A um mês da próxima campanha de recolha, onde os alimentos mais doados estarão abrangidos pelo IVA a 0%, Isabel Jonet rejeita efeitos positivos da medida e defende um combate à pobreza estrutural.
A maior rede de ajuda alimentar do país sentiu um aumento da procura durante o ano de 2022, na sequência dos níveis altos da inflação. Embora tenha conseguido dar resposta às famílias mais carenciadas, e o número de bens doados não tenha abrandado, a presidente do Banco Alimentar afirma 2023 começou com um primeiro trimestre “muito difícil” e não tem esperança que a situação se inverta. Há três décadas a liderar a instituição, Isabel Jonet rejeita o efeito de medidas sociais conjunturais, como o IVA zero, e defende uma maior urgência no combate à pobreza estrutural em Portugal.
Esta entrevista integra a segunda edição do anuário do Capital Verde, Yearbook, que será publicada no primeiro semestre de 2023.
Como foi o ano de 2022 em termos de ajudas?
O ano de 2022 caracterizou-se pelo início da guerra, mas também por um aumento da inflação. Este aumento tem sido gradual e portanto as pessoas tiveram espaço para se irem habituando à subida dos preços. Só que o aumento constante, que fez com que a inflação fosse superior ao que se poderia prever, atingiu, no final do ano, valores inimagináveis. Esta inflação não tem só a ver com a guerra. Tem a ver com a quantidade de dinheiro que se injetou na economia para lutar contra os efeitos da pandemia.
Tivemos aqui dois fatores que coincidiram e tiveram um efeito maior do que aquilo que seria esperado, e as famílias mais carenciadas foram vendo condicionados os seus rendimentos face ao aumento da inflação. No fundo, se tiver a imagem de um copo de leite, este foi-se enchendo, de mês para mês, cada vez menos, até que se chegou a um momento em que não havia mais leite. Ou, neste caso, não havia mais dinheiro para comprar leite. As famílias foram acomodando este acréscimo de inflação e não foram pedindo ajuda, até ao momento em que o tiveram de fazer. Isto fez-se sentir, sobretudo, depois do verão [passado], em que houve mais pedidos de apoio das famílias mas também das próprias instituições de solidariedade social que têm vários tipos de respostas sociais, como os lares e creches. As próprias instituições tiveram que lidar com este aumento da inflação.
O Banco Alimentar conseguiu dar resposta aos pedidos que receberam?
Felizmente, temos conseguido, porque lançámos a rede de emergência alimentar durante a pandemia, e portanto ainda tínhamos capacidade de resposta alimentar para poder continuar a distribuir produtos. Reforçámos esse apoio.
Quantas famílias estão a ajudar?
Há 21 Bancos Alimentares em todo o país que apoiam cerca de 2.600 instituições. Estas instituições chegam a cerca de 400 mil pessoas. Sem o apoio do Banco Alimentar, muitas das instituições tinham fechado, em 2022.
As famílias foram acomodando este acréscimo de inflação e não foram pedindo ajuda, até ao momento em que o tiveram de fazer. As próprias instituições tiveram que lidar com este aumento da inflação.
Este valor compara-se de que forma com os anos anteriores?
O valor tem sido o mesmo dos últimos anos, com exceção da pandemia. Tem sido bastante constante porque em Portugal temos uma pobreza estrutural que é muito severa. Falamos de dois milhões de pessoas que vivem com menos de 450 euros por mês. E depois temos uma pobreza conjuntural que tem mais a ver com a situação da economia e aquilo que é a pressão sobre as famílias.
A inflação e o aumento dos preços dos alimentos tem resultado numa diminuição no número de doações?
O Banco Alimentar faz duas recolhas por ano. Em maio e em dezembro. No ano passado, não houve decréscimo nas doações e em dezembro a campanha de recolha superou as expectativas. Recolhemos 2.086 toneladas de alimentos. Tivemos uma grande adesão em relação às expectativas que tínhamos. Pensávamos que íamos ter os sacos menos cheios.
E quanto à próxima? A expectativa mantém-se alta?
