Paulo Farinha Alves, sócio da PLMJ, considera que falta alguma "concretização" na Agenda Anticorrupção. Sobre o novo paradigma de perda alargada, admite que lhe causou "perplexidade" e "preocupação".
O sócio na área de Resolução de Litígios da PLMJ, Paulo Farinha Alves, considera que falta alguma “concretização” na Agenda Anticorrupção, apontando falta de referências ao quadro de pessoal dos funcionários e à gestão dos meios.
O advogado revelou que o anúncio de que existirá um novo paradigma de perda alargada causou-lhe alguma “perplexidade” e “preocupação” e que a insistência no enriquecimento ilícito parece-lhe “desajustada”.
Admitiu ainda ter a sensação de que na área da justiça as propostas são consideradas boas ou más dependendo de quem as apresenta. Sobre o Ministério Público, considera que não está tudo mal e não lhe parece que seja necessário “refundar” e “virar tudo do avesso”.
O que falta na Agenda anticorrupção apresentada pelo Governo?
Falta alguma concretização, o que é natural nesta fase. Mas em geral creio que faltam referências ao quadro de pessoal dos funcionários e à gestão dos meios. São frequentes as queixas relativas a falta de pessoal nas secretarias. E temos de pensar, de uma vez por todas em ter a flexibilidade para otimizar os recursos disponíveis, fazendo uma gestão ativa das respetivas necessidades. A eficácia do sistema está em relação direita com a flexibilidade na distribuição e alocação de recursos e está tudo por fazer a este nível.
Por outro lado, os oficiais de justiça têm de estar sob a direção, poder disciplinar e avaliação, por exemplo, do Juiz Presidente de cada Comarca. Percebo a sensibilidade do tema e a fragilidade da posição política do governo. Mas se queremos pensar em reformas da justiça, num destes séculos temos de começar por pensar nisto. Como nota adicional talvez ajudasse uma qualquer declaração expressa a referir que as alterações propostas não são de direita, esquerda ou centro excluindo, por isso, a possibilidade de fazer discussão política. Tenho muitas vezes a sensação de que na área da justiça as propostas são consideradas boas ou más dependendo de quem as apresenta. E se fosse só na área da justiça…
As alterações estruturais precisam de maiores consensos, mas sobretudo de uma estabilização que não deve mudar ao sabor dos ventos políticos.
Pontos positivos dessa mesma agenda?
Parece-me positivo que se entenda ser de prosseguir o caminho que resultou da aprovação do regime geral da prevenção de corrupção e da criação do MENAC. Embora exista um longo caminho a percorrer, a promoção da atividade plena do Mecanismo através da operacionalização da respetiva atuação é essencial. Existe por vezes a ideia de que o combate à corrupção é coisa simples, basta “juntar água” (vontade política) e acordamos no dia seguinte com um sol radioso e com a certidão de óbito do fenómeno assinada. O combate é longo, exige resiliência, mas, sobretudo, que os sucessivos governos sejam capazes de ter paciência de esperar pelos resultados das boas reformas que se vão fazendo, ajustando onde se justifique sem a sucessiva vontade de “inventar a roda”…
A regulamentação do registo de interesses legítimos (lóbi) também é absolutamente essencial, sendo há anos recomendada por organizações internacionais como a OCDE e a GRECO. Muito positivas também as questões relativas à maior filtragem das denúncias (muitas delas usadas para fazer capas de jornais e lançar suspeições que demoram depois anos a esclarecer), dotar as magistraturas de uma assessoria técnica adequada (devíamos escrever esta frase 10 vezes para o caso de se apagarem as outras nove…), a aposta nas ferramentas tecnológicas e a publicitação das decisões judiciais, incluindo as de primeira instância. Também a transparência do processo legislativo e a formação especializada merecem destaque muito positivo.
O que necessita de ser esclarecido?
O anúncio de que existirá um novo paradigma de perda alargada causa-me alguma perplexidade e preocupação. Primeiro porque a questão surge de uma promessa populista, que fez acreditar que se tinha de criar um mecanismo que já existe há anos no nosso sistema e tem sido, aliás, aplicado. Depois porque o modelo proposto parece apontar para uma antecipação de uma decisão definitiva a meio do caminho, o que levanta graves problemas e me parece, por isso, perfeitamente inexequível.
Também a insistência no enriquecimento ilícito me parece desajustada. Se o enriquecimento é ilícito é porque existem factos anteriores que o possibilitaram. A perseguição dos mesmos é essencial, pode e deve ser feita. É profundamente desadequado considerar que a ilicitude é o enriquecimento, chamando o arguido para provar o contrário. É uma solução que poderia funcionar com um sistema sem os problemas que, com facilidade, todos reconhecemos existirem e, sobretudo, sem a agilidade para filtrar, com rapidez, o que é criminalidade e o que são os fenómenos que um ilícito desta natureza iria inequivocamente atrair.
A fase da instrução pode vir a sofrer alterações. Acha isso um bom sinal?
