“A imagem do Ministério Público não é hoje muito sexy. É essencial mudar a cultura e alguns dos métodos de trabalho”

António Cluny, procurador-geral adjunto jubilado, antigo membro nacional da Eurojust e ex-líder do Sindicato dos Magistrados do MP, faz uma análise sobre os métodos de trabalho e falhas do MP.

António Cluny, magistrado do Ministério Público jubilado, foi o representante de Portugal na Eurojust – Unidade Europeia de Cooperação Judiciária em 2014 e eleito, em 2011, presidente da MEDEL – Associação de Magistrados Europeus pela Democracia e Liberdade.

O Procurador-Geral Adjunto jubilado e que foi seis vezes eleito como líder do Sindicato dos Magistrados do Ministério Público, foi ainda perito do GRECO (Grupo de Estados Contra a Corrupção – comité especializado do Conselho da Europa), tendo participado nas equipas que avaliaram os sistemas jurídicos, serviços públicos e de justiça do Luxemburgo (2004) e do Mónaco (2008) na perspetiva da luta contra a corrupção.

Em 1998, foi nomeado Procurador-Geral Adjunto e colocado em substituição do Procurador-Geral da República nos Tribunais Supremos e no Tribunal de Contas. Em entrevista à Advocatus, faz uma análise sobre os métodos de trabalho, falhas e qualidades do trabalho do Ministério Público atual.

O Ministério Público atravessa uma fase complicada, numa altura em que é alvo de muitas críticas, no contexto da Operação Influencer. Acha que essas críticas são justas?

O Ministério Público (MP), tal como o conhecemos depois do 25 de Abril, esteve sempre sob o olhar crítico dos diferentes poderes – institucionais e informais – que gerem a sociedade e, portanto, também, dos meios que aqueles têm para exprimir as suas preocupações e pontos de vista. O MP dispõe de um instrumento, dado pela Constituição e a lei, que pode, em certos casos, pôr em causa muitas posições estabelecidas: refiro-me à titularidade da ação penal e, nesse plano, em particular, ao poder de iniciativa na investigação criminal.

É nesse poder – quando exercido, como acontece em Portugal, com total autonomia – que reside, com alguma frequência, o ponto de fricção com os poderes reais que dirigem o país.

Quando tal iniciativa incide sobre a chamada criminalidade comum – que é a maioritária – raramente os poderes dirigentes da sociedade se preocupam com a forma como o MP se comporta. O problema e a maior parte das críticas que são dirigidas ao MP acontecem quando tal iniciativa processual tem por objeto ações de legalidade duvidosa, desenvolvidas por certas pessoas, a coberto e mesmo no âmbito das suas funções institucionais.

Quanto mais o MP alarga o campo de ação dessa sua iniciativa mais se expõe e, por isso, mais críticas e mais contundentes surgem. Tendo sido magistrado ativo durante 46 anos, recordo-me de sempre o MP ter sido alvo de várias investidas políticas, mais ou menos claras, mais ou menos dissimuladas. Com isto não quero dizer que todas essas críticas eram e são infundadas e que, independentemente da sua real intenção, não deveriam merecer uma análise cuidada por parte dos procuradores e, mais do que ninguém, por parte da sua hierarquia. Rejeitar a priori tais críticas só porque vêm do poder político ou de qualquer poder fáctico é não compreender a lógica de funcionamento democrático da sociedade e, sobretudo, a interdependência de poderes, tal como prevista na Constituição.

António Cluny, magistrado do Ministério Público jubilado, em entrevista ao ECO/Advocatus - 19DEZ23
António Cluny, magistrado do Ministério Público jubilado, em entrevista ao ECO/AdvocatusHugo Amaral/ECO

Considera que o MP já foi melhor do que é, atualmente?

É muito difícil tecer considerações desse tipo. Por um lado, a criminalidade grave, designadamente a mais sofisticada e com maior incidência danosa na sociedade, que é a que se desenvolve no campo económico e financeiro – e que tem como uma das causas a delegação que, atualmente, o Estado faz do exercício de algumas das suas funções no setor privado – mudou e cresceu muito nos últimos anos.

