Literacia financeira. “Primeira linha de defesa do investidor é o próprio investidor”

Inês Drumond diz que as pessoas não estão "a tirar partido do setor financeiro como poderiam" devido aos poucos conhecimentos financeiros e reconhece que também falta literacia financeira às empresas.

 

A literacia financeira “está na moda”, admite a vice-presidente da Comissão do Mercado de Valores Mobiliários (CMVM). Em entrevista ao ECO, Inês Drumond reconhece que os baixos níveis de conhecimentos financeiros dos portugueses estão a impedir as pessoas de “tirar partido do setor financeiro, como poderiam”, dando como exemplo “a taxa de participação no mercado de capitais, que em Portugal é muito baixa”. Na semana em que arranca mais uma Semana Mundial do Investidor, a decorrer entre esta segunda-feira, dia 6 de outubro, e sexta, dia 10, a responsável avisa que “a primeira linha de defesa do investidor é o próprio investidor, e portanto tem que investir na sua própria literacia financeira“.

A vice-presidente da CMVM aplaude a proposta da Comissão Europeia, pela mão da portuguesa Maria Luís Albuquerque, para a criação das Contas de Poupança e Investimento (CPI), mas diz que “as contas, por si só, poderão não ser a solução” para captar mais investimento para o mercado de capitais. Fala na necessidade de uma “estratégia coordenada” com os vários stakeholders do mercado. E diz que é preciso incluir as empresas nestes esforços para dinamizar o mercado, não fossem elas um elemento fundamental para a existência do mesmo. Questionada sobre se falta também literacia financeira aos empresários, Inês Drumond reconhece que “também”.

“Quando internamente lidamos com questões de literacia financeira, olhamos não só para o investidor, mas também para as empresas, que a parte do financiamento, obviamente, também é muito relevante”, refere. Sobre os criptoativos, sem querer comentar a possibilidade de a CMVM dividir com o Banco de Portugal a supervisão destes ativos, a vice-presidente do regulador do mercado de capitais português diz que a entidade está pronta para assumir a supervisão.

À semelhança do que tem acontecido nas edições anteriores, a semana do investidor, que já vai para a 9.ª edição, conta com várias iniciativas que juntam representantes do mercado, desde emitentes (AEM), à Euronext, aos analistas financeiros (APAF) e à APFIPP (Associação Portuguesa de Fundos de Investimento, Pensões e Património), e traz este ano como novidade um curso de literacia financeira, juntou mais de 2.000 inscrições.

A literacia financeira vai estar em destaque na semana mundial do investidor, a decorrer esta semana. Como se pode elevar a literacia financeira dos portugueses, para permitir aos investidores rentabilizar as suas poupanças?

A literacia financeira basicamente é composta por diferentes componentes, uma que tem a ver com os conhecimentos, com aquelas questões básicas sobre o que é um juro composto, o que é a diferença entre uma taxa de juro real e uma taxa de juro nominal, etc. E é também composto de indicadores associados à atitude e à forma como nós nos relacionamos com o setor financeiro. Nós em Portugal temos uma má classificação é precisamente nos conhecimentos. Como temos poucos conhecimentos, somos relativamente cautelosos no nosso relacionamento com o sistema financeiro e tudo aquilo que o rodeia. O que é bom, de certa forma, mas por outro lado, podemos não estar a tirar partido do setor financeiro como poderíamos tirar.

Um dos pontos relevantes e que justificam a relevância que se dá agora aos baixos níveis de literacia financeira em Portugal é precisamente o facto de a população em geral, em média, não estar no fundo a tirar partido do setor financeiro, como poderia tirar. E damos muitas vezes o exemplo para a taxa de participação no mercado de capitais, que em Portugal é muito baixa, e, conforme mostrava um estudo que patrocinamos recentemente esta participação baixa no mercado de capitais tem a ver precisamente com segmentos da população em que os níveis de educação eram relativamente baixos. Portanto, não estamos a tirar partido de determinados instrumentos na alocação das nossas poupanças que nos poderiam dar, no médio e longo prazo, uma rentabilidade superior àquilo que é a rentabilidade, por exemplo, dos depósitos.

