A advogada Leonor Martins Machado, da Morais Leitão, falou à Advocatus sobre a importância do private enforcement no sistema jurídico português. Leia a entrevista.
Leonor Martins Machado colabora com a Morais Leitão desde setembro de 2009, tendo iniciado as suas funções na área de comercial e M&A e integra, desde 2013, a equipa de contencioso e arbitragem. A advogada associada coordenadora tem experiência em arbitragens nacionais e internacionais, ad hoc e institucionalizadas, relativas aos mais diversos setores de atividade, com especial enfoque nos litígios de natureza societária e de construção.
Tem ainda experiência em processos de private enforcement por infrações ao direito da concorrência, tema a que se tem dedicado com especial enfoque nos últimos anos.
Qual a importância do private enforcement no sistema jurídico português?
O private enforcement confere a qualquer pessoa, singular ou coletiva, o direito a exigir uma indemnização por danos sofridos em resultado de uma infração ao direito da concorrência. Este mecanismo, que é, desde 2018, objeto de um diploma específico – Lei do Private Enforcement (LPE) – assume um papel fundamental ao garantir que as proibições em matéria de concorrência tenham um impacto real nas relações entre particulares.
Assim, as entidades que violem normas de direito da concorrência, não só ficam sujeitas aos processos de public enforcement, conduzidos pelas autoridades da concorrência, que podem resultar na aplicação de coimas, como podem ser alvo de ações de indemnização cíveis por quem reclame ter sofrido danos em virtude da infração cometida.
Além de compensar os lesados, o private enforcement pode atuar como meio dissuasor da prática de infrações anticoncorrenciais, uma vez que os pedidos de indemnização deduzidos pelos lesados são tipicamente avultados. Este mecanismo desempenha ainda um papel importante na identificação de práticas anticoncorrenciais, já que permitem que sejam intentadas ações de indemnização mesmo quando a infração em causa não foi previamente declarada por nenhuma autoridade da concorrência.
A mudança começou a notar-se a partir sensivelmente de 2019 e, portanto, já depois da entrada em vigor da LPE, aquando da instauração de múltiplas ações de indemnização na sequência da decisão da Comissão Europeia de 19 de julho de 2016 (Caso AT 39824), que condenou um conjunto de fabricantes de camiões por práticas concertadas”
É uma tendência recente em Portugal?
A Lei do Private Enforcement é relativamente recente em Portugal, tendo entrado em vigor em agosto de 2018. Esta Lei, que resulta da transposição de uma diretiva europeia, visou a adoção de regras específicas para facilitar ações de indemnização por infrações às normas do direito da concorrência dos Estados Membros e da União Europeia, assegurando o direito do lesado ao ressarcimento integral e a uniformização das regras processuais previstas nos vários Estados Membros de forma a garantir ao lesado o acesso a um nível de proteção o mais uniforme possível.
Contudo, antes da entrada em vigor da LPE, já era possível intentar ações de indemnização por violação de normas de direito da concorrência, designadamente, ao abrigo das regras gerais da responsabilidade civil extracontratual previstas no Código Civil. No entanto, este tipo de ações não tinha particular expressão em Portugal. A mudança começou a notar-se a partir sensivelmente de 2019 e, portanto, já depois da entrada em vigor da LPE, aquando da instauração de múltiplas ações de indemnização na sequência da decisão da Comissão Europeia de 19 de julho de 2016 (Caso AT 39824), que condenou um conjunto de fabricantes de camiões por práticas concertadas. Estas ações judiciais, que ainda se encontram pendentes nos tribunais portugueses constituem o caso pioneiro português no que respeita a ações de private enforcement fundadas em práticas concertadas.
Atualmente, são múltiplas e variadíssimas as ações judiciais de private enforcement que se encontram pendentes no Tribunal da Concorrência, Regulação e Supervisão, registando-se uma clara tendência de aumento deste tipo de ações, em particular, sob a forma de ações populares. O crescimento verdadeiramente exponencial deste tipo de ações, a par de outras não relacionadas com a violação de normas de direito da concorrência, tem inclusivamente merecido um olhar atento por parte de outros países europeus onde este tipo de litigância, por razões várias, não é (pelo menos ainda) tão expressivo.
A Lei do Private Enforcement veio favorecer a dinamização deste tipo de litigância?
A Lei do Private Enforcement veio, sem dúvida, consagrar um regime mais favorável aos lesados, quando comparado com o quadro legal anteriormente aplicável. Aliás, em determinadas matérias, o legislador nacional foi além das normas europeias, reforçando a responsabilização não só das entidades que tenham cometido uma determinada infração, mas também da entidade que tenha exercido influência determinante sobre a infratora, no período da infração.