A mistura de interesses concorrentes e nalguns casos antagónicos é, na verdade, um campo fértil para o desenvolvimento daquilo que popularmente é conhecido por corrupção. Lidar com este tipo de criminalidade exige uma formação muito especializada, tanto na fase da investigação como – o que nem sempre tem sido compreendido pelo MP – na do julgamento.

Por outro, mas relacionado com o primeiro, seria importante encontrar para o MP uma organização e métodos de trabalho que, precisamente, se adequassem a intervir na revelação e punição dos responsáveis por estes fenómenos.

Se me permitir, falaremos disso mais adiante. Em consequência, diria, como resposta direta à sua pergunta, que o MP é hoje tão eficiente – porventura até mais – no tratamento que dá à criminalidade comum como era quando para ele entrei há quarenta e seis anos. No mais, tratando-se de uma realidade nova, parece difícil fazer comparações.

A senhora PGR fez bem ao enviar o famoso parágrafo relativo ao ainda PM, no dia 7 de novembro?

Sempre considerei que não cabe a um magistrado tecer considerações públicas sobre a atuações dos seus superiores hierárquicos, designadamente quando elas se referem à sua intervenção operacional; isto é, quando estão relacionadas com atos referentes a processos judiciais.

Se fosse o PGR, faria o mesmo?

A pergunta é sugestiva, mas a razão que me impediu de responder à pergunta anterior mantém-se, também, quanto a esta questão.

O Ministério Público devia rever a forma como comunica aos cidadãos as investigações de que é titular?

Desde há muitos anos que este assunto se colocou e nunca foi bem resolvido. Não sou um perito em comunicação social, mas creio que o MP padece – padeceu sempre – de uma deficiência comunicacional no seu relacionamento com a sociedade.

Tal deficiência está muito ligada à forma como o MP se pensa a si mesmo e, consequentemente, pensa, também, a sua inserção no plano interinstitucional, no plano da relação com os media e, por via destes, com os cidadãos. Reconheço que encontrar uma política comunicacional adequada não é fácil, mas creio, igualmente, que a resolução deste problema não pode depender apenas das características pessoais do Procurador-Geral em exercício.

Creio que o MP padece – padeceu sempre – de uma deficiência comunicacional no seu relacionamento com a sociedade. Tal deficiência está muito ligada à forma como o MP se pensa a si mesmo e, consequentemente, pensa, também, a sua inserção no plano interinstitucional, no plano da relação com os media e, por via destes, com os cidadãos”

Por que razão é que a comunicação da PGR nunca envolve iniciativas como conferências de imprensa, como vemos em muitos outros países?

A pergunta é muito interessante e leva-me a navegar por outros mares. Por muitas e variadas razões – algumas, desde logo, situadas no momento dos estudos secundários, universitários e nos estágios fornecidos pelo CEJ – a cultura comunicacional dos procuradores, como, de resto, a de muitos outros profissionais portugueses, é estruturada em torno da escrita. Há várias explicações para isso: pode ser por medo atávico de tomar posição sobre um dado assunto, por insegurança, por calculismo… sei lá.

Sempre que oiço magistrados- juízes ou procuradores – de outros países, admiro a facilidade e à vontade com que discorrem, seguindo um plano discursivo lógico, bem fundamentado e concludente. Tais magistrados, não têm, além disso, receio algum de dizerem exatamente o que pensam.

Isso acontece porque a sua cultura cívica – em regra mais antiga do que a nossa – não foi afetada por maneirismos e hipocrisias herdados de regimes ditatoriais e de culturas inquisitoriais, como, durante séculos, aconteceu entre nós.

Por outro lado, porque o ensino que frequentaram nos seus países privilegiou, sempre, a oralidade – não há dispensa das orais nos exames – o que lhes permite falarem com rigor, mesmo que sem papel.

A questão da falta de meios é recorrente há décadas. Já no seu tempo de presidente do SMMP o era. Acha que essa ‘desculpa’ ainda faz sentido?