Não estamos a tirar partido de determinados instrumentos na alocação das nossas poupanças que nos poderiam dar, no médio e longo prazo, uma rentabilidade superior àquilo que é a rentabilidade, por exemplo, dos depósitos.

Por outro lado, podemos estar expostos a riscos que, se tivéssemos mais conhecimento sobre o mundo financeiro, poderíamos mitigar ou até evitar. Em termos de ação, um ponto muito relevante é a necessidade de termos aqui uma estratégia coordenada. Não é a CMVM sozinha ou determinada entidade por si só que vai vencer esta batalha e garantir que no futuro vamos ter aqui um panorama mais positivo ao nível da literacia financeira. É muito importante que haja uma estratégia a nível nacional e que os vários stakeholders que são relevantes nestas matérias estejam, no fundo, empenhados no objetivo último de melhorar os níveis de literacia financeira.

Uma boa notícia é que a literacia financeira está na moda. Olhando para aquilo que vemos mesmo nos media, a própria Comissão Europeia que divulgou [na semana passada] a comunicação sobre uma série de recomendações que devem ser seguidos no âmbito da promoção da literacia financeira. Podemos aproveitar a relevância que neste momento se dá à literacia financeira. Exemplo disso é uma das iniciativas que vamos ter na Semana Mundial do Investidor, que é inovadora este ano. Pela primeira vez vamos ter um curso de literacia financeira e temos níveis de inscrição acima dos 2.000.

Talk "Dia Mundial da Poupança" - 23OUT24

Por fim, temos de ter sempre presente em qualquer tipo de política pública, fazer uma análise de impacto. É muito relevante também na área da literacia financeira. Ter aqui uma estratégia coordenada, ver quais são os principais riscos, quais são os principais canais e segmentos que queremos atingir, quais são os parceiros que devemos trazer para cada um desses segmentos e depois, no final, fazer uma análise de impacto, ver se estamos a atuar no sentido correto.

Essa estratégia coordenada tem de envolver o Governo?

O Ministério da Educação, sem dúvida. Trazer a literacia financeira para as escolas é condição necessária para o sucesso de qualquer estratégia de literacia financeira. Mas não só.

E a parte fiscal?

Sem dúvida. Esses casos de sucesso, onde vemos que há níveis de literacia financeira mais elevados, são também países onde o grau de contacto, por exemplo, com o mercado de capitais é muito mais elevado. A partir do momento em que contacto mais com o setor financeiro, tenho também incentivos para conhecer melhor e tenho também mais informação, portanto estimulo também a minha capacidade de apreensão dos tais conhecimentos do setor financeiro que eu referia anteriormente. Mas há duas vertentes na parte fiscal. Por um lado, é o conhecimento da parte fiscal, que é importante. No curso vamos ter uma sessão dada pela Autoridade Tributária (AT) sobre a fiscalidade dos ativos.

Relativamente à outra vertente fiscal, é a parte dos incentivos, que são relevantes. E aqui não estou a inventar a roda, temos de olhar para casos de sucesso na Europa. Não é preciso ir aos Estados Unidos para ver casos de sucesso de desenvolvimento, nomeadamente de instrumentos financeiros associados ao mercado de capitais. E esses casos de sucesso têm associados, muitas vezes, incentivos fiscais que fazem com que desperte o interesse dos particulares, dos pequenos investidores em particular, no mercado de capitais. É uma condição relevante, não estou a dizer que é única. Aliás, ao nível da fiscalidade é importante não só os benefícios, mas também a questão da própria simplificação.

As contas de poupança e investimento poderão também incentivar o investimento no mercado de capitais?

Acho que sim, que são relevantes num contexto propício ao desenvolvimento do mercado de capitais. As contas por si só poderão não ser a solução. Mais uma vez, tal como dizia na literacia financeira, a questão do desenvolvimento do mercado de capitais também tem que ser vista de uma forma abrangente. Ou seja, que tenha em conta os vários elementos. A Savings and Investment Account acho que é um elemento muito importante, especialmente se estiver associada a componente fiscal que falamos anteriormente. Permite um maior contacto dos particulares, das famílias, com o funcionamento do mercado de capitais, incluindo ao nível da diversificação de ativos que eu posso ter na minha Savings and Investment Account. Portanto, permite-me fazer aqui vários diferentes tipos de, ou deve permitir fazer diferentes tipos de investimento e utilização de diferentes instrumentos financeiros.

