O sócio da SRS José Jácome é a escolha da Advocatus para a rubrica "Como é fazer contencioso em plena pandemia?".
Sócio do departamento de Contencioso e Arbitragem, José Jácome tem experiência nas áreas de Contencioso Civil e Comercial, Penal e contra-ordenacional, bem como em processos de arbitragem. Com mais de 30 anos de experiência no exercício da advocacia, foi responsável pela coordenação de grandes processos judiciais e arbitrais, envolvendo empresas nacionais e internacionais.
As férias judiciais são um tema que é politicamente recorrente. Perante este contexto da pandemia, concorda que deveriam ser reduzidas, de forma a recuperar o tempo perdido? Parece-me uma solução simples mas que terá alguns anti – corpos.
Actualmente as férias judiciais já estão “reduzidas” a um mês e meio: segunda quinzena de Julho e Agosto, tendo sido, na prática, suprimida a primeira quinzena de Setembro.
A redução das férias judiciais tem dois efeitos: permite a realização de mais audiências, designadamente julgamentos, e reduz o período de suspensão dos prazos processuais. Como é óbvio ambos os referidos efeitos têm impacto directo na recuperação dos atrasos causados pela pandemia. Não creio que a redução das férias judiciais possa ser “a solução” para recuperar os atrasos na marcha dos processos, mas não me parece mal que este ano (e talvez no próximo) as férias possam ser reduzidas ao mês de Agosto.
Certamente haverá receios de que a redução temporária venha para ficar, como sucedeu com o anterior “corte” da primeira quinzena de Setembro que passou de temporário a definitivo. As férias judiciais fazem parte de hábitos de trabalho enraizados na cultura judiciária portuguesa – para magistrados, advogados e funcionários por igual – e não creio que façam “parte do problema”.
Na chamada justiça cível o problema está aliás em grande medida resolvido, uma vez que os nossos prazos de resolução de litígios já comparam bem com os da maioria dos países mais desenvolvidos, o que não quer dizer que a nossa ambição não deva ser fazer melhor porque é cada vez mais claro que a justiça mais rápida é a justiça mais justa.
Não creio que a redução das férias judiciais possa ser “a solução” para recuperar os atrasos na marcha dos processos, mas não me parece mal que este ano (e talvez no próximo) as férias possam ser reduzidas ao mês de Agosto”.
Fala-se ou falou-se em situações de pre rutura do SNS. E do sistema de Justiça? O que se pode esperar com esta paragem derivada da pandemia?
No que diz respeito à justiça cível a situação era em minha opinião boa como já vimos e não creio que se possa falar de uma situação de pré-ruptura, mas as paragens e restrições trouxeram atrasos – sobretudo com adiamento de audiências – e haverá que recuperar o mais rapidamente possível. Creio que a boa solução passará pela análise da situação tribunal a tribunal (é uma boa tarefa para os inspetores judiciais) e pela implementação de medidas específicas adequadas a cada caso.
Já na justiça administrativa e fiscal, em que a demora na resolução dos casos continua a ser indigna de um estado de direito, a situação é de ruptura há muito tempo e a pandemia agrava o que já era gravíssimo. Há porém que fazer a nota de que o CAAD e as arbitragens tributárias vieram amenizar em grande medida os problemas na área fiscal. Pena é que o CAAD não tenha o mesmo grau de adesão e eficácia em matéria contencioso administrativo.
Quem serão as maiores vítimas desta paragem?
Os particulares em geral, isto é as empresas e os cidadãos, são sempre as maiores vítimas do que de mau ocorre na administração da justiça.
O discurso dos atrasos na Justiça é recorrente. Já foram adiadas 50 mil diligências devido à Covid-19. Esta passará agora sempre a ‘desculpa’ para esses mesmos atrasos?
Quero crer que não. Creio que há um esforço genuíno das estruturas judiciárias em geral e dos tribunais em particular para substituir uma postura e uma cultura corporativistas por uma postura e uma cultura de serviço à comunidade. Claro está que os resultados concretos variam muito de tribunal para tribunal e de juiz para juiz – costumo dizer que um dos defeitos paradoxais do nosso sistema é que os juízes muito bons sobem demasiado depressa (por serem promovidos e também por serem convidados para funções de assessores nos tribunais superiores ou no Ministério da Justiça), acabando por ficar pouco tempo nos tribunais de primeira instância onde fariam verdadeiramente diferença.
Não é fácil ser PM ou ministra da saúde nesta fase. Mas como avalia a atuação do Governo ao lidar com a pandemia? Estamos reféns das opiniões de demasiados especialistas?
A minha impressão é a de que sim, mas reconheço que não é fácil e não me quero juntar ao coro dos “especialistas” que já são demasiados.
Fazer contencioso em confinamento é possível?
Possível sem dúvida que é. Em teoria não há dúvida e na prática vários casos o demonstram. Mas o contencioso não é uma coisa que se possa fazer sozinho. São (em princípio) necessários duas partes e um juiz. Se quiserem os três é muito fácil. Se o juiz não quiser é impossível. Se alguma das partes não quiser (o que muitas vezes sucede) é mais difícil, mas o bom juiz tem bons meios de persuadir a parte a mais “relutante”.