A falta de meios humanos foi e ainda é real. Tendo, contudo, sido sempre uma constante, não podemos mais olhar para ela como algo intransponível ou, sequer, como uma justificação, já indefensável, para as repostas tardias e insuficientes que o MP, em muitos casos, dá à sociedade.

Se não há meios suficientes para acudir com diligência e efetividade a todas as tarefas – que não funções – que o MP ainda hoje exerce, seria conveniente que que a hierarquia do MP, depois de um alargado debate interno e externo, procurasse priorizar e/ou eliminar muitas das tarefas que os magistrados têm de executar, mesmo que, em rigor, pouco contribuam para a realização da Justiça. Tudo teria de passar, primeiro, claro, por um levantamento exaustivo das tarefas que, ao longo dos anos, o MP acumulou de motu próprio, ou lhe foram impostas pelo legislador.

Será razoável, por exemplo, que o Estado continue a atribuir a advocacia dos seus casos menores – que são a maioria – ao MP e, no que respeita às ações politicamente sensíveis e mais importantes para o país, contrate advogados?

Será razoável que em casos de alguma importância se dê poder à administração pública para, como sujeito processual autónomo, intervir, por si, nos processos e em que tem interesse direto e se mantenha neles, simultaneamente, a presença e intervenção do MP? Não creio, hoje, que, para além da resposta imediata a algumas necessidades urgentes, seja, pois, correto e pertinente continuar a insistir no argumentário da falta de meios.

Parece-me, sim, mais correto, e sobretudo mais eficaz, limpar o MP de um conjunto de tarefas e procedimentos burocráticos e injustificados que impedem uma resposta com acuidade nos processos mais importantes para a sociedade.

Se a Assembleia da República aprova a lei de política criminal onde constam, em geral, as prioridades na intervenção da Justiça e, mais especialmente do MP, seria, também, curial que o PGR e/ou os PG Regionais pudessem, a partir daquelas, adequar a intervenção regional do MP em função das realidades concretas que se verificam num plano territorial mais reduzido. E, quando me refiro a esta possibilidade, não pretendo referir-me apenas à intervenção do MP na área criminal. Refiro-me à definição de estratégias regionalmente adequadas também no que respeita à defesa dos menores, dos idosos, dos trabalhadores, dos sem emprego, dos imigrantes e refugiados, ou do ambiente, nele se inserindo, obviamente, o urbanismo.

Refiro-me, enfim, àqueles interesses que, por estarem constitucional e legalmente protegidos, urge que o Estado, através do MP, os possa evidenciar e fazer respeitar a sério, numa perspetiva de apoio a uma sociedade ainda muito pouco ativa na defesa da cidadania. A questão dos meios humanos não é, aliás, ao que fui sabendo na Eurojust, um problema unicamente português: a França, por exemplo, que é um país rico, debate-se com carências muito superiores às nossas.

Questão diferente à a da falta de meios periciais e materiais e a da sua atualização. Esta é real, tem incidência na longevidade dos processos mais complexos e, mesmo, na possibilidade de se atingir, com acerto, a verdade dos factos. Muitos processos não são bem-sucedidos devido, precisamente, às fragilidades que a Justiça toda, e não só o MP, têm nesta área.

A autonomia do MP justifica a falta de prestação de contas que é apanágio das magistraturas?

A questão da prestação de contas não é de fácil abordagem. O que se entende por prestação de contas? Se é fazer o que eu, enquanto Membro Nacional de Portugal na Eurojust fiz ao longo de muitos anos – apresentando na 1.ª Comissão, um relatório de atividades, dando conta das estatísticas de trabalho, explicando as deficiências do sistema, apontando caminhos para as superar e, assim, de uma forma dialogada, ir partilhando na Assembleia da República com os deputados preocupações e novidades que o Direito Europeu introduziu no nosso sistema judiciário e que, por isso, necessitavam de uma reposta política interna que só o legislador podia dar – estou de acordo.