E deve também ser complementada com outras medidas, nomeadamente também na perspetiva mais de médio e longo prazo. Ou seja, não esquecer também a importância da poupança de médio e longo prazo, e aqui ligando, que é um ponto também que a Comissão mais tarde ou mais cedo penso que também se vai pronunciar, que é a questão do desenvolvimento do Pilar II e do Pilar III ao nível do esquema de segurança social em cada um dos Estados-membros, aqui já numa perspetiva complementar. E, apesar de importante, e que é muito relevante, é que muitas vezes nos esquecemos que é a parte empresarial. Ou seja, temos um mercado, um mercado como qualquer mercado tem procura e oferta.

Inês Drumond, vice-presidente da CMVM Hugo Amaral/ECO

E assistimos a isso em Portugal, com as empresas a não quererem ir para o mercado?

Talvez também um pouco por falta de informação, mas é preciso também olhar para essa vertente. Ou seja, para quem utilize o mercado de capitais para se financiar. Ou seja, é não só o mercado de capitais como uma alternativa ao setor bancário, mais uma vez como complementar, de afetação de poupanças, mas também numa perspetiva de financiamento. Quando lidamos com questões de literacia financeira, olhamos não só para o investidor, mas também para as empresas. A parte do financiamento, obviamente, também é muito relevante.

Falta também literacia financeira aos nossos empresários e gestores?

Também, também. Nós temos vários problemas a esse nível e há bastante recetividade. Temos parcerias com o IAPMEI e com o Turismo Portugal. Agora vamos organizar um workshop sobre corporate governance, associado também a questões associadas ao mercado de capitais. Há vontade de aprender mais, mas sentimos que ainda existe aqui um desfasamento e, portanto, ainda há algum caminho a percorrer. Trabalhamos também nesse nível, muitas vezes associados a parceiros. E mesmo a questão da Sandbox tem também como objetivo último dar mais informação, até, às vezes, quebrar alguns mitos relativamente ao mercado de capitais, às empresas. Tem também esse objetivo de dar informação e, no fundo, mais literacia financeira aos próprios empresários.

Já notam alguns progressos com esse programa?

Vamos tendo alguns. Quando falamos do mercado de capitais, falamos sempre numa perspetiva abrangente, ou seja, temos não só a parte dos emitentes, que é obviamente relevante, mas temos também, por exemplo, a parte das gestões de ativos. O que observamos em Portugal é que tem havido um crescimento bastante significativo da gestão de ativos. E só há desenvolvimento da gestão de ativos se tiver mais empresas a financiar-se através desta forma de financiamento. Há uma tendência positiva.

O crescimento nos fundos tem sido impulsionado pelo crescimento dos PPR. Esta maior procura também está relacionada com os benefícios fiscais destes produtos?

A parte fiscal é sempre um ponto relevante em termos de trazer as empresas e os investidores para o mercado e, portanto, diria que sim. E também a preocupação que começa a aumentar, o que é positivo, sobre produtos também, no caso dos PPR, de mais médio e longo prazo. Há uma preocupação de garantir um complemento àquilo que as pessoas são financiadas pela Segurança Social.

Esse será um ponto muito importante também em termos de literacia financeira e em termos de envolvimento do mercado, a questão do complemento às pensões?

Exatamente. Aí há necessidade de dar mais informação e esclarecer as pessoas relativamente àquilo que poderão beneficiar se puderem complementar no fundo o que poderão vir a receber em termos de pensão com outros instrumentos, nomeadamente, quer pilar 2, ou seja, financiados pelas próprias empresas de trabalho, quer pilar 3, ou seja, da iniciativa de cada um de nós, sem dúvida. Depois tem uma relação positiva com o mercado de capitais, porque obviamente os montantes que forem feitos, por exemplo, ao fundo de pensões, são naturalmente, em parte, aplicados a instrumentos financeiros associados ao mercado de capitais.

