Offshores: o que se apurou nas audições e o que falta saber
Entre os dois, Paulo Núncio e Rocha Andrade foram ouvidos durante mais de sete horas na Comissão de Finanças, mas ainda há perguntas sem resposta. Fique a par em dez tópicos.
Após terem sido ouvidos o anterior e o atual secretários de Estado dos Assuntos Fiscais, muitas das dúvidas ficaram esclarecidas acerca de como dez mil milhões de euros transferidos para offshores não ficaram no radar da Autoridade Tributária, e sobre a não publicação das estatísticas deste tipo de transferências durante vários anos. Esta sexta-feira, dois anteriores diretores da Autoridade Tributária falam aos deputados, e ainda há questões por esclarecer.
Afinal, qual foi a natureza da falha informática que levou a estes erros? Poderá ter havido intervenção humana nesse processo para deixar escondidos dez mil milhões de euros? Foi legítima a escolha de Paulo Núncio em não divulgar os dados estatísticos sobre as transferências para offshores? Ponha-se a par daquilo que já foi apurado e das dúvidas que restam, em dez perguntas e respostas com base nas audições de Núncio e Fernando Rocha Andrade.
Porque é que as estatísticas não foram publicadas?
Logo nas suas declarações iniciais na audição, Paulo Núncio afirmou ter sido ele quem decidiu não publicar as estatísticas das transferências para jurisdições offshore por “ter dúvidas” acerca da sua utilidade e do risco envolvido em publicá-las.
As dúvidas eram de duas ordens. Por um lado, Paulo Núncio acreditava que a publicação daria “vantagem ao infrator” que pretendesse usar as offshores para fugir à tributação. “Achei que a publicação podia constituir um alerta para os infratores relativamente ao nível e à quantidade de informação que a Autoridade Tributária dispunha sobre as transferências”. Em segundo lugar, o ex-secretário de Estado acrescentou que “a informação enviada era abrangente e não distinguia os tipos de operação”, o que preocupou Paulo Núncio porque, já que os dados não distinguiam as operações comerciais daquelas que seriam objeto de tributação, a publicação poderia levar a interpretações incorretas”.
São justificações que foram criticadas pela esquerda: Mariana Mortágua, do BE, perguntou se o ex-secretário de Estado se tinha “esquecido” destas dúvidas quando emitiu o seu primeiro comunicado sobre o assunto, em que inicialmente responsabilizara a Autoridade Tributária pela não publicação dos dados, e Eurico Brilhante Dias insistiu que se Núncio não autorizou a publicação por decisão própria, então “ocultou deliberadamente” os números. “Entendeu durante quatro anos ocultar as publicações sem gerar novo despacho ou nova ordem que contradissesse” o do antecessor no cargo, Sérgio Vasques, do Governo de José Sócrates.
A explicação de Núncio também não convenceu Fernando Rocha Andrade. No final da tarde do mesmo dia, quando foi a sua vez de falar aos deputados, assumiu não ver razões para a publicação das estatísticas trazer qualquer benefício a quem pratica evasão fiscal. “Eu não concordo que a publicação de estatísticas tenha qualquer efeito negativo no combate à fraude e à evasão. Aquilo que por vezes se discute que não deveria ser revelado são os mecanismos de controlo”, assumiu. “Agora a divulgação estatística não está relacionada com os mecanismos de controlo, divulga apenas a dimensão de uma realidade”.
Mas havia obrigação de publicação?
O despacho de 2010 de Sérgio Vasques, no qual o então secretário de Estado dos Assuntos Fiscais determinava que as estatísticas das transferências para offshores fossem publicadas, também marcou a discussão na audiência de Paulo Núncio. Enquanto o ex-secretário de Estado entende que o despacho não cria uma obrigação legal para a publicação, tendo decidido não divulgar os dados devido às suas dúvidas, Mariana Mortágua pressionou-o para que esclarecesse se acreditava que a Autoridade Tributária tinha “obrigação de publicar as estatísticas”.
Para sustentar a sua posição, a deputada bloquista leu o comunicado do próprio Paulo Núncio no dia 24 de fevereiro: “O despacho do meu antecessor [Sérgio Vasques] determina que a DGCI (atual AT) divulgue na sua página a informação relativa a transferências financeiras para paraísos fiscais”, afirmando que não precisaria de aprovar essa divulgação. Paulo Núncio desviou a questão, já que, disse, no seu comunicado se referia a uma situação “geral e abstrata” enquanto o caso se trata de uma questão “concreta e objetiva”. Assim, concluiu Núncio, “a Autoridade Tributária procedeu bem”.