Se, o que se pretende com essa proposta é, pelo contrário, abrir caminho a uma discussão, em concreto, do andamento e a razão de ser de um ou outro processo, discordo totalmente, até por, aí sim, se poder estar a atentar contra a autonomia do MP. Recordo que o PGR é nomeado pelo Presidente da República sob proposta do Governo e só pode ser exonerado dessas funções antes do final do mandato se essas duas altas figuras do Estado nisso acordarem.

Se se acordar que o PGR responde, politicamente, ante aquelas duas entidades, a sua responsabilização só pode acontecer, porém, em função de um caso excecionalmente grave, porventura um comportamento criminal relevante relacionado, ou não, com a direção da ação do MP. Isso, creio, teria de importar a instauração de uma espécie de processo de «impeachment», sob pena de tal exoneração ser vista apenas como uma manobra política.

Ir mais longe do que isso era diminuir, de vez, mesmo que apenas de facto, a autonomia do MP, contrariando o que a nossa Constituição estabelece e, além disso, os conceitos firmados do Direito Europeu, tal como interpretados e assumidos pelo Tribunal de Justiça da União Europeia. Nesse aspeto, considero que a nossa Constituição foi sábia e prudente na distribuição e complementaridade das responsabilidades.

Repensar o papel da hierarquia do MP no processo, de modo a envolvê-la e coresponsabilizá-la pelo acompanhamento do mesmo e, designadamente, pelas decisões ou promoções do MP relativas a medidas de coação ou, de qualquer modo, intrusivas e limitativas de direitos, liberdades e garantias, é, igualmente, fundamental”

Referiu numa entrevista dada à RTP que o MP deveria rever os seus métodos de trabalho. Pode concretizar?

Quando a Dr.ª Joana Marques Vidal decidiu aceitar ser nomeada PGR, falou, antes, com muitos amigos e colegas sobre o MP e as suas carências. Uma das coisas que lhe foi dito então, é que seria porventura útil convidar figuras cimeiras de alguns grandes e mais bem organizados escritórios de advogados e perguntar-lhes – em abstrato, claro – como organizariam o MP se fossem eles o PGR. Não que se pretendesse copiar o modelo de tais escritórios, mas porque era importante saber como se constituía uma equipa de advogados encarregada de tomar conta de um caso. Tal experiência podia ser relevante para o MP. A verdade é que todos nós sentíamos já que algo não estava a funcionar bem no MP e que era necessário alterar a sua orgânica e os métodos de trabalho.

Isso resultava óbvio, nos casos relacionados com o novo tipo de crimes que crescia e mobilizava importantes meios humanos e materiais, sem, contudo, se obterem os resultados satisfatórios que se desejavam. Mais tarde, e ante alguns insucessos e, também, alguns êxitos gratificantes, fomos todos falando da necessidade de estudar as causas dos primeiros e as razões que asseguraram as vitórias dos segundos, de modo a ir corrigindo a maneira de o MP intervir, com acerto, nos processos complexos e de grande repercussão social que viessem a suceder no futuro.

Importava, também, definir, previamente, o que era, em tais casos, ter sucesso; seria sempre concluir os processos com uma acusação? Esta questão nem se poria se as investigações pudessem ser rápidas e imediatamente conclusivas, mas infelizmente, por múltiplas razões, não é assim que acontece.

Na verdade, independentemente do grande trabalho que esta magistratura faz todos os dias nos restantes casos, são os processos mediáticos que formam a imagem institucional do MP.

Defendi, então, de diversas maneiras, que seria necessário não só fazer essa avaliação no final de cada um desses processos emblemáticos, como que tal avaliação deveria ser conduzida por um magistrado que não estivesse neles envolvido: uma espécie de «advogado do Diabo».

Mais tarde, ante o significativo impasse de um certo caso muito mediático, alarguei e partilhei a minha opinião sobre este assunto, defendendo que, em tais casos, o tal «advogado do Diabo» deveria ir acompanhando, desde o princípio, o desenvolvimento do processo e suscitando questões que o magistrado titular do mesmo e a sua equipa de investigação deveriam analisar e, eventualmente, tomar em consideração.

