem mais; que há um perigo de fuga, sem que se demonstre porquê; fixar um valor considerável, sem sequer atender às condições sócio-económicas do arguidos; tudo são realidades que não se podem aceitar como conformes às exigências legais”, concluiu Rui Costa Pereira.
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