As diligências feitas à distância são uma miragem, um discurso enganoso do poder político? A Justiça ainda não é suficientemente tecnológica?
Não creio que haja um grande discurso do poder político nesta matéria. Na prática há diversas dificuldades – maxime um acesso fácil e claro aos documentos do processo – que têm obstado a que as diligências à distância se realizem em muito maior número. Mas há que reconhecer que muitas dessas dificuldades relevam de um certo atavismo e de um apego a práticas que perderam sentido. Desde logo a importância absolutamente descabida que a prova testemunhal continua a ter em muitos casos que bem poderiam ser “documents cases”, mas parece que a nossa prática obriga a que vão várias testemunhas confirmar o que dizem os documentos para que os juízes os levem em devida conta.
Dá-se ao “luxo” de poder recusar casos?
Não é um luxo, é uma necessidade. Nomeadamente para quem não gosta de fazer “figura de urso”.
O facto de estar integrado num escritório de grande dimensão, corta-lhe as vazas para aceitar alguns clientes?
Há uma limitação óbvia, e saudável, que é a que deriva das regras de conflitos de interesses. Excluindo os casos de conflitos de interesses, creio que bem pelo contrário: dispomos de mais advogados, com diferentes especialidades, diferentes características e diferentes níveis de senioridades que permitem servir bem diferentes tipos de clientes.
“As boutiques que têm sucesso (em contencioso e noutras áreas) tendem a tornar-se grandes escritórios e a perder o foco da especialização. O crescimento é a lógica de qualquer empresa num mercado livre”
Sente que o escritório onde está, pela estrutura que tem, dá menos valor ao contencioso e mais a uma advocacia de negócios?
Não. Senti isso no início da minha carreira há 30 anos. Já não sinto isso há muito tempo, nem no escritório onde estou nem nos escritórios onde estive antes.
O contencioso já foi mais valorizado do que é?
Não é o meu sentimento.
E as boutiques nesta área fazem sentido?
Em teoria fazem. Na prática não têm feito. Por um lado, Portugal não tem dimensão económica que gere uma quantidade suficiente de “grandes casos” capazes de sustentar uma estrutura altamente especializada e que pudesse adquirir um grau de notoriedade que lhe permitisse escapar ao “cross-selling” dos maiores escritórios presentes no mercado nacional. Por outro lado, o que vejo acontecer em mercados maiores e mais sofisticados é que as boutiques que têm sucesso (em contencioso e noutras áreas) tendem a tornar-se grandes escritórios e a perder o foco da especialização. O crescimento é a lógica de qualquer empresa num mercado livre.
Já foi ameaçado ou insultado em tribunal?
Que me lembre não.
Qual foi o caso em que saiu do tribunal e pensou “saí-me mesmo bem!”? Sem falsas modéstias.
Recordo muitas vezes um caso dos inícios da minha carreira. Foi um processo ao tempo “muito grande” – dezenas de partes, milhões de contos de prejuízos causados por um acidente com um camião cisterna que originou um incêndio gigantesco, com mortos, feridos graves e muitos bens, incluindo edifícios, danificados ou mesmo destruídos.
A nossa cliente era uma grande multinacional que era “acusada” de ser “a responsável” e contra a qual todos os pedidos eram dirigidos, tanto mais que à data os seguros de responsabilidade civil automóvel não cobriam nem de perto nem de longe os prejuízos que estavam em causa.
Trabalhei no assunto desde o início em conjunto com (e sob a direcção) do Dr. Hugo Owen Pinheiro Torres que era o sócio mais especializado em contencioso da então chamada “Pereira, Leal, Martins, Júdice, Torres e Associados”. Infelizmente, o Hugo Pinheiro Torres morreu de forma inesperada, e muito injustamente prematura, o que “obrigou” a que fosse eu, com 29 anos de idade, a fazer o julgamento. O julgamento teve talvez 20 sessões e durou portanto semanas. Recordo perfeitamente de que fui o último a alegar ao fim de um dia inteiro de alegações pedindo a condenação da nossa cliente, apresentadas por vários dos advogados de barra mais experientes e conhecidos do tempo, alguns com mais anos de advocacia do que eu tinha de vida. Ganhámos a 100% porque a nossa cliente tinha razão e porque o trabalho foi efectivamente bem feito desde o início, na preparação do caso e nos articulados, muito antes do julgamento, mas o certo é que na altura senti que me saí mesmo bem.
Reencontrei os principais advogados e os juízes (ainda era um “colectivo”) desse processo em várias ocasiões e vários tribunais e todos recordávamos com apreço e respeito recíprocos os episódios, que foram vários e peculiares, desse longo julgamento.
A Justiça faz-se condenando. Esta é a tese que domina na opinião pública. Como explicar ao cidadão comum que não é esse o caminho?