De entre as normas que tutelam a posição do lesado e que favorecem o recurso a este tipo de ações, destacaria as seguintes: passou a estar previsto (i) uma presunção refutável da existência de danos, o que, na prática, significa que, uma vez demonstrada a infração anticoncorrencial, os lesados estão dispensados de fazer prova da existência de um dano decorrente dessa infração, cabendo aos infratores fazer prova do contrário; (ii) uma presunção refutável de repercussão dos (presumidos) custos adicionais nos clientes indiretos, sempre que verificadas determinadas condições; (iii) uma presunção não refutável da existência, natureza e âmbito material, subjetivo, temporal e territorial de uma determinada infração quando a mesma seja declarada por via de uma decisão definitiva da Autoridade da Concorrência ou através de uma decisão, transitada em julgado, de um tribunal de recurso, o que significa que, nestes casos, o suposto lesado está dispensado de fazer prova da infração, não sendo sequer admissível prova em contrário; (iv) uma presunção refutável da existência das infrações declaradas por decisões das autoridades de concorrência ou proferidas por tribunais de recurso de outros Estados Membros; e ainda (v) o alargamento do prazo de prescrição do direito de indemnização de três para cinco anos.
No caso particular das ações populares, e embora tal não resulte da LPE, cabe destacar, enquanto fator de dinamização deste tipo de ações, a aplicação de um regime de opt-out, do qual resulta que o demandante representa por iniciativa própria, sem que seja necessário mandato ou autorização expressa, todos os titulares dos direitos ou interesses em causa, a menos que estes exerçam o direito de auto-exclusão, (ii) o facto de as entidades que propõem as ações beneficiarem de um regime de isenção de custas e ainda (iii) o facto de não estar prevista uma fase de certificação (isto é, de confirmação de que a ação pode prosseguir como ação popular e de delimitação do círculo de lesados representados) antes da análise do mérito da ação, como sucede noutros países.
Como se faz o equilíbrio entre direitos dos lesados e garantias das empresas visadas?
A legislação que regula o private enforcement contém um regime globalmente favorável aos lesados, que é fruto de uma opção consciente do legislador europeu no sentido de garantir o direito efetivo à reparação de potenciais danos causados por práticas anticoncorrenciais. Não obstante, existem naturalmente garantias para as empresas visadas, assegurando um equilíbrio entre os direitos de ambas as partes. Desde logo, está previsto que a reparação integral dos danos não deve dar lugar a reparações excessivas, designadamente, por meio de indemnizações punitivas. Além disso, as empresas visadas têm direito a produzir prova para refutar a existência da infração, nos casos em que não opera a presunção inilidível quanto à existência da mesma, podendo ainda refutar a existência de danos e contestar a sua quantificação. Por outro lado, as entidades visadas podem demonstrar que os custos adicionais decorrentes de uma determinada conduta foram repercutidos ao longo da cadeia de produção ou de distribuição, com isso reduzindo total ou parcialmente o dano.
Existem também garantias legalmente previstas em matéria de proteção de segredos comerciais e de outra informação comercialmente sensível, aspeto que é particularmente relevante no contexto de pedidos de acesso a documentação e informação dirigidos aos infratores. A este respeito, a LPE prevê, por exemplo, a possibilidade de ocultar excertos sensíveis de documentos, conduzir audiências à porta fechada e ainda restringir o número de pessoas autorizadas a ter acesso aos meios de prova, nomeadamente, limitando o acesso aos representantes legais e defensores das partes ou a peritos sujeitos a obrigação de confidencialidade.
O Tribunal da Concorrência, Regulação e Supervisão, que é um tribunal especializado com competência para decidir as ações de private enforcement, tem naturalmente um papel essencial, ao longo do processo, na salvaguarda do necessário equilíbrio dos direitos e garantias dos demandantes e dos demandados.
Quais os maiores desafios que este tipo de ações convocam para os vários intervenientes (partes, advogados, tribunais)?
As ações de private enforcement são bastante complexas de um ponto de vista factual e técnico. A demonstração e quantificação dos danos decorrentes da conduta anticoncorrencial pressupõe, nomeadamente, o acesso e análise de dados de natureza contabilística, económica e financeira (nem sempre disponíveis, em virtude do tempo decorrido entre a infração e a ação judicial), a elaboração de cenários contrafactuais que simulem a realidade que teria ocorrido na ausência da conduta anticoncorrencial, a aplicação de técnicas de regressão, entre outras especificidades. São, por isso, processos tendencialmente longos e dispendiosos para as partes, na medida em que a demonstração e cálculo dos danos é tipicamente feita por entidades especializadas.
Por seu turno, o Tribunal da Concorrência, Regulação e Supervisão, bem como os tribunais de recurso, apesar de contarem com juízes que têm conhecimentos especializados nestas matérias, deparam-se com pareceres técnicos de conteúdo bastante complexo, muitas vezes seguindo metodologias distintas e apresentando conclusões diametralmente opostas, sendo-lhes difícil, justamente pela especificidade e complexidade do tema, a tomada de posição sobre o mérito de tais pareceres e das conclusões ali apresentadas. É certo que a LPE estabelece que a Autoridade da Concorrência pode ter intervenção, a pedido do Tribunal, na quantificação dos danos resultantes da infração ao direito da concorrência, mas está igualmente prevista a possibilidade de a Autoridade da Concorrência requerer ao tribunal a dispensa fundamentada de prestação de tal assistência.