Fernando Rocha Andrade, por sua vez, não hesitou quando lhe foi perguntado, perto do início da legislatura, se autorizava a publicação de estatísticas. “Simplesmente determinei que fosse seguido o despacho de Sérgio Vasques”, afirmou, e em abril de 2016 foram publicados os dados referentes às transferências entre 2010 e 2014.
Os ministros das Finanças sabiam da não publicação?
Paulo Núncio disse repetidamente que Vítor Gaspar e mais tarde Maria Luís Albuquerque não sabiam nem estavam envolvidos em nenhuma decisão relacionada com as estatísticas das transferências para offshores. “Admito que tenha tido conversas com os ministros das Finanças sobre as questões em geral, mas (…) esta matéria dos paraísos fiscais era uma matéria que eu acompanhava em particular”, afirmou Paulo Núncio, insistindo mais tarde, questionado se o Governo “estava a par”, que: “O Governo estava, eu era o responsável. (…) Eu é que tinha competência sobre a matéria”.
Mas não convenceu Eurico Brilhante Dias, deputado do Partido Socialista que trouxe a resposta a uma das questões colocadas pelo grupo parlamentar do PCP sobre o tema das estatísticas dos offshores, que vinha do gabinete do ministro Vítor Gaspar. Embora Paulo Núncio tenha respondido: “A resposta foi dada pelo meu gabinete e o chefe do gabinete do ministro apenas transmitiu a resposta aos serviços do Parlamento”.
Para perceber melhor a questão, Vítor Gaspar e Maria Luís Albuquerque já foram chamados pelo PS a esclarecer o caso no Parlamento.
Há ligação entre a não publicação das estatísticas e a não fiscalização dos dez mil milhões?
A divulgação do trabalho estatístico no Portal das Finanças não está relacionada nem influencia o trabalho de fiscalização da Autoridade Tributária, que continuava a tratar e analisar os dados internamente. Paulo Núncio fez questão de frisar repetidas vezes que os dois casos — o facto de as estatísticas não terem sido publicadas entre 2011 e 2016 e que entre 2011 e 2014 tenha havido dez mil milhões de euros em transferências para offshores que não foram analisados — não estão relacionados.
Sendo verdade que o trabalho de fiscalização é independente da divulgação estatística, vários deputados sublinharam uma questão: a publicação das estatísticas permite que os dados sejam escrutinados pelo público em geral, o que permite identificar erros com maior frequência. “A publicitação dá-nos sinais de alerta para podermos ir à procura”, afirmou Eurico Brilhante Dias. “Para agir é preciso ter informação”.
Como se descobriram os dez mil milhões que estavam escondidos?
O caminho que levaria à descoberta desta falha começou com a ordem para publicar as estatísticas dada por Rocha Andrade no início do seu mandato. Em abril de 2016 foram publicadas as estatísticas referentes às transferências realizadas entre 2010 e 2014. Já em julho de 2016, quando a Autoridade Tributária já dispunha de um novo software para tratar as declarações enviadas pelos bancos de transferências feitas para jurisdições consideradas paraísos fiscais, que são feitas através do Modelo 38, ficaram prontos os dados de 2015 e foram publicados. A surpresa? Eram mais do que 20 vezes superiores aos valores registados em 2014.
Em outubro, o secretário de Estado dos Assuntos Fiscais, Rocha Andrade, perguntou à Autoridade Tributária o que poderia estar por trás de uma discrepância tão grande entre os números de 2014 e os de 2015. Segundo Rocha Andrade contou na sua audição, foi aí que foi descoberto o problema: “Entre a pergunta e a resposta”, que chegaria a 8 de novembro de 2016.
O que se passara? O software que fora utilizado nos anos anteriores a 2016 e que servia para transferir os dados enviados pelo sistema financeiro para o sistema central da Autoridade Tributária, onde seriam fiscalizados, funcionara de forma incompleta em vinte declarações “cujos ficheiros estavam no Portal das Finanças, entregues e agregados. (…) Dentro de cada uma dessas declarações houve um conjunto de transferências que não foram transmitidas ao sistema central das Finanças”, contou Rocha Andrade. No total, eram 14.484 transferências, num valor próximo de dez mil milhões de euros, que não chegaram ao sistema central da AT, ou seja, não foram tratadas nem puderam ser objeto de inspeção.
Mas Azevedo Pereira não garantira que todas as transferências tinham sido fiscalizadas?
Sim. Ao ECO, o máximo responsável da Autoridade Tributária entre 2007 e julho de 2014 José Azevedo Pereira afirmou que “a Autoridade Tributária (AT) efetuou em devido tempo, quer o tratamento e o acompanhamento inspetivo que lhe competia, quer a preparação dos elementos necessários à efetiva divulgação pública dos elementos em causa”. Na Comissão de Finanças, a deputada do CDS-PP Cecília Meireles observou: “Ou isto é mentira, ou estes dez mil milhões de euros foram fiscalizados”.