Deste modo, caso fosse necessário, e as objeções suscitadas ao andamento do processo fossem de monta, entendi ser, igualmente, forçoso que o imediato superior hierárquico dos procuradores que dirigem tais equipas de magistrados tomasse conhecimento, se responsabilizasse pela manutenção ou alteração da estratégia processual até aí seguida, e disso desse conhecimento à PGR.

Recordemos, a propósito, que, não por acaso, o DCIAP – onde se investigam muitos dos processos social e politicamente mais sensíveis – está inserido organicamente na PGR. Algumas dessas ideias foram transpostas para o novo Estatuto do MP – por exemplo, a constituição de equipas mistas de investigação -, mas, incompreensivelmente, o seu funcionamento interno acabou por nunca ser regulado.

Parece-me impensável que uma equipa de procuradores encarregada de um dado caso não veja definido, previamente, quem é, afinal, o titular do processo. Importa, sempre, identificar quem se assume como titular e responsável único pelo mesmo, quem determina o que fazer e quando: quem, enfim, assume, por inteiro, a responsabilidade de todos os atos processuais.

Lembremos, a propósito, que todos os magistrados do MP estão sujeitos aos mesmos impedimentos e suspeições dos juízes e que, portanto, é necessário saber quem decidiu o quê, sob pena de a atuação de somente um dos procuradores poder afetar todo processo.

Por outro lado, continua a ser muito visível que o MP continua a valorizar, sobretudo, a sua intervenção na investigação, mas que o faz, essencialmente, na perspetiva da sua conclusão e por via de um despacho de acusação (também, noutra medida, de um arquivamento) que, especialmente, é pensada como uma conclusão justificativa da investigação.

Ora, uma acusação não é, nem deve ser, uma cópia mais ou menos retocada de um relatório de investigação; é muito mais do que isso. É, no fundamental, um guia, uma estratégia para, em juízo, o MP poder fazer comprovar os factos criminais e a culpa dos acusados.

Ela deve ser pensada para orientar e permitir a prova dos factos – que se crê terem acontecido – em audiência, permitindo, ainda, identificar com clareza quem tem a responsabilidade pessoal por eles. Por isso, a cisão entre a condução do processo na fase investigatória e a sua condução em julgamento fazem pouco sentido e há que encontrar métodos de trabalho que mitiguem os seus efeitos perniciosos.

A filosofia do Código de Processo Penal (CPP) atual privilegia, com efeito, a fase de julgamento, e uma acusação para ter sucesso, deve ser projetada, primordialmente, em função dessa fase jurisdicional do processo. O que os investigadores pensam que aconteceu, desacompanhado de provas e fundado, em muitos aspetos, essencialmente, em conclusões lógicas, mais ou menos evidentes, é pouco relevante em julgamento, mesmo quando parece óbvio que eles têm razão.

Se se conhecem e se destaca o papel dos advogados que intervêm no julgamento, raramente, no MP, se sabe e se evidencia o mais do que relevante papel do procurador que intervém na audiência.

António Cluny, magistrado do Ministério Público jubilado, em entrevista ao ECO/Advocatus - 19DEZ23
António Cluny, magistrado do Ministério Público jubilado, em entrevista ao ECO/AdvocatusHugo Amaral/ECO

Porquê?

Porque continua a existir uma cultura que privilegia a fase escrita do processo, sendo o julgamento, como no CPP anterior, pensado apenas como uma fase asseverativa da verdade previamente obtida na instrução. Mas, não é assim; hoje não é assim.

Por isso, é necessário repensar a estrutura orgânica dos DIAPs e do DCIAP que foram desenhados e promoveram apenas uma especialização dos procuradores para a fase da investigação do processo – uma especialização por fase processual, portanto – e não para lidar com um tipo específico de crime em toda a dimensão do processo, nela se incluindo, pelo menos com igual importância, a do julgamento.

