Chegaram milhares de documentos sobre o Novo Banco ao Parlamento mas faltam os principais, diz Mariana Mortágua em entrevista ao ECO no arranque das audições da comissão de inquérito.
Protagonista em anteriores comissões de inquérito à banca, Mariana Mortágua deixa críticas ao Governo e ao Banco de Portugal sobre o envio de documentação ao Parlamento por causa do Novo Banco. Se o Executivo nada fez quanto aos documentos pedidos pelos deputados, o supervisor selecionou a informação “a dedo”, isto apesar de a comissão de inquérito ao Novo Banco ter recebido milhares de documentos nas últimas semanas, acusa a deputada do Bloco de Esquerda.
“Pedimos comunicação entre o Governo e a Comissão Europeia sobre o processo de resolução do BES e o processo de venda do Novo Banco e nada disso chegou”, critica a dirigente bloquista no arranque das audições. “É cada vez mais óbvio que as instituições fazem uma seleção da documentação que enviam”, acusa.
Em entrevista ao ECO, Mariana Mortágua sublinha ainda que não será esta comissão de inquérito que vai decidir se há ou não nova injeção do Fundo de Resolução no Novo Banco. “Não devíamos pôr essa pressão”, avisa.
Estamos no início de mais uma comissão de inquérito a um banco. Na base de tudo isto está o tal acordo de capital contingente negociado em 2017. O Parlamento travou nova injeção este ano e o Governo assegurou que irá cumprir o contrato. Esta comissão será a prova dos nove para sabermos se haverá ou não nova injeção?
Não. Esta comissão não está ligada à nova injeção no Novo Banco. São dois assuntos separados. Esta comissão foi criada para analisar o porquê de o banco ter acumulado tantos prejuízos ao longo do tempo e para analisar se a decisão de vender naquelas condições foi ou não uma decisão acertada, independentemente da gestão que a Lone Star fez posteriormente e isto também será objeto de análise. Esta comissão servirá para analisar as decisões públicas, a decisão de resolver o BES, se, quando se resolveu, o perímetro do banco foi bem desenhado ou não, se a decisão de venda foi boa ou não naquele modelo e se aquele modelo favoreceu ou não uma gestão contrária ao interesse público. Não será esta comissão de inquérito que irá analisar se a nova injeção vai ou não acontecer até porque os tempos da comissão de inquérito não são compatíveis com os tempos dessa decisão. Não devíamos pôr essa pressão na comissão de inquérito porque não é esse o seu objetivo.
Esperam ter algumas conclusões da auditoria do Tribunal de Contas ainda durante os trabalhos da comissão de inquérito? O que o Tribunal tem dito ao Parlamento sobre o andamento do processo?
Neste momento não temos nenhuma novidade em relação ao andamento deste processo. É um processo que decorre no Tribunal de Contas.
As audições arrancam com João Costa Pinto. O que poderá trazer de novo para o debate tendo em conta que já foi ouvido na anterior comissão de inquérito à Caixa?
A questão é que, entretanto, os deputados conhecem o relatório secreto do Banco de Portugal. O relatório faz uma avaliação muito importante do desempenho do Banco de Portugal em todo o caso do acompanhamento ao BES. O Banco de Portugal é uma instituição pública, não pode fugir ao escrutínio. É importante encerrar o caso BES com um apuramento de responsabilidades e podendo debater o instrumento mais importante nesse apuramento que é o próprio relatório que o Banco de Portugal fez à sua intervenção e que até agora era desconhecido dos deputados e que nós queremos que se torne público, mas que ainda não conseguimos.
Não será esta comissão de inquérito que irá analisar se a nova injeção vai ou não acontecer até porque os tempos da comissão de inquérito não são compatíveis com os tempos dessa decisão. Não devíamos por essa pressão na comissão de inquérito porque não é esse o seu objetivo.
O relatório tem alguma conclusão que a tenha surpreendido?
O relatório acaba por confirmar, de forma mais pormenorizada e com uma análise mais consubstanciada, as principais conclusões que a comissão de inquérito chegou relativamente à intervenção do Banco de Portugal no BES.
O relatório do Banco de Portugal mantendo-se em segredo retira força à audição?
Seria mais produtivo se o relatório fosse conhecido pelos jornalistas e pelas pessoas em geral. É um relatório muito fácil de ler, com muita informação. Ganharia o debate público se fosse conhecido. Não o sendo, é preciso fazer o debate para que os elementos mais relevantes possam ser discutidos porque o relatório tem interesse público.
Depois de ler o documento continua a achar que não contém informação confidencial?
Nenhuma.
Ao Parlamento chegaram milhares de documentos. Do que já teve oportunidade de ler, e sem querer violar qualquer exigência de confidencialidade, alguma informação que tenha saltado da análise e que vai ser relevante para o decurso da comissão de inquérito?
Ainda é cedo para dizer isso. Agora também é verdade que as instituições que enviam a documentação são muito céleres e muito disponíveis em enviar milhares de documentos quando entendem que são documentos muito volumosos, mas muito deles pouco relevantes ou são muito difíceis de analisar por se tratar de operações individualizadas, mas, ao mesmo tempo, atrasam o envio de documentação que pode ser muito mais relevante, nomeadamente correspondência, documentos de avaliação interna. Estes documentos não chegam, o que chegam são milhares de outros documentos. Parece-me que é cada vez mais óbvio que as instituições fazem uma seleção da documentação que enviam. Não têm nenhum problema em dar ao Parlamento os documentos, exacerbando até alguns pedidos que foram feitos. Mas depois acabam por não enviar alguns outros documentos que são cruciais. Parece que é uma estratégia que se tendo vindo a consolidar por parte das instituições que enviam documentos ao Parlamento.