Mas o secretário de Estado Rocha Andrade deu uma outra explicação. “Todas as transferências que eram conhecidas, ou seja, que estavam no sistema central, puderam ser objeto de inspeção”, reconheceu. Os dez mil milhões de euros ficaram ocultos, não tendo sido transferidos para o sistema central, pelo que não foram tratados. Azevedo Pereira não mentiu: “Falou sobre aquilo que conhecia”, afirma Rocha Andrade.
Afinal o que se passou com o software?
O software defeituoso estaria desatualizado há algum tempo e a sua substituição foi pedida pelo novo subdiretor da Autoridade Tributária para os sistemas de informação escolhido já pelo Governo PS, segundo explicou Rocha Andrade, tendo o novo software entrado em vigor em julho de 2016, na altura da publicação das estatísticas das transferências realizadas em 2015.
Mas nem todos acreditam que o problema fosse apenas informático. O presidente do Sindicato dos Trabalhadores dos Impostos (STI), Paulo Ralha, afirma que a falta de controlo destas transferências resultou de ação humana. “Não houve problema no sistema informático. Houve problema com as pessoas que manejaram o sistema informático”, referiu, afirmando no entanto que falta apurar se “foi com dolo ou não”.
Houve mão política na não fiscalização dos dez mil milhões de euros?
Paulo Núncio afirmou, questionado pelos deputados, que nunca deu “nenhuma instrução relacionada com questões concretas de combate à fraude” nem sobre a questão dos dez mil milhões em concreto. “Nunca dei nenhuma instrução para a alteração de nenhum sistema informático que pudesse pôr em causa a ação da AT”, acrescentou, detalhando que nunca inferiu em nenhum processo nem teve consciência de discrepâncias durante o seu mandato.
Rocha Andrade pareceu concordar, afirmando: “Não tenho indicação de que tenha havido intencionalidade política ou de dirigentes técnicos no sentido de conduzir a este resultado”.
Estas transferências eram tributáveis?
Nem todas as transferências para offshores são tributáveis. Por exemplo, uma transferência comercial, em que uma empresa paga uma transação através da transferência do montante para um paraíso fiscal, não gera imposto. Paulo Núncio referiu que dos “dez mil milhões de euros, pode haver uma parte significativa desse valor que tenha a ver com pagamentos relativos ao comércio internacional”. Para o saber ao certo será preciso esperar pelo resultado de uma investigação ao caso que está a ser feita pela Inspeção-Geral das Finanças e que estará pronta, anunciou Rocha Andrade, em março.
Rocha Andrade já avançou alguns detalhes que podem dar pistas neste sentido. As transações que foram fiscalizadas entre 2011 e 2014, ou seja, as que não foram afetadas pela falha informática que deixou os dez mil milhões escondidos, eram 90% realizadas por empresas e 10% por pessoas singulares, e 18% eram pagamentos relativos a comércio. Mas as transações que ficaram escondidas podem ter um perfil bastante diferente. No volume total, em 2014, o valor que ficou oculto excedeu aquele que foi fiscalizado.
Será possível tributar impostos se se averiguar que são devidos nesses dez mil milhões?
Paulo Núncio insistiu que não há impostos perdidos neste caso, visto que o Governo PSD de Passos Coelho aprovou um alargamento da caducidade para a liquidação de impostos para 12 anos nas transferências para offshores. “A norma foi feita para ser o mais abrangente possível”, afirmou, sendo perentório que ainda será possível tributar estas transferências se se descobrir que há impostos devidos.
Rocha Andrade não é tão otimista, e olha para lá da caducidade quando fala na possibilidade de haver receita fiscal impossível de recuperar. “Não posso dar a garantia de que não haja impostos perdidos porque a questão é um pouco mais complexa do que o que tem sido relatado”, explicou Rocha Andrade. O direito à liquidação “não caducou, mas daí não posso extrair a conclusão de que a falta de controlo administrativo atempado não levou à perda de receita”, por duas razões que explicou.
A primeira é a de que os dados relativos a estas transferências também podem ser usados para despoletar investigações a atividades internas suspeitas e assim descobrir outras situações de fuga ao Fisco ou evasão fiscal que de outra forma passaria despercebida. A outra é “mais simples”: as pessoas coletivas extinguem-se ou mudam-se, e pode acontecer ser preciso fazer uma liquidação a uma pessoa coletiva que desde 2012 entretanto desapareceu. “Também aqui, sem prejuízo de continuar a haver direito à liquidação, pode não haver ninguém a quem liquidar o imposto”, afirma.
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