“Estamos a conseguir o excedente e a redução da dívida à custa das famílias”, diz bastonária dos Contabilistas Certificados

As famílias portuguesas "estão a passar um mau bocado", afirma Paula Franco, a bastonária dos Contabilistas Certificados, que defende que o OE2024 deve focar-se no alívio do IRS.

Numa altura em que os juros estão em trajetória ascendente, é importante que as contas públicas “não derrapem”, mas a bastonária da Ordem dos Contabilistas Certificados (OCC) deixa um aviso: é também fundamental ter um “certo equilíbrio” para não deixar “as famílias em asfixia”. Até porque tem sido principalmente à custa delas que se tem conseguido reduzir a dívida e rumar a um excedente orçamental, considera Paula Franco, em entrevista ao ECO, a poucos dias da entrega do Orçamento do Estado para 2024, no Parlamento.

A responsável sublinha que as famílias em Portugal “estão a passar por um mau bocado, principalmente a classe média”, daí que entenda que o expectável é que o Governo se foque, quanto ao próximo ano, no alívio do IRS, e não se ficando apenas por quem tem rendimentos menos expressivos.

Por outro lado, Paula Franco recomenda “alguma precaução” ao Executivo, avisando que já nota sinais de estagnação na economia portuguesa.

E sobre os salários, a bastonária avança com uma proposta alternativa ao 15.º mês de salário sugerido pela Confederação Empresarial de Portugal (CIP): fazer com que um aumento remuneratório acima de um determinado patamar fique isento de descontos, de modo a que seja neutro em termos fiscais.

O Orçamento do Estado está prestes a entrar no Parlamento. Neste momento, quais são as suas expectativas?

Estamos todos com muita expectativa. Claro que todos percebemos que, neste momento, o foco são as famílias. Portanto, vai recair, com certeza, mais no IRS. As famílias em Portugal estão a passar por um mau bocado, principalmente a classe média. Por isso, o que é expectável é que exista uma descida de IRS que afete a classe média. Não só [quem tem rendimentos] mais baixos, mas que se vá um bocadinho mais longe, para que a classe média seja também abrangida.

O Governo já disse que fará esse alívio, mas não explicou como. Faz mais sentido, por exemplo, reduzir as taxas ou criar novos escalões? Que caminho se poderia tomar?

Provavelmente, terá de ser um caminho olhando para as duas situações. Quanto a aumentar escalões, já se fez isso em determinada altura e também não houve grandes soluções. Por isso, pode passar por um misto das duas situações: redução de taxas e a inclusão de mais algum escalão que seja necessário.

É altura, se calhar, de se mexer na dedução específica, embora possa ser abatido, em alternativa, o valor que se descontou para a Segurança Social.

E a dedução específica? Está congelada há mais de uma década. Seria esta a altura certa para rever este valor?

A dedução específica está indexada à Segurança Social e ficou um bocadinho parada no tempo. É verdade. As outras deduções também estagnaram no tempo. É altura, se calhar, de se mexer na dedução específica, embora possa ser abatido, em alternativa, o valor que se descontou para a Segurança Social. Quase todos os contribuintes acabam por descontar acima [da dedução específica], exceto aqueles que não têm contribuições para a Segurança Social, nomeadamente os reformados.

Quanto ao mínimo de existência, devia parar de proteger o salário mínimo? Ou seja, faz sentido o salário mínimo pagar IRS, já que tem crescido ano após ano e vai ultrapassar os 800 euros?

Não faz muito sentido, mas era uma coisa que já estava prevista. No Orçamento do Estado para 2023, foi alterada a fórmula e foi indexada ao Indexante dos Apoios Sociais, mantendo-se aquele valor mínimo que já estava previsto. Como esse valor mínimo era aquilo que equivalia a 14 vezes o salário mínimo de 2023, se esse valor não for mexido, com o aumento que se prevê para 2024, o que vai acontecer é que pessoas com o salário mínimo vão pagar imposto, se não tiverem despesas e deduções suficientes para abater. Não faz muito sentido quem tem o salário mínimo pagar imposto em Portugal. Mas temos de perceber também que o salário mínimo tem subido consideravelmente, e bem, nos últimos anos. É difícil acompanhar, não mexendo ou não tributando alguma coisa no salário mínimo.

O salário mínimo está cada vez mais próximo do salário médio. Como é que se pode justificar que um não pague imposto e o outro pague?