Os finfluencers têm vindo a ganhar visibilidade, sobretudo junto dos mais jovens. Quais os principais riscos associados a este fenómeno? A CMVM consegue estender o seu crivo a tudo?

Estas novas realidades que envolvem as redes sociais e que envolvem estes agentes finfluencers podem também ter um efeito positivo, nomeadamente na literacia financeira. São, no fundo, pessoas que têm a capacidade de chegar àqueles segmentos, nomeadamente mais jovens, mas não só. Têm uma abrangência através das redes sociais muito, muito significativa, portanto, conseguem chegar a muita gente.

Dito isto, há de facto alguns riscos que têm de ser acautelados e muitos já foram referidos, nomeadamente questões de fraudes e burlas. Podem cometer alguma situação ilícita, atividade não autorizada. Mesmo que não haja a ilicitude, se os próprios finfluenciadores não tiverem os níveis de literacia financeira adequados, poderão utilizar conteúdos que podem ser desadequados e passar a informação que não é fidedigna, que não é a mais correta. E há também situações — aliás tivemos uma ação também de supervisão sobre isso — em que a sua atuação pode ter subjacente a alguma situação de conflito de interesses, quando atuam por serem contratados por intermediários financeiros. Ou seja, intermediários financeiros que utilizam os finfluencers, nomeadamente para divulgar ou publicitar determinados produtos, o que não é proibido, mas tem que ser feito por acordo com os meios e tem que ser muito bem identificado.

A primeira linha de defesa do investidor é o próprio investidor, e portanto tem que investir na sua própria literacia financeira.

E depois um outro tipo de atuação muito relevante, além da identificação de possíveis casos de atividade não autorizada, é a questão da proteção do investidor. Ou seja, dar informação ao investidor para, no fundo, poder estar mais bem preparado. E isto tem a ver com a sua questão se a CMVM tem tudo aquilo ao seu dispor que queria para fazer face a este fenómeno. A primeira linha de defesa do investidor é o próprio investidor, e portanto tem que investir na sua própria literacia financeira. Nós temos também do nosso lado, a CMVM, que dar instrumentos ao investidor para que esteja mais capacitado para distinguir o que é o papel que pode até ser positivo como referi, aquilo que pode ser um papel negativo destes mesmos agentes e nessa perspetiva lançamos muito recentemente uma área no nosso portal do investidor sobre finfluencers.

A literacia financeira nas escolas está presente na disciplina de cidadania. É suficiente?

A literacia financeira nas escolas é condição necessária para o sucesso de um plano a nível nacional de literacia financeira. É muito, muito relevante começar desde novo a ter noções base sobre o setor financeiro, sobre a gestão de finanças pessoais e a integração de forma obrigatória e sistemática da literacia financeira em todas as fases é extremamente relevante.

Nós, por nosso lado, temos também mais uma vez na Semana Mundial de Investidores o envolvimento das escolas, com uma parceria com a Direção-Geral da Educação. Vamos continuar a ter a Hora da Literacia Financeira, logo na segunda-feira. E agora com algumas novidades, precisamente porque abrangemos todos os ciclos, portanto, no ano passado só incluímos o ensino secundário, agora vamos ter também o ensino básico nos três ciclos. E vamos ter três jogos com conceitos financeiros.

Quantos alunos vão ter?

Temos, neste momento, 308 turmas. Tem também havido aqui bastante interesse por parte das escolas em participar nestas iniciativas. Temos bastantes professores no próprio Curso de Literacia Financeira. Uma das questões muito relevantes para o sucesso desta estratégia é que os próprios professores tenham um nível de formação suficiente para dar a capacidade financeira. Formar os professores é também muito relevante e aqui também o Plano Nacional de Formação Financeira poderá ter um papel relevante.

De acordo com a proposta de lei do Governo aprovada em Conselho de Ministros, com vista à execução do Regulamento do Mercado de Criptoativos, Banco de Portugal e CMVM vão partilhar a supervisão. É uma solução que lhe agrada?

Não me vou pronunciar. A CMVM estará pronta para indicar aquilo que daí resultar, mas não me vou pronunciar relativamente a um diploma que neste momento ainda não está aprovado.

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