Além de que, repensar o papel da hierarquia do MP no processo, de modo a envolvê-la e coresponsabilizá-la pelo acompanhamento do mesmo e, designadamente, pelas decisões ou promoções do MP relativas a medidas de coação ou, de qualquer modo, intrusivas e limitativas de direitos, liberdades e garantias, é, igualmente, fundamental. O pior que pode acontecer não é uma intervenção hierárquica durante o desenvolvimento de uma investigação. O pior é, verdadeiramente, uma intervenção hierárquica fundada, não na lei, mas numa respeitosa e discreta influência interna, exercida por quem tem poderes de gestão capazes de condicionar a vida profissional e, consequentemente a pessoal, do titular de um processo e que, além do mais, não é acessível às outras partes do processo.

Importa sempre, assim creio, saber que tal intervenção existiu e quem decidiu o quê. Mesmo para os procuradores titulares dos processos, esse tipo de procedimentos informais – frequentemente exercidos através de um paternalismo resultante de uma alegada maior experiência, é perigoso.

No fim, inexistindo verdadeiras e formalizadas orientações hierárquicas, só os primeiros podem ser responsabilizados pela condução do caso. Para isso, poderá ser necessário rever o Código de Processo Penal, alargando e definindo a forma de intervenção da hierarquia e, sobretudo, dando transparência e responsabilizando publicamente os autores de tais interposições.

Que outros métodos se podem usar na transcrição de escutas?

Ao que julgo saber há um software desenvolvido para o efeito (Callscribe) cujos resultados não dispensam, contudo, um exame atento e, por isso, não se revela muito eficaz ou eficiente. Portanto, em Portugal, as transcrições continuam a ser feitas à mão, pela polícia! As disposições referentes à execução das interceções telefónicas são muito pormenorizadas e resultam de sucessivas alterações legislativas (em 1998, 2000 e 2007). Depois de autorizadas (artigo 187.º) e comunicadas pelos serviços do TIC à(s) operador(as), o MP envia ao OPC para execução (artigo 188.º, n.º 1).

Um bocado redundantemente, o n.º 2 do mesmo preceito diz que o MP pode tomar conhecimento do conteúdo das interceções para praticar os atos necessários para assegurar outros meios de prova. Para este efeito, o procurador deve ouvir as escutas – ou a maior parte delas – para confirmar o seu conteúdo. Normalmente, é o procurador que propõe esta medida, mas o JIC pode ordenar a sua destruição autonomamente.

Como daqui resulta, a transcrição imediata ordenada pelo JIC é só para efeitos de aplicação de medidas de coação; poderá também servir para a prova desde que, mais à frente, com a acusação, o MP as indique para esse fim – n.º 9. Aqui podem, ainda, arguido e assistente verificar também a conformidade das transcrições indicadas pelo MP para valerem como prova.

Não sou especialista nesta matéria, mas, dados os limites tecnológicos referidos, não sei que mais se possa acautelar, a não ser uma revisão muito exigente por parte de quem tem, para isso, competência e obrigação.

Começam a ser cada vez mais os casos em que o MP faz uma acusação – falo dos casos mais mediáticos – que depois, em sede de julgamento, dá em muito pouco. Como fica a imagem do MP nestes casos?

A imagem do MP, bem ou mal, é desenhada, essencialmente, pelos casos mediáticos em que intervém, por isso ela não é hoje muito sexy. Contudo, como disse, o que é essencial é mudar a cultura e alguns dos métodos de trabalho do MP.

Só assim esta magistratura poderá apresentar uma imagem mais condicente com os esforço e dedicação que, todos os dias, a maioria dos seus magistrados faz para que a Justiça seja feita.

Isso nunca impedirá que algumas das dificuldades realmente sentidas pelo MP em áreas mais sofisticadas da criminalidade – que, ao contrário do que sempre se insinua, acontecem, também, em muitos outros países – desapareçam por encanto.

Essa mudança de imagem só será possível se todos os magistrados – incluindo os que trabalham nas áreas sociais e dos interesses coletivos e difusos – e não apenas aqueles que trabalham nos organismos de ponta, se envolverem em tal processo de renovação.