As nossas expectativas são que as campanhas possam sempre ser o melhor possível, em cada momento. Tenho a certeza que a próxima campanha vai ser o melhor que puder ser naquele momento, dia 6 e 7 de maio. Os preços estão mais caros mas nessa altura já estará em vigor a supressão do IVA. Isto fará com que os preços dos produtos mais básicos, que são aqueles que são mais doados nas campanhas, estejam um pouco mais baixos. Mas vamos ver.
Como encara a medida do IVA zero anunciada pelo Governo? Há quem afirme que possa vir a ter o efeito contrário e, potencialmente, aumentar os preços…
A isenção do IVA num conjunto de produtos mais básicos da alimentação, para mim, não é a medida mais adequada para combater a atual crise e situação que afeta muitas famílias. Retirar o IVA dos produtos é uma medida que é universal, não abrange só as famílias mais carenciadas. Tem impacto em todas as famílias independentemente da sua situação económica. Ora, estas medidas sociais devem privilegiar, sobretudo, as famílias de maior carência.
Parece-me que o Governo aprovou esta medida porque não tem alternativa. Todos os países da Europa fizeram o mesmo, mas é mais uma medida política do que uma medida social. É uma medida que pretende agradar a classe média que está, sobretudo, a ser atingida nos rendimentos. Não só pela inflação, mas também pelas taxas de juro que fizeram com que o crédito à habitação ficasse mais caro.
Qualquer tipo de alívio para as famílias mais carenciadas é bom, e é um balão de oxigénio. As famílias vivem com orçamentos muito apertados e têm dificuldades em acomodar quaisquer tipos de aumentos. Mas esta supressão do IVA não é uma medida que eu recomendaria. Não vai dar o alívio que vamos esperar, sobretudo porque os preços podem variar antes da aplicação desta medida. Noutros países, verificou-se que a medida não teve o impacto que era suposto. Estando limitada no tempo, até seis meses, se calhar não vai ter o impacto que é esperado.
E relativamente ao apoio de 30 euros para as famílias mais vulneráveis? Vai este apoio ter algum impacto no orçamento familiar?
Vai ter, sim. Quando as famílias são muito carenciadas, qualquer verba é muito relevante porque pode fazer a diferença entre conseguir pôr o pequeno-almoço para os filhos todos os dias, ou não. Esta medida vem se a somar às outras anteriores. A indexação à tarifa social da energia não é a mais correta. Se envolver as famílias abrangidas pela taxa social da energia é muito limitativa.
Mas mesmo assim, continuamos apenas a ter medidas conjunturais e não estruturais. A pobreza estrutural é muito grande, temos salários muito baixos. Se passamos a vida a dar balões de oxigénio acabamos por não dar um sinal claro em termos de políticas de trabalho e salariais. Acho que é mais importante olhar para o todo do que dar apoios existencialistas e limitados no tempo porque acabam por criar mais dependências. Estas famílias habituam-se a depender dos apoios e estão sempre a ver o que vem a seguir. Não é estruturante.
Nas últimas semanas, os supermercados têm estado debaixo de fogo a propósito do aumento de preços dos alimentos. Como interpreta as críticas e a reação destes retalhistas?
Cerca de 50% do que se compra em Portugal, compra-se em promoções e os supermercados passam a vida a fazer promoções. Como há preços mais caros e as pessoas têm que comer, os supermercados acabam sempre por ter mais receita porque recorrem às promoções. Mas não é isso que me preocupa. O que me preocupa é haver incapacidade de se conseguir ter uma estratégia de longo prazo de combate à pobreza mais profunda.
O retrato das famílias que recorrem aos apoios do Banco Alimentar mudou de alguma forma?
Não. A tal pobreza estrutural está muito ligada às pessoas de baixas pensões de reformas, isto é, as pessoas mais velhas, pessoas com poucas qualificações, com deficiências ou em situação de desemprego.
Mas no caso da pobreza conjuntural, temos muitos trabalhadores pobres. Falamos de famílias e pessoas que têm um salário mas aquilo que ganham não chega para pagar as despesas no final do mês. Sobretudo porque em Portugal temos um problema terrível, que é o preço da habitação. Temos o peso da renda de casa ou do crédito à habitação que, em algumas famílias, representa cerca de 50% do rendimento. Não se encontram casas ou apartamentos, em Lisboa, por menos de 600 euros. Não há quartos por menos de 400 euros. E estamos a falar de quartos. Isto faz com que uma grande fatia do orçamento seja consumida pela habitação. E essa fatia é só aumenta.
