Legislação fiscal e legislação covid: entre a manutenção do dever de inspeção e a caducidade do direito de reação à liquidação
Num momento de fecho de contas e de fixação de contingências, importa fazer, caso a caso, uma reflexão sobre as regras de suspensão de prazos no âmbito da pandemia Covid-19.
Por regra, a chegada de um novo ano fiscal conduz a uma questão relevante: a de saber até quando pode a AT reavaliar a sua atuação sobre a liquidação de tributos passados? Em causa está um instituto universal no Direito que é o da Caducidade, levando-o em consideração quer como elemento impeditivo da realização de uma inspeção tributária (a ação inspetiva apenas se pode iniciar até ao termo do prazo de caducidade do direito de liquidação), quer enquanto obstrução à liquidação de imposto. Sucede que, a passagem de 2021 para 2022 conduz à necessidade de uma maior sofisticação nessa análise face a anos anteriores, à luz dos vários diplomas que, entre 2020 e 2021, foram publicados relativamente a suspensão de prazos de caducidade, quer processual quer procedimental.
A este propósito, importa começar por relevar que, no período referido, em momento algum se encontraram suspensos os prazos para as liquidações de imposto, independentemente do seu tipo… Com efeito, em nenhum dos diplomas aprovados (incluindo despachos do SE), tal suspensão foi decretada. Em segundo lugar, a ‘paralisação’ da primeira vaga referente aos prazos procedimentais – vis-a-vis a equiparação ao regime das férias judiciais – não é suscetível de ser aplicada a prazos com uma duração superior a 6 meses, como decorre do artigo 138.º do CPC. Ora, o caso da liquidação de tributos consubstancia, precisamente, um prazo superior a 6 meses, sendo a regra geral, como é sabido, o prazo de caducidade de 4 anos…
Por outro lado, é certo que existiram normativos que mencionaram expressamente uma suspensão da caducidade, caso do n.º 3 do artigo 6.º-C da Lei n.º 4-B/2021. Porém, nunca é demais relembrar que a caducidade terá de estar associada a um direito, de tal forma que, quando o legislador menciona a caducidade, não está a referir-se a deveres da administração, não sendo de aplicar a regra… Ao contrário do que se possa pensar, o direito à liquidação de imposto não é meramente um direito do Estado. Aliás, não existe verdadeiramente um direito do Estado a liquidar, posto que o Estado, em matéria tributária, age ao abrigo do seu poder de ius imperii e no cumprimento dos seus deveres para com a sociedade, podendo-se, no máximo, equacionar um direito de crédito difuso. Não existe portanto, verdadeiramente, uma titularidade por parte da AT de um direito de crédito, sendo prova disso a regra da ‘indisponibilidade dos créditos tributários’ e a impossibilidade de renuncia por parte da AT à cobrança do crédito. Ora, da mesma forma que o ‘direito de crédito’ não é titulado pela AT, o mesmo se passa com o ‘Direito à Liquidação’. Temos assim que o direito à liquidação é o direito do particular de lhe ser liquidado imposto com respeito pelas normas legais e no montante efetivamente devido. Com efeito, é a operação de liquidação que procede à fixação e consolidação das certezas e seguranças jurídicas quanto ao cumprimento da prestação tributária de acordo com o dever de pagar impostos (aspeto bem visível nas liquidações adicionais sem correções que igualmente fixam e consolidam as certezas e seguranças jurídicas).
Por tudo isto, num momento de fecho de contas e de fixação de contingências, importa fazer, caso a caso, uma reflexão sobre as regras de suspensão de prazos no âmbito da pandemia Covid 19. A conclusão a que chegamos é a de que o ano de 2017 não poderá mais ser sujeito a inspeção por o dever de inspecionar não ter suspendido. Este aspeto acarreta outra consequência na fixação de contingências na medida em que, a partir de 1 de janeiro de 2022, e na ausência de causas específicas de suspensão do prazo de caducidade, não poderão ser emitidas liquidações adicionais de impostos anuais por referência ao ano de 2017. Por outro lado, o prazo de realização de pedido de revisão oficiosa foi suspenso pela 2.ª vaga legislativa, e desta feita sem a equiparação às férias judiciais, o que, surpreendentemente e de forma inesperada, abre a possibilidade de reação do particular, precisamente pela via da revisão, a atos de liquidação de imposto sem que a AT tenha ainda a possibilidade de realizar procedimentos inspeções uma vez que, como vimos, o prazo para inspecionar nunca foi suspenso.
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