Um processo de reflexão coletiva orientada à adaptação a uma nova realidade já aconteceu antes, quando, sendo Vice PGR o Dr. Marques Vidal, entrou em vigor o novo CPP e todos os procuradores foram chamados a integrar grupos de trabalho para interpretar e adequar os procedimentos do MP a esse, então, novo diploma e paradigma de trabalho.

Uma mudança séria da organização e métodos de trabalho do MP, mesmo que provocados por razões e agentes externos ao MP, só terá, assim, sucesso e efeitos positivos no seu desempenho se for globalmente participada e internamente mobilizadora.

Melhor do que ninguém, são os jornalistas que, realmente, sabem quem, por norma, viola o segredo de Justiça. Não se lhes pede, no entanto, que denunciem os prevaricadores, mas poderia pedir-se que, entre eles, fizessem um estudo sério sobre o assunto e, quando concluído, divulgassem, publicamente, as conclusões obtidas sobre esse tão melindroso problema. Com isso, fariam um grande favor ao Estado de Direito. Não sou tão ingénuo que admita que, em algumas situações, as fugas não tenham vindo do MP”

O segredo de Justiça é violado, é um facto. Mas os jornalistas que o violam não o fazem sozinhos. Como se pode combater essa violação que muitas vezes vem de dentro do MP?

Melhor do que ninguém, são os jornalistas que, realmente, sabem quem, por norma, viola o segredo de Justiça.

Não se lhes pede, no entanto, que denunciem os prevaricadores, mas poderia pedir-se que, entre eles, fizessem um estudo sério sobre o assunto e, quando concluído, divulgassem, publicamente, as conclusões obtidas sobre esse tão melindroso problema. Com isso, fariam um grande favor ao Estado de Direito. Não sou tão ingénuo que admita que, em algumas situações, as fugas não tenham vindo do MP.

Acredito, no entanto – embora possa estar enganado -, que a maioria delas não têm origem nos magistrados. Tive disso – a falsa atribuição ao MP de uma fuga feita, precisamente, por quem a cometeu – conhecimento direto num caso muito relevante e de grande impacto na sociedade portuguesa da altura.

Tal conhecimento e o facto de, dele só ter dado notícia e mostrado a prova informal, em cima da hora, ao prevaricador permitiram-me, para espanto de muita gente, ganhar aos pontos um debate na TV que muitos julgavam perdido por antecipação.

Aconteceu que um jornalista, já enojado com o que se estava a passar e, inclusive com a hipocrisia reinante no seu meio profissional, me ajudou nesse caso. Se os jornalistas não auxiliarem na realização de um tal estudo – esclarecendo sem nomes, mas com números, o assunto – mais difícil se torna uma tomada de consciência interna sobre a gravidade da situação.

De outro modo, a solução mais eficaz será a de incluir o crime de violação do segredo de justiça no catálogo dos que admitem escutas telefónicas.

Todavia, ainda assim, não estou seguro que os pretensos indignados com tal situação o queiram, nem que o problema possa, por essa via, ser debelado. A dissimulação, nesta matéria, é que tem sustentado o atual estado de coisas e ele interessa a muita gente, mas, seguramente, não aos interesses que o MP defende. Muito menos é admissível, creio, que se pense que tais fugas fazem parte de uma estratégia, formal ou informalmente, pensada e executada pelo MP enquanto instituição.

Noutros países, igualmente membros da UE, houve quem, por este motivo, tivesse decidido introduzir agentes dos serviços de segurança nos conselhos superiores das magistraturas: o resultado foi um escândalo público.

Estou certo, porém, que ainda nenhum dos nossos costumados críticos de tal situação, chegou a pensar em tais apuros, mais próprios, de resto, de outros tempos e regimes políticos.

Como encarou o artigo de opinião de Maria José Fernandes e o respetivo processo de averiguações?

Sobretudo, como um contributo corajoso e preocupado para ajudar a resolver os problemas da Justiça, de que todos falam nos corredores, mas em voz baixa. No mais, quanto ao estilo, que parece ser o que mais gente molestou, recordo que sempre existiu em Portugal uma cultura muito permissiva no discurso forense.

