Martim Guedes, co-CEO da Aveleda, adverte que agricultura vai “mudar dramaticamente” e tornar-se uma “indústria tecnológica”, exigindo ao novo Governo que coloque o setor “no topo da agenda política”.
Martim Guedes, que comanda a histórica empresa de vinhos Aveleda com o primo António, membros da quinta geração da família, critica os governantes portugueses por continuarem a ter uma “visão muito tradicional da agricultura”, que está a “mudar dramaticamente” e que dentro de uma década será uma “indústria tecnológica”. “Não é necessariamente de injeções de dinheiro que a agricultura precisa. Mas de ser uma prioridade e de estar no topo da agenda política”, reclama o gestor da empresa que detém a marca Casal Garcia, que vê na imigração “a única forma de fazer crescer a economia portuguesa”.
Líder nos Vinhos Verdes e presente em cinco regiões vitivinícolas, a Aveleda faturou 47 milhões de euros em 2023, dos quais 70% na exportação, com destaque para os EUA, Brasil e Alemanha. Já equacionou fazer vinhos fora de Portugal, mas decidiu “sempre conscientemente” manter o foco no país, onde produz 22 milhões de garrafas por ano. Em entrevista ao ECO, Martim Guedes lamenta ainda as “muitas limitações à produtividade” impostas pela legislação e uma regulação que diz ser excessiva e que dificulta a competição dos vinhos portugueses nos mercados internacionais.
A Aveleda detém sete marcas de vinhos espalhadas por cinco regiões vitivinícolas – Verdes, Douro (Quinta Vale D. Maria), Bairrada (Quinta D’Aguieira), Lisboa (Mandriola) e Algarve (Villa Alvor). Querem entrar noutras regiões?
Só não estamos no Dão, Alentejo, Tejo e Setúbal. Cremos que as cinco regiões [que temos] estão bem. Permitem-nos fazer todos os estilos de vinhos portugueses: brancos, tintos, rosés, espumantes, Portos, vinhos mais mainstream e outros mais premium. Conseguimos ter uma oferta de tudo o que é representativo dos vinhos nacionais. Noutras regiões não íamos encontrar algo muito diferente do que temos hoje em termos de estilo de vinho. Mas foi importante para nós chegar a estas cinco — do Minho ao Algarve, literalmente — porque todas elas são muito diferentes. Era importante completarmos o portefólio.
Fazer vinhos fora de Portugal, como a Sogrape, foi algo que já equacionaram?
Equacionámos, mas decidimos sempre conscientemente que não. Porque achamos que hoje em dia Portugal consegue entregar uma relação preço-qualidade que muito poucos países conseguem. E porque os Wines of Portugal estão num ritmo positivo, crescente em termos de vendas, de notoriedade e de prestígio. Portanto, estando Portugal num caminho tão positivo internacionalmente, não faria sentido para nós, nesta fase, estar a ir [fazer vinhos] para Espanha, Itália ou Argentina, que acho que têm menos potencial do que Portugal.
Acha então que o setor do vinho em Portugal está a atravessar um bom momento?
Acho que está num bom momento. Tem feito um crescimento consistente. Se calhar não ao ritmo que todos imaginaríamos, mas a um ritmo bom. Tem dado bons passos, tem ganho credibilidade nos mercados internacionais. Ao contrário do que a maior parte das pessoas pensa, o preço médio dos vinhos portugueses até está acima de outros países, como Espanha, África do Sul ou Argentina. Temos feito um percurso muito interessante.
Mas o que pode ainda o setor fazer de diferente?
Em grandes mercados, como os EUA ou a Alemanha, os vinhos portugueses continuam a ter uma quota de mercado que ronda 1% a 2%. Portanto, o mercado potencial são os outros 98% ou 99% que faltam. Há um trabalho de notoriedade a fazer em grandes mercados, que ainda está no início. Estamos ainda no início de um longo caminho de afirmação dos vinhos portugueses.
As grandes empresas têm de ser esse motor? O setor do vinho é muito estratificado.
Sim. É bom para o setor do vinho que haja um grande número de empresas, muita diversidade e muitas vozes a falar. Mas as locomotivas que puxam [pelo setor] acabam por ser as grandes empresas, até pelas estruturas e pela capacidade que têm de estar lá fora. Assumimos esse papel e essa responsabilidade.
Em grandes mercados, como os EUA ou a Alemanha, os vinhos portugueses continuam a ter uma quota de mercado que ronda 1% a 2%. Há um trabalho de notoriedade a fazer.
As exportações de vinhos portugueses caíram 1,3% no ano passado e falhou a meta que tinha sido traçada de atingir os 1.000 milhões de euros de vendas no exterior. Está tranquilo com estes números?
Sim, estou tranquilo. Há também que ter em conta que a exportação dos vinhos portugueses contempla duas realidades: a do Vinho do Porto, que vem em decréscimo; e a dos restantes vinhos, que têm compensado essa queda. Se olharmos para essa segunda fatia, ela é crescente. Estou otimista, embora tenhamos desafios, naturalmente.
Quais são esses desafios?
Neste momento, o comércio internacional está difícil para todos os países. Nos últimos quatro a cinco anos houve, de facto, um decréscimo importante no consumo mundial de vinho. Portanto, a única forma de Portugal crescer é ganhando quota a outros mercados. Isto vai ser cada vez mais difícil. Acredito que esta tendência de queda de consumo de vinhos é bastante permanente, portanto, vão ser anos difíceis para a indústria a nível mundial.