Ainda assim, o salário médio continua a ser superior ao salário mínimo. Portanto, o mínimo realmente é aquilo que todos os portugueses têm de ter. Daí haver a opinião generalizada de que não deve existir tributação sobre o salário mínimo, porque é o mínimo que se considera que é necessário para se viver.

Então, faz sentido mudar a lógica do mínimo de existência, guiando-o pelo IAS em vez de pelo salário mínimo?

São opções. O mínimo de existência teve um valor fixo durante muito tempo, que era alterado todos os anos. Foi indexado ao salário mínimo. Agora será indexado ao IAS. Enfim, são formas de estabelecer os mínimos. Se tem lógica ou não, tudo é uma questão de se mexer, depois, na fórmula de cálculo. Claro que ao indexar-se ao IAS foi claramente para baixar o nível de rendimentos que estão sujeitos a tributação.

Paula Franco, bastonária da Ordem dos Contabilistas Certificados Luís Francisco Ribeiro

No caso do IRS, o acordo de rendimentos celebrado na Concertação Social prevê que em 2024 os escalões do imposto sejam atualizados em, pelo menos, 4,8%. Que lhe parece esse valor, tendo em conta o cenário?

É uma tentativa precisamente de aproximar a atualização dos escalões àquilo que supostamente será a inflação que teremos no ano 2023. É insuficiente porque, para além da inflação e do ajustamento dos preços e salários, há um problema muito grave nas famílias portuguesas, que é o aumento das taxas de juro, que é consideravelmente superior àquilo que é a taxa de inflação.

Deveria haver uma atualização mais expressiva para dar alguma margem de rendimento extra aos portugueses?

Fazer sentido, faz. Mas também sabemos que esse esforço não é possível, porque o rendimento também é necessário para a despesa pública. Não estou a ver que a equação seja milagrosa a ponto de se conseguir descer os impostos e conseguir cobrir toda a despesa necessária.

Mas a receita tributária tem crescido à boleia da inflação. Tendo em conta essa receita extraordinária, não seria o momento para fazer um alívio fiscal?

Fala-se muito nesse excedente, nessa receita extraordinária. Tem de existir alguma precaução. Tal como os juros têm subido para as famílias portuguesas, também têm subido para o Estado português. A economia tem demonstrado um comportamento muito positivo, na sua evolução, mas o Estado tem de ser um bocadinho cauteloso ao considerar que esse excedente pode cobrir tudo aquilo que é necessário.

O facto de contas não derraparem é importante. Mas, se calhar, também seria importante ter um certo equilíbrio para não fazer com que as famílias entrem em asfixia.

Sobre esse excedente e lembrando também que o Governo insiste na redução da dívida pública. Estamos a conseguir esses dois objetivos de forma sustentável ou à custa do país e da sua competitividade?

Estamos a conseguir à custa das famílias, não tanto da competitividade. As famílias têm sido penalizadas e têm contribuído muito para esse excedente. Claro que a dívida que temos é tão grande que será para pagar ao longo de muitos anos. O facto de contas não derraparem é importante. Mas, se calhar, também seria importante ter um certo equilíbrio para não fazer com que as famílias entrem em asfixia.

Prudência, mas não em excesso?

Exatamente.

E o que lhe parece a proposta da Confederação Empresarial de Portugal (CIP) de se pagar um 15.º mês aos trabalhadores isento de descontos?

Essas medidas são sempre positivas, porque levam a que as empresas se empenhem em ter um tipo de gratificação ou compensação para os trabalhadores, que é tão importante para algum tipo de despesas anuais que todas as famílias têm. O facto de não ter tributação agrada, obviamente, quer a quem paga, quer a quem recebe. Acaba por ter um efeito positivo naquilo que é o resultado da obtenção desse rendimento. Há várias formas que se podem usar para isso. Por exemplo, um valor sem tributação em determinado aumento, que foi uma questão que a Ordem dos Contabilistas Certificados falou em tempos. Ou seja, se as empresas aumentarem, por exemplo, 500 euros por ano, não teriam nenhum tipo de tributação [nesse aumento]. Portanto, o Estado não aumenta o seu rendimento, mas também não perde rendimento.

Paula Franco, bastonária da Ordem dos Contabilistas Certificados Luís Francisco Ribeiro

E uma redução da Taxa Social Única (TSU)? É uma proposta que os patrões recuperaram, apesar de todo o histórico conturbado.