Escrevi recentemente um texto sobre as pretendidas alterações na fase da instrução (O fim da instrução? Solução ou problema?) e causa-me apreensão que se ensaiem alterações que não sejam pensadas de forma estrutural, tendo em conta os equilíbrios do sistema, com a ideia simplista de que a instrução é uma entropia que causa demora nos processos. E compreendendo que a justiça tem de aumentar os tempos de resposta, também me preocupa a incessante busca de uma velocidade processual semelhante à produção de notícias. A instrução já é uma fase limitada, não é uma repetição de um julgamento (ao contrário do que se pensa e do que frequentemente se diz) e funciona frequentemente como um filtro adequado que evita que os processos prossigam para julgamento.
Volta a estar em cima da mesa a ideia da justiça premial. Estamos a ir por um caminho perigoso?
Nos moldes apresentados não. São desenvolvimentos de regimes vigentes havendo referência a intenções que não merecem qualquer preocupação como “maior densificação, na medida em que isso se torne viável” e “requisitos que, idealmente, deverão ser o mais objetivos possível”.
Tenho, por vezes, a sensação que o Ministério Público se fecha sobre si próprio, anquilosado nas suas convicções, sem ter o adequado conhecimento do “mundo” que o rodeia.
A AD e o PS devem estar alinhados nas soluções para a Justiça?
Os partidos políticos devem compreender que as alterações no setor da justiça precisam de cuidada análise e ponderação e os seus efeitos não são, por vezes, completamente visíveis no curto período de uma legislatura. São frequentes as alterações desgarradas, ao sabor das pressões externas, da espuma do caso concreto e privilegiando sobretudo aquela ideia de que perante um problema aprovámos uma lei. As alterações estruturais precisam de maiores consensos, mas sobretudo de uma estabilização que não deve mudar ao sabor dos ventos políticos. Questiono-me, com frequência, se os partidos têm alguma ideia sobre o caminho que devemos trilhar nos próximos anos na área da justiça…
Que perfil deverá ter o próximo PGR?
É importante que conheça a casa, que tenha elevada qualidade técnica aliada a capacidades de organização, de liderança e de comunicação. E acho que deve colocar na agenda o reforço da formação contínua dos magistrados e a crescente aposta na especialização.
A autonomia do MP é uma ‘desculpa’ da magistratura para não prestarem contas?
A autonomia do MP constitucionalmente garantida tem determinadas consequências, de entre as quais consta a impossibilidade de interferência dos demais poderes. Já houve tempos em que existia direta submissão do MP ao poder executivo. Um artigo específico do velhinho estatuto judiciário fazia-o depender, em linha reta, do próprio Ministro da Justiça. Não creio que seja desejável colocarmos em causa a autonomia, nos termos em que existe e também me parece pernicioso transformarmos o ambicionado escrutínio em reality shows de discussão dos processos mais mediáticos, ou aproveitarmos, por exemplo, o inenarrável circo em que as Comissões Parlamentares de Inquérito se transformaram para escrutinar decisões judiciais, chamando procuradores (gerais ou outros) ao pelourinho. Numa sessão recente os senhores deputados não sabiam, por exemplo, que existia segredo profissional de advogados…
Mas precisamos de encontrar o equilíbrio certo uma vez que os tempos modernos já não se compatibilizam com a ideia de que podemos estar fechados nos nossos gabinetes, alheados do mundo que nos rodeia.
São necessárias alterações legislativas para repor o poder hierárquico do MP?
Não me parece que exista uma necessidade de reposição, como se tivesse existido uma situação em que esse poder desapareceu. A hierarquia do Ministério Público tem consagração legal e tem os mecanismos adequados para o seu funcionamento. E embora sejam necessárias mudanças, despejar leis para cima dos problemas não os vai resolver. Precisamos de melhorar os processos de decisão, de tomar melhores decisões, de ponderar melhor as opções em cada momento, de muita formação especializada e, por vezes, doses industriais de bom senso. Não vejo como podemos introduzir essas mudanças com soluções legislativas.
A ministra disse que será necessária uma nova era para o MP. Concorda?
Não sei se é uma “nova era” no sentido de precisarmos de uma reforma radical nos alicerces do Ministério Público. Não foi essa a interpretação que fiz das palavras da Ministra. Não está tudo mal no Ministério Público e não me parece que seja necessário refundar e virar tudo do avesso. Mas sentimos necessidades de mudança e importa atacar os problemas que existem. Tenho, por vezes, a sensação que o Ministério Público se fecha sobre si próprio, anquilosado nas suas convicções, sem ter o adequado conhecimento do “mundo” que o rodeia. É necessário trocar ideias e experiências com maior frequência, aumentando a qualidade das decisões, tomando em cada momento as melhores opções (com a escolha dos momentos adequados) e ter capacidade para tomar decisões com maior rapidez e eficiência.
Assine o ECO Premium
No momento em que a informação é mais importante do que nunca, apoie o jornalismo independente e rigoroso.
De que forma? Assine o ECO Premium e tenha acesso a notícias exclusivas, à opinião que conta, às reportagens e especiais que mostram o outro lado da história.
Esta assinatura é uma forma de apoiar o ECO e os seus jornalistas. A nossa contrapartida é o jornalismo independente, rigoroso e credível.
Comentários ({{ total }})
“A insistência no enriquecimento ilícito parece-me desajustada”
{{ noCommentsLabel }}