O cidadão moralmente bem formado – que é a grande maioria – sabe intuitivamente que não há nada pior do que condenar um inocente. O problema é portanto, como já se diz na pergunta, não do cidadão mas da “opinião pública”.
É portanto um problema da sociedade e dos “media” (porque se criou uma percepção geral de impunidade que muitas vezes não é correcta) e também e sobretudo um problema da justiça que não tem sabido lidar com casos de alguma complexidade em tempo útil ao mesmo tempo que tem permitido abusos inadmissíveis, designadamente em matéria de prisão preventiva e violação do segredo de justiça. A facilidade e a falta de rigor com que se mandam pessoas preventivamente para a cadeia em Portugal é verdadeiramente assustadora porque revela uma enorme falta de respeito pelos direitos fundamentais do cidadão por parte de quem tinha a maior obrigação de os proteger.
Como é a sua relação com a magistratura. É do tipo de advogado conflituoso, diplomata, respeitador ou mais provocador?
Continuando sem falsas modéstias, sou um tipo simpático e bem educado. De um modo geral dou-me bastante bem com os magistrados, sobretudo com os bons, tal como me dou bastante bem com os advogados, sobretudo com os bons.
Se fosse ministro da Justiça quais seriam as suas três prioridades?
Ajudar a criar condições para que os juízes sejam e ajam como titulares de um órgão de soberania e não como funcionários especializados, resolver o problema do estrangulamento da justiça administrativa, resolver o problema do excesso de prisão preventiva antes do julgamento em 1ª instância e da escassez de prisão preventiva depois do julgamento em primeira instância.
E bastonário da Ordem dos Advogados?
Melhorar a justiça e assim dignificar e proteger os valores essenciais da profissão.
E, finalmente, se fosse PGR?
Evitar os “mega-processos”, evitar a prisão preventiva, evitar as violações do segredo de justiça.
Qual foi ou é para si o melhor ministro/ministra da Justiça desde o 25 de abril?
No que diz respeito à acção governativa não sei. Simpatizo muito com a figura, e com a obra enquanto magistrado e pensador dos temas da Justiça, do Dr. Laborinho Lúcio com quem nunca tive qualquer contacto na minha vida.
“Se fosse PGR evitaria os “mega-processos”, evitar a prisão preventiva, evitar as violações do segredo de justiça”
Estamos (Portugal) muito obcecados com a corrupção?
Acho muito bem que tenhamos uma obsessão contra a corrupção, desde que nos mantenhamos estrita e rigorosamente respeitadores dos direitos individuais.
Pretende algum dia pôr em prática a regra de denúncia obrigatória por parte de advogados que se deparem com suspeitas de lavagem de dinheiro?
Não. Se uma pessoa vem falar comigo ao meu escritório, posso pô-la na rua se não gostar do que ouço, mas não posso ir contar à polícia o que ela me disse.
Se pudesse escolher, em que jurisdição (europeia ou mundial) trabalharia e porquê?
Já não posso escolher e portanto já não sei responder.
Os advogados têm horizontes mais abertos que os magistrados (juízes ou procuradores)?
De um modo geral diria que sim, mas depende certamente muito de caso para caso.
As decisões judiciais – de primeira ou segunda instância – são muito dependentes ou influenciadas pelo mediatismo?
Durante muitos anos tive a ideia de que as decisões judiciais em Portugal eram praticamente imunes ao mediatismo. Hoje em dia já não penso assim.
Mudaria as regras dos advogados poderem falar de casos concretos, de forma a que o vosso trabalho fosse mais compreendido?
Devo ser já caso único, mas nunca – nem uma vez! – falei de um caso pendente à imprensa. Perecebo que outros já o tenham feito e portanto não excluo liminarmente a possibilidade de o vir a fazer.
Gostaria que houvesse uma instância totalmente independente – com maioria de não magistrados – que avaliasse a ética e imparcialidade de um magistrado. Um canal direto entre cidadãos, advogados e magistratura?
Não. O que gostaria é que houvesse maior transparência e publicidade dos trabalhos do Conselho Superior de Magistratura. Creio também que a respectiva composição poderia ser melhorada com outras formas e fontes de nomeação dos seus membros e com a participação de “não especialistas”.
A prestação de contas dos nossos magistrados é necessária?
Claro que sim, o que não quer dizer que não exista e que a que existe não possa ser melhorada.
Arbitragem versus tribunais. Este meio de justiça privada vai engolir os tribunais, mais cedo ou mais tarde?
Em matérias especializadas sim. Mas os tribunais serão sempre necessários e serão sempre “superiores” à arbitragem. A arbitragem não pode funcionar se não houver tribunais que garantam o respeito e a execução das decisões arbitrais e que fiscalizem formal e materialmente as arbitragens (matéria da qual aliás muitas vezes se têm demitido).
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José Jácome, da SRS: “A facilidade e a falta de rigor com que se mandam pessoas preventivamente para a cadeia em Portugal é verdadeiramente assustadora”
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