Neste contexto, uma solução que poderia ser útil, e que se encontra prevista na lei processual civil, seria a designação, pelo tribunal, de um assistente técnico, com conhecimentos e comprovada experiência nestas matérias, que pudesse esclarecer dúvidas de caráter mais técnico ou ajudar o juiz no seu processo de ponderação e valoração da prova apresentadas pelas partes, desde que os direitos das partes, designadamente em termos de contraditório, estivessem devidamente salvaguardados.
Qual o impacto das novas regras europeias nos litígios coletivos e class actions e a sua aplicação no contexto português?
O recente enquadramento europeu no que respeita a litígios coletivos e class actions trouxe novas regras para a proteção dos consumidores, mas a sua aplicação em ações relacionadas com violações de normas de concorrência suscita dúvidas e irá, provavelmente, ser tema de debate. Isto porque o âmbito do Decreto-Lei n.º 114-A/2023, que transpôs a diretiva europeia sobre ações coletivas, parece cingir-se às infrações às disposições do direito da União Europeia constantes do Anexo I da Diretiva (UE) 2020/1828, que não menciona disposições relativas ao direito da concorrência. No entanto, não excluo a hipótese de algumas das normas deste diploma virem a ser aplicadas no contexto de ações de indemnização fundadas na infração ao Direito da Concorrência.
De entre as várias normas constantes deste diploma, destacaria, pelo impacto que poderiam neste tipo de ações caso fossem aplicáveis, (i) as regras relativas à legitimidade para propor ações coletivas nacionais, nas quais se prevê, entre o mais, a independência do autor e a ausência de influência de terceiros, em particular de profissionais que tenham interesse económico em intentar uma ação coletiva, nomeadamente no caso de financiamento por terceiros e (ii) as normas relativas ao financiamento por parte de terceiros, que estabelecem que os demandantes deverão disponibilizar ao tribunal o acordo de financiamento, incluindo uma síntese financeira com a enumeração das fontes de financiamento utilizadas para apoiar a ação coletiva, devendo esse acordo garantir a independência do demandante e a ausência de conflitos de interesse.
Qual foi o seu caso mais significativo de uma ação destas?
As múltiplas ações de indemnização, que foram intentadas no Tribunal da Concorrência, Regulação e Supervisão, na sequência da decisão da Comissão Europeia de 19 de julho de 2016 (Caso AT 39824) relativa ao denominado processo dos camiões, são, neste momento, em Portugal e noutras jurisdições, o caso paradigmático das ações de private enforcement fundadas em práticas concertadas. Tem sido, por isso, bastante enriquecedor participar ativamente nestes processos, que têm permitido testar várias normas de direito substantivo e cariz processual, designadamente, as que respeitam à repartição do ónus da prova e quantificação dos danos, matéria que é absolutamente central no âmbito destes processos, bem assim como o entendimento dos tribunais sobre determinados aspetos.
As ações de private enforcement relativas ao processo dos camiões vieram seguramente moldar o panorama português do private enforcement e o que nelas está e virá a ser decidido pelo Tribunal da Concorrência, Regulação e Supervisão e pelos tribunais de recurso será certamente importante para futuras ações.
Tradicionalmente, as ações de private enforcement instauradas em Portugal são do tipo follow-on, ou seja, assentam numa infração previamente declarada por uma autoridade da concorrência, embora também haja algumas ações de natureza mista, ou seja, com uma componente stand-alone e com uma componente follow-on”
Existem formas alternativas de compensação dos lesados para além do recurso aos tribunais judiciais?
Em princípio, são aplicáveis mecanismos alternativos de resolução dos litígios, designadamente, a arbitragem e a mediação, ainda que, tanto quanto é possível saber, não tenham particular expressão neste domínio.
Como encara a evolução dos casos de private enforcement nos próximos anos? A tendência será de aumento?
Antecipo que a tendência de crescimento destas ações, designadamente, as que assumem a forma de ação popular, se mantenha nos próximos anos devido aos fatores de incentivo que nomeei anteriormente.
À semelhança do que tem sucedido, por exemplo, na Alemanha, parece-me que poderá haver um crescimento das ações de private enforcement do tipo stand-alone, ou seja, ações que não têm por base uma declaração prévia da existência de uma infração por parte de uma autoridade da concorrência. Tradicionalmente, as ações de private enforcement instauradas em Portugal são do tipo follow-on, ou seja, assentam numa infração previamente declarada por uma autoridade da concorrência, embora também haja algumas ações de natureza mista, ou seja, com uma componente stand-alone e com uma componente follow-on.
Por outro lado, poderemos vir assistir a uma maior diversidade das áreas subjacentes às ações de private enforcement, sendo relevante, neste contexto, o Regulamento dos Mercados Digitais e o Regulamento dos Serviços Digitais, bem como o setor laboral, em particular, os acordos de não-aliciamento (no-poach agreements) ou ainda os acordos de fixação de salários.
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“Antecipo o crescimento das ações populares”, diz advogada da Morais Leitão
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