A TSU é um dos encargos mais elevados. É dos valores que as empresas têm mais dificuldade em cumprir. Não há dúvida. Mas contribuições são importantes para aquilo que é a sua aplicação e o benefício que cada um dos trabalhadores tem, na proteção na doença, na reforma, entre outros. Portanto, é uma discussão difícil de se saber qual é a solução certa, porque a sustentabilidade da Segurança Social também é algo que se tem de ter muito cuidado. A redução de 1% pedida pelas confederações empresariais, não digo que não seja importante para as empresas, mas pode também pôr em causa algo todos os nossos benefícios. Tem de ser decidido com muito cuidado, porque a sustentabilidade da Segurança Social também é algo muito importante.

A ministra do Trabalho tem dito e repetido que as contribuições sociais têm crescido por efeito do dinamismo do mercado de trabalho. Neste cenário, não está mais justificada uma eventual redução da TSU?

Apesar do que diz respeito ao pleno emprego e a tudo aquilo que tem tornado a Segurança Social mais sustentável, acho que ainda não se pode dizer, com toda a segurança, que o sistema tem sustentabilidade para os próximos 30 ou 40 anos. Portanto, é preciso cautela, neste ponto. Tivemos um bom momento. Há mais pessoas a contribuir e isso leva a que a Segurança Social tenha efetivamente contribuições muito positivas face ao previsto, mas não quer dizer que ela esteja segura e sustentável. Portanto, é preciso muita precaução.

Acho sempre que é o ano para baixar o IRC, porque sou sempre defensora de baixar o IRC, para tornar as empresas mais competitivas.

Vamos ao IRC. O ano de 2024 será o momento certo para uma baixa transversal?

Acho sempre que é o ano para baixar o IRC, porque sou sempre defensora de baixar o IRC, para tornar as empresas mais competitivas. As empresas contribuem com vários tipos de pagamentos ao Estado, que não são só o IRC e que já estão assegurados. O IRC é o imposto mais residual do ponto de vista da receita fiscal. Por isso, sempre fui defensora de uma descida do IRC.

Não mexendo o Governo no IRC, de que outro modo poderia aliviar a carga fiscal das empresas? Através das tributações autónomas, por exemplo?

A maioria das empresas paga quase só imposto por via das tributações autónomas. A tributação autónoma é algo que aparece mais como uma taxa. Não é uma correção fiscal como devia ser e como foi durante muitos anos. Transformou-se numa taxa para suprimir determinados hábitos nas empresas. No fundo, uma viatura hoje é necessária para qualquer desempenho de atividade. Não podemos dizer que elas têm uma utilização só particular e por isso terem este encargo adicional, porque na prática o desenvolvimento da economia e das empresas também se faz com utilização destes recursos. Há um certo exagero nas taxas de tributação autónoma aplicáveis, nomeadamente as viaturas.

Em 2024 devem continuar as medidas extraordinárias de resposta à inflação, como o IVA zero e eventualmente novos apoios para as famílias?

Um país dependente de subsídios nunca é uma boa solução, mas efetivamente estamos a passar por um momento que ainda não estabilizou. Daí a necessidade de se ter recorrido a estes apoios extraordinários, que são precisos para colmatar os problemas vividos neste momento. O IVA zero para alguns bens alimentares, sinceramente parece-me que tem pouco impacto. Ainda assim, conta alguma coisa. Os apoios diretos à renda e aos juros, todos esses para as famílias, que estão afixadas, podem ser soluções. Podem resolver o problema de imediato, mas não resolvem a longo prazo. É difícil dizer se os apoios se vão manter. Diria que devem ser avaliadas as situações e ajustados os apoios em função de necessidades.

Com que sentimento olha então para 2024?

Sou muito otimista. Fui muito otimista quanto a 2022 e 2023, e foram dois anos bons em termos de economia. Agora noto que começa a haver alguma estagnação. Até ao final do ano, com o Natal, é normalmente um trimestre que corre sempre bem do ponto de vista económico, mas noto alguma estagnação. Noto, pela primeira vez, sinais de que o excesso de procura face à oferta de emprego começa a estar mais nivelado, o que significa que já há mais pessoas disponíveis para emprego e isso pode significar que a economia está a estagnar lentamente. Não estou tão otimista para 2024 como estive para 2022 e 2023. Espero estar errada.

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