Para os que andam sempre com a autonomia do MP na boca, era importante que lhe associassem, também, o respeito pela pluralidade de opiniões dos magistrados. O direito à opinião e de intervenção cívica de cada magistrado integram, também, o conceito de liberdade de consciência, que é, estatutariamente, compreendido pelo conceito de autonomia do MP.

Tal direito não é apanágio exclusivo do estatuto de dirigente associativo, sendo que não é por acaso que estatuto do SMMP, compreende, como legalmente é devido, o direito de tendência. O mais importante é sabermos todos que há colegas que ainda se preocupam com a Justiça e os seus problemas; mobilizá-los é, por isso e como venho dizendo, essencial.

Estamos num momento de transição política. Que conselhos daria ao próximo/a ministro/a da Justiça, no que toca ao MP?

Antes de legislarem, que leiam atentamente, por exemplo, os acórdãos do Tribunal de Justiça da União Europeia e o do Tribunal de Estrasburgo sobre garantias processuais, definição dos conceitos de autoridade judicial e judiciária.

Tais decisões e os conceitos por elas definidos realçam a importância que, para o Direito Europeu, aqueles conceitos têm para a definição da competência processual do MP.

Estes tribunais europeus não falam já de autonomia do MP; falam de independência. Outros países que não o fizeram, desrespeitando assim o Direito Europeu sobre a matéria, estão agora a braços com ameaças de sansões económicas.

Isto, mesmo quando argumentam – com alguma razão, reconheça-se – que têm o mesmo regime de outros, mais antigos na União Europeia, que não acolheram o modelo de governação das magistraturas por Conselhos Superiores e mantêm mesmo um importante papel na gestão dos quadros de juízes e procuradores por parte do Ministro da Justiça.

António Cluny, magistrado do Ministério Público jubilado, em entrevista ao ECO/Advocatus - 19DEZ23
António Cluny, magistrado do Ministério Público jubilado, em entrevista ao ECO/AdvocatusHugo Amaral/ECO

E no que toca à Justiça, no geral? Que prioridades o futuro MJ deve ter na agenda?

Pode parecer irónico, mas no que respeita à Justiça – tal como acontece com a lei de política criminal – as prioridades são todas.

Por exemplo, o apoio judiciário – na sua vertente de apoio forense – necessita de ser profissionalizado e especializado, para que todos os cidadãos possam ser iguais perante a lei. Isso não significa, necessariamente, criar um corpo de advogados do Estado.

Pode passar, pela criação de um instituto com secções regionais – que a Ordem poderia tutelar – onde se entrasse por concurso e aos aprovados fosse feito um contrato de avença que lhes assegurasse estabilidade económica e lhes permitisse evidenciar-se como profissionais competentes, competindo, desse modo, com a advocacia privada num plano muito mais equitativo.

Importante seria, regular bem os impedimentos e conflitos de interesses, o que exigiria, como para os magistrados, uma inspeção periódica. Desse modo, não se esbanjava dinheiro público numa atividade não controlada nem, em muitos casos, verdadeiramente, eficaz. No que às magistraturas respeita, não creio que, salvo uma adaptação imprescindível do CPP ao novo Estatuto do MP, sejam necessárias muitas mais reformas legais. O permanente reformismo legislativo, é, também ele, causador de ineficiência e insegurança jurídica.

Outra questão importante e urgente do ponto de vista humanitário: atentar na situação das prisões para, além do mais, evitarmos o vexame de ver recusado o cumprimento de mandados de detenção europeus, por causa das más condições higiénicas de alguns dos nossos estabelecimentos prisionais.

Já no que respeita a meios técnicos para apetrechar a Justiça, importaria, porventura, dotar as magistraturas e a PJ das mais modernas tecnologias informáticas e de inteligência artificial, de forma a agilizar perícias e diligências processuais.

No mais, gostava de lhe desejar boa sorte, pois, ao contrário dos que se batem contra o funcionamento e as forças da democracia, creio que o bom andamento e a boa imagem a Justiça dependem muito, também, do que por ela for feito pelo poder político.

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