A candidata do Bloco às eleições europeias alerta que o Orçamento comunitário "está a perder o seu caráter redistributivo". "A tentação tem sido cortar nas áreas em que ele é mais fundamental."
O Bloco de Esquerda mantém a posição de sempre: os cidadãos europeus não devem “estar disponíveis para fazer mais sacrifícios em nome do euro”. Marisa Matias, em entrevista ao ECO, em Bruxelas, defende que o euro “é uma moeda que não favorece a coesão económica, social e territorial”. No entanto, garante que o Bloco não defende a saída do euro. “Nunca o fizemos”, frisa.
Marisa Matias defende ainda a necessidade de uma “União Europeia diferente” e “um reforço orçamental com natureza redistributiva” e aponta o dedo à falta de justiça fiscal na UE, já que as empresas com sede física são taxadas a 20% e as empresas digitais são a 6%. Assegura que não se trata “de atacar o setor do digital”, mas apenas garantir uma concorrência leal.
Quanto às eleições europeias de 26 de maio reconhece que a ambição do Bloco é reforçar a sua representação, ou seja, conseguir eleger mais do que um deputado.
A esquerda defende uma outra Europa, alternativa à atual. O que é que isso significa concretamente?
Significa uma Europa em que a base é a cooperação entre os Estados-membros e não uma Europa com as alterações introduzidas nos últimos anos que agravaram uma integração desigual. Já assisti a muitas mudanças institucionais. Parece que é tudo estático mas não é. O Tratado de Lisboa entrou em vigor, bem como o Tratado Orçamental e o pacote da governação económica, a aprovação de sanções, a tentativa de União Bancária que ficou sem um dos pilares — a garantia de depósitos.
Todas as respostas a que temos assistido nos últimos anos agravaram as desigualdades e os desequilíbrios macroeconómicos. Não havendo uma reforma da zona euro, os objetivos associados a ela são incompatíveis com as funções sociais do Estado e com a sua capacidade de manobra no quadro de exercício das suas competências específicas. Há muitos espaços de subsidiariedade mas a verdade é que são muito condicionados por tudo isto.
Condicionados a que nível?
Sobretudo ao nível do que são os constrangimentos ao financiamento e ao investimento público que é uma espécie de tabu na UE. Semestre europeu após semestre europeu [o processo cíclico de coordenação de políticas económicas], a recomendação é sempre a mesma: redução da despesa pública. O que tem uma tradução direta que é não se poder investir no Serviço Nacional de Saúde ou na escola pública. Estamos num contexto de níveis mínimos históricos de investimento público em Portugal.
Semestre europeu após semestre europeu, a recomendação é sempre a mesma: redução da despesa pública. O que tem uma tradução direta que é não se poder investir no Serviço Nacional de Saúde ou na escola pública.
Não há possibilidade de um projeto real de cooperação com estes garrotes e esta legislação. Por isso, defendemos que tem de haver uma confrontação total. Recentemente, a [eurodeputada do PS] Ana Gomes disse num debate uma coisa que me parece exata: não há outra forma de se ser europeísta sem se ser crítico do projeto europeu e de como ele se desenvolveu.
Em relação ao euro, qual é exatamente a posição do Bloco de Esquerda?
O Bloco sempre disse e mantém que não devemos estar disponíveis para fazer mais sacrifícios em nome do euro. Isso significa que são precisas reformas profundas porque os objetivos que estão inseridos na política do euro reforçam, pela própria arquitetura do euro, os desequilíbrios macroeconómicos e não promovem a coesão. Por isso, tivemos nestes 20 anos uma divergência em relação à média europeia e às economias excedentárias, e o espelho desses excedentes é o défice nos outros países.
É uma análise factual. Economistas de esquerda ou de direita, todos identificam as falhas da arquitetura do euro. No recente vigésimo aniversário [do euro], surpreenderam-se com o facto de ter durado tanto tempo e sobrevivido à crise financeira e económica. É uma moeda que não favorece a coesão económica, social e territorial. Quando foi a crise grega e a chantagem das instituições europeias, o Bloco endureceu a sua posição em relação ao euro, naquela conjuntura. O povo grego foi ameaçado e amordaçado, houve depois cedências inaceitáveis da parte do governo grego. A Grécia teve que pagar um preço elevadíssimo para se manter no euro. O que defendemos nessa altura é que qualquer país sob chantagem não devia fazer sacrifícios que destruíram completamente a economia, levaram a mais privatizações, a mais cortes nos salários e nas pensões e pobreza.