Como é que a Aveleda se está a proteger e a reagir, perante essa ameaça?
Temos alguns aspetos que nos posicionam naturalmente bem e outros que trabalhamos intencionalmente para lá estar. O facto de estarmos muito expostos a Vinhos Verdes é uma vantagem porque são vinhos brancos, que têm globalmente ganho quota aos tintos. E são naturalmente baixos em álcool e há claramente uma tendência de procura por vinhos com menos álcool. Isso é algo que nos dá uma vantagem à partida.
Por outro lado, temos diversificado bastante com inovações como o Casal Garcia Fruitzy ou com as sangrias, que são produtos mais baixos em álcool. Próximos do vinho, mas diferentes e que nos expõem a um tipo de consumidor mais alargado, que procura produtos menos sérios em termos vínicos ou mais fáceis de consumir. Isso alarga-nos o mercado potencial e tem-nos ajudado muito ao crescimento. De futuro vamos ter de ter este aspeto de inovação muito presente. Temos pessoas na empresa que olham só para a inovação e vai ser um eixo de crescimento muito importante.
Nos últimos quatro a cinco anos houve, de facto, um decréscimo importante no consumo mundial de vinho. Acredito que esta tendência é bastante permanente, portanto, vão ser anos difíceis para a indústria.
Como olha para o atual momento do setor agrícola em Portugal, como um todo?
A agricultura vai sofrer uma alteração brutal nos próximos anos em termos tecnológicos e, se calhar, forçada pela falta de mão-de-obra, pois mesmo com a imigração é muito difícil encontrá-la. Isso vai-nos a obrigar a ir mais rápido para a mecanização, a apostar em ter mais alta tecnologia de ponta. A agricultura vai mudar dramaticamente nos próximos anos. Daqui a 10 ou 15 anos, a agricultura vai ser uma indústria tecnológica, ao contrário do que é hoje.
Também neste setor, Portugal tem de se posicionar muito bem neste tema, pois temos de saber explorar o potencial agrícola que temos. Espero que a agricultura seja uma prioridade política, que não tem sido tanto quanto gostaríamos. Temos muitos produtos agrícolas em que Portugal tem uma capacidade de diferenciação natural, como é o caso do vinho, do azeite, dos frutos vermelhos ou dos hortícolas. Se soubermos surfar esta onda da tecnologia agrícola e investirmos bem, temos condições para sairmos vencedores deste campeonato.
Por que é que acha, então, que a agricultura não tem sido uma aposta política?
Sinto que não há objetivos políticos muito claros na área da agricultura, quando se fala das grandes prioridades. Ainda há uma visão muito tradicional da agricultura. Quando se fala de alguma modernização, de produções mais intensivas com mecanização, etc., há sempre muita resistência em termos legislativos. Há sempre uma legislação que trava muito esta inovação. Há alguma inércia para mudar isto e não me parece que seja uma grande prioridade dos governantes.
E não penso que, neste caso, seja uma questão de dinheiro. Não é necessariamente de injeções de dinheiro que a agricultura precisa. Mas de ser uma prioridade em termos de agenda, de definição do que Portugal pode ser no futuro em termos agrícolas, de quais possam ser os segmentos de maior futuro. Não me parece que isso esteja no topo da agenda política.
O setor do vinho é altamente regulado em Portugal, mas competimos com países e regiões liberalizados, como Chile, Argentina, Austrália ou Califórnia (EUA), que têm muito menos barreiras. Assim é difícil competir nos mercados internacionais.
Sente que os políticos têm algum preconceito com o setor da agricultura?
Continua a ser visto como um setor de baixo valor acrescentado. Não se está a ver esta mudança de tecnologia e de robotização que vai acontecer nos próximos anos e que vai transformar completamente a agricultura. Temo que se Portugal não for dos primeiros a acordar para isto, possa perder um bocadinho para outros países mais dinâmicos. A agricultura vai ter muito mais tecnologia no futuro. Já temos hoje drones a trabalhar na agricultura, já temos explorações agrícolas em que cada pé de vinha pode ser tratado de forma individualizada porque há um diagnóstico quase pé a pé sobre a humidade ou a riqueza do solo. Podemos ter uma abordagem muito diferente. A revolução tecnológica na agricultura devia ser uma prioridade, até em termos de know-how, de pesquisa e de research.
De que forma é que a legislação bloqueia essa modernização, como referiu?
Por exemplo, no setor do vinho há muitas limitações à produtividade, com um tecto em termos de volume por hectare. O setor está muito assente no pressuposto obsoleto de que a valorização [das uvas] passa por baixa produtividade, que não podemos deixar o agricultor produzir mais do que uma determinada quantidade. E toda a nossa experiência mostra que não há uma relação direta entre qualidade e produtividade. Não é por ter um pé de vinho só com dois ou três cachos que eles são melhores. Mas antigamente havia muito esse paradigma e continuamos a ter muita resistência na legislação a maiores produtividades. Temos muitas explorações em que podíamos produzir mais, mas a legislação não nos permite.
O setor do vinho é altamente regulado em Portugal, mas competimos com países e regiões altamente liberalizados, como Chile, Argentina, Austrália ou Califórnia (EUA) que têm muito menos barreiras e regulação. É difícil competir nos mercados internacionais quando estamos altamente regulados e os nossos concorrentes não estão. Ainda vejo pouca consciência disso por parte dos políticos.
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“Não é necessariamente de injeções de dinheiro que a agricultura precisa”
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