Com que olhos encara o ano de 2023? Em janeiro, antecipava que o primeiro trimestre fosse bastante difícil para as famílias e empresas. Essa previsão veio a confirmar-se?
Sim. A prova deste tipo de medidas que foram tomadas é isso mesmo. Apesar de a inflação estar a dar sinais de abrandamento, no resto, não vemos uma previsão de melhoria mais sustentada. Aquilo que se verifica é alguma pressão ao nível do emprego. O desemprego está a aumentar e vemos em vários fatores que ainda não se verifica uma tendência para uma melhoria mais sustentada. Foi um primeiro trimestre muito difícil e não vemos uma esperança que permita inverter a situação. Não há otimismo que nos permita dizer que as coisas vão melhorar e a economia vai recuperar. Há muita incerteza.
E também vai colocar pressão sobre o Banco Alimentar?
Sim, vai colocar uma grande pressão, porque vamos ter mais pedidos, de certeza.
E quanto ao fluxo migratório a que assistimos este ano por causa da guerra? Sentiram um aumento na procura?
Apesar de tudo, não tem havido tanta pressão externa de pedidos de pessoas imigrantes. Achei que fossemos receber mais refugiados ucranianos ou refugiados afegãos. Achei que, com as eleições no Brasil, um conjunto maior de brasileiros viesse para Portugal. Mas não, os números mantêm-se constantes. Há muitos brasileiros, principalmente mulheres com filhos, a pedir ajuda, porque vêm para Portugal sem ter nada cá. Instalam-se em casa de familiares mas têm que tratar da sua sobrevivência até conseguirem emprego e, eventualmente, uma casa.
Quanto aos ucranianos, através da plataforma We Help Ukraine pudémos encaminhar várias famílias para instituições de solidariedade no seu novo local de residência. O problema dos refugiados ucranianos foi, precisamente, o da habitação.
Continuamos apenas a ter medidas conjunturais e não estruturais. A pobreza estrutural é muito grande, temos salários muito baixos. Se passamos a vida a dar balões de oxigénio acabamos por não dar um sinal claro em termos de políticas de trabalho e salariais.
Enquanto presidente do Banco Alimentar, já passou por várias etapas difíceis no seu mandato. Será o ano de 2023 mais uma? A pandemia marcou-a muito, certamente.
Sim, e muito. Já assisti a muitas crises. Estou à frente do Banco Alimentar há quase 30 anos e todas as crises que vivi são diferentes, com consequências e impactos diferentes. Seja nas pessoas, na economia, ou nas instituições.
Acho que não se pode perder a esperança e sabemos que o primeiro semestre de 2023 foi muito difícil e por isso, o Banco Alimentar, além de ter de estar presente, tem que sair reforçado. Nós vamos manter a rede de emergência alimentar, vamos tentar reforçar os cabazes de alimentos que serão entregues. O que não queremos é que nenhuma família portuguesa perca a esperança por falta de alimentos. Vamos procurar, através das instituições, garantir todo o alimento a que as famílias têm direito. E isto faz-se em complemento com o Banco de Bens Doados. Se as famílias precisam de detergentes ou produtos de higiene pessoal, ou de computadores para poderem trabalhar ou estudar, ou roupa e calçado… há uma ligação grande entre o Banco Alimentar e o Banco de Bens Doados para que a ajuda às famílias possa ser tão global quanto possível.
O Banco de Bens Doados tem ajudado o mesmo volume de famílias que o Banco Alimentar?
O Banco de Bens Doados é como se fosse um banco não alimentar. Distribui pelas instituições produtos não alimentares que possam complementar o cabaz alimentar. Mas também permite equipar casas com mobiliário mais adequado às necessidades. Quando chegaram refugiados ucranianos, equipámos muitas casas porque recebemos muitas doações de hotéis. Há uma complementaridade na ação que permite ajudar as famílias de forma mais integral.
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