À partida para a primeira audição, em que ponto se encontra o nível de documentação que foi pedida pelo Parlamento e já chegou às vossas mãos? Está quase tudo entregue?
Não está quase tudo entregue. O Governo não enviou um documento, não fez nada. Não entregou absolutamente nada. O Banco de Portugal entregou correspondência escolhida a dedo.
Que documentação foi solicitada ao Governo?
A lista é extensa, mas entre os documentos mais relevantes está a comunicação entre o Governo e a Comissão Europeia sobre o processo de resolução do BES e o processo de venda do Novo Banco e nada disso chegou. Não temos ainda os compromissos que foram assumidos pelo Estado português com a Comissão Europeia no âmbito deste processo. Nem a correspondência com o Banco de Portugal, nem a correspondência com o próprio Novo Banco.
As instituições não têm nenhum problema em dar ao Parlamento os documentos, exacerbando até alguns pedidos que foram feitos. Mas depois acabam por não enviar alguns outros documentos que são cruciais. Parece que é uma estratégia que se tendo vindo a consolidar por parte das instituições que enviam documentos ao Parlamento.
Sabemos que todas as audições são consideradas importantes. Mas como vimos em anteriores comissões de inquérito, há umas mais importantes do que outras. Quais serão aquelas que poderão trazer mais dados para o debate e ajudar nos objetivos desta comissão?
É muito cedo para dizer ainda. Muitos destes intervenientes já vieram várias vezes ao Parlamento e é preciso compreender se os documentos permitem que estas inquirições possam trazer nova informação ou se, pelo contrário, se vai insistir nas mesmas narrativas que temos tido até agora.
Na anterior comissão da Caixa, as audições mais marcantes talvez tenham sido ao conjunto dos grandes devedores porque nos ajudou a perceber a relação que tinham com os bancos. Esta comissão poderá ajudar a completar essa imagem sobre a relação entre os grandes grupos económicos e o setor da banca?
Essa relação, para o bem e para o mal, terminou. Podemos avaliar como foi essa relação no passado. Haverá certamente uma análise sobre a relação entre o banco e os grandes grupos e isso é importante. Há uma parte que acredito que seja menos atraente para a comunicação social que é a parte do escrutínio das decisões públicas e da forma como é que a Comissão Europeia, o BCE, o Governo português e o Banco de Portugal acabaram por condicionar e tomar decisões que afunilaram as respostas possíveis para uma venda desastrosa. Isso é importante que possamos avaliar.
Como disse, já tivemos vários destes intervenientes no Parlamento. Porque é que estas dúvidas em torno deste processo continuam a subsistir? As explicações não são suficientes, o tema é complexo ou há algum tipo de interesse em manter a discussão neste nível de informação?
O Parlamento nunca teve acesso a toda a informação, foi conhecendo os factos a conta gotas e uma coisa é certa: o BES foi resolvido em 2014, foi-nos dito que tinha sido criado um banco bom e esse banco bom já levou mais de 7 ou 8 mil milhões de euros de capital, o que torna o BES no banco mais sorvedouro de recursos de todos os bancos do sistema português, incluindo a Caixa, que é maior e também teve uma série de créditos problemáticos. Isso merece avaliação: o que é que se passou no BES para depois ter sido prometido um banco bom e se terem acumulado prejuízos dessa forma, e de que forma a Lone Star geriu esse processo. Isto tem de ser analisado sem qualquer pré-condição. Este negócio é demasiado importante para tentarmos compreender em que termos é que ele aconteceu.
Acredita que com esta comissão de inquérito todo este processo do BES e mesmo as operações de vendas de ativos do Novo Banco vão ser esclarecidos?
Não acredito. Uma coisa são as dúvidas relativamente ao processo e a capacidade que temos para investigar e isso é muito importante. Mas há um conflito político também, e falo em nome do Bloco de Esquerda. Não nos revemos na decisão de venda do Novo Banco, independentemente se há ou não violação do contrato, se há ou não questões a resolver do ponto de vista da própria gestão do banco e das decisões que foram tomadas, há uma parte que diz respeito à decisão política e as decisões políticas foram erradas. Foi um erro ter vendido o banco em 2017 da forma como foi vendido, foi um erro não ter imposto condições e ter dado uma garantia deste nível. Mas isto não é matéria que tem de ser apurada na comissão de inquérito, é uma oposição política que existe. As divergências políticas em relação ao Novo Banco vão continuar a existir mesmo depois da comissão de inquérito.
Agora, a comissão de inquérito serve para esclarecer algumas questões que estavam em aberto, esta evolução dos prejuízos e porque é que as decisões foram tão mal tomadas relativamente ao Novo Banco.
Este inquérito poderá reforçar a posição política do Bloco em relação ao processo do Novo Banco?
Acredito que a comissão de inquérito vai, pelo menos, consolidar a posição de que vender um banco com uma garantia e sem que o Estado tenha poder para fiscalizar é um disparate. Da mesma forma como vender um banco sem esperar tempo suficiente para os ativos valorizarem é um disparate. Houve uma série de decisões que foram precipitadas e que acabaram por ajudar aos prejuízos do banco.
Se as decisões foram tomadas unilateralmente pelo Governo, se foram pressionadas pela Comissão Europeia ou pelo Banco Central Europeu, ou se foi o Banco de Portugal que as tomou, é isso que temos de compreender