O Bloco sempre disse e mantém que não devemos estar disponíveis para fazer mais sacrifícios em nome do euro. Isso significa que são precisas reformas profundas.
Dito isto, não defendemos a saída do euro, nunca o fizemos. Muitas vezes o que se tenta fazer é confundir [isto com] uma posição conjuntural do Bloco justificada porque o preço para a Grécia e para a UE foi inaceitável.
O Bloco apoia a criação de um orçamento da zona euro para apoiar a convergência?
Quando se fala da necessidade de alterar a arquitetura falamos de haver mecanismos compensatórios porque a arquitetura da zona euro nunca permitirá uma convergência. Uma parte significativa desses mecanismos compensatórios passa por um Orçamento europeu reforçado.
Um Orçamento que tenha mesmo um caráter redistributivo e não um Orçamento europeu que não só é mínimo – o que temos agora não chega a 1% do PIB –, mas que está a perder o seu caráter redistributivo. A tentação tem sido cortar nas áreas em que ele é mais fundamental.
O Orçamento foi criado precisamente para se fazer a redistribuição das zonas excedentárias para as deficitárias e para ter um mercado mais ou menos coerente do ponto de vista do funcionamento. A tentativa real de reduzir o caráter redistributivo do Orçamento por parte de todos os governos que têm estado no Conselho é uma catástrofe. A orientação tem sido não só não aumentar o Orçamento como insistir nos cortes na coesão e na política agrícola comum, e criar objetivos novos que não têm nada que ver com os objetivos dos tratados – como na área da defesa – para desviar recursos.
Mas é favorável à criação do instrumento orçamental para a zona euro que está a ser discutido?
Tem de haver um orçamento da União Europeia mais elevado e que tenha um caráter redistributivo e que possa abarcar os impactos que a zona euro provoca nos países membros. Não defendemos um ministro das Finanças comum nem nenhum mecanismo que represente maior integração nos termos que conhecemos até hoje, nem mesmo conferir um maior federalismo ao projeto europeu. Isso não. Mas obviamente é preciso uma UE diferente, um reforço orçamental com natureza redistributiva.
Não defendemos um ministro das Finanças comum nem nenhum mecanismo que represente maior integração nos termos que conhecemos até hoje, nem mesmo conferir um maior federalismo ao projeto europeu.
O Bloco é favorável às taxas sobre as transações financeiras e sobre as empresas digitais na UE?
A UE tem uma das situações mais inexplicáveis de injustiça fiscal. As empresas que têm sede física pagam em média cerca de 20% de impostos. Se olharmos para as empresas digitais a média é de 6%. Não têm infraestruturas físicas para manter, e provavelmente menos recursos humanos. Não se trata de atacar o setor do digital. O que é importante é que seja taxado de forma a não haver uma concorrência desleal face às outras empresas que não têm o mesmo tipo de benefícios fiscais. O mesmo em relação ao setor financeiro e o mesmo em relação à existência de um imposto mínimo sobre os lucros das multinacionais nos sítios onde são gerados para impedir a fuga de capitais e evitar a fraude e evasão fiscais.
Há muita confusão sobre estas matérias. Isto não são impostos europeus porque nenhuma instituição europeia tem competência para fazer a coleta deste tipo de impostos. Estes impostos têm de se basear numa forte cooperação europeia, mas as entidades que os vão coletar são nacionais, são as que têm competência para cobrar impostos. Obviamente que estes impostos reforçariam as contas públicas e uma maior redistribuição à escala europeia. Quem defende um orçamento reforçado tem que escolher: ou vai buscar o dinheiro aos setores subtaxados ou vai aos bolsos dos contribuintes. Porque as alternativas a seguir são as contribuições dos Estados-membros que vêm diretamente dos impostos do trabalho e nós achamos que não se pode ir buscar mais impostos ao trabalho.
Qual é a fasquia, em número de deputados, do Bloco de Esquerda para as europeias?
Não sou capaz de fazer essas contas. Queremos reforçar a nossa representação e portanto mais do que um, uma neste caso, seria um bom resultado. As eleições europeias têm muito pouca participação. São eleições difíceis.
Entendemos que fizemos um trabalho que justifica o reforço da nossa representação mas também entendemos que raramente as pessoas ou as forças políticas são avaliadas pelo trabalho que fazem. Seja como for, os votos são das pessoas. Partimos com a expectativa de poder reforçar a nossa representação mas teremos a representação que as pessoas entenderem que merecemos. Cá estaremos, se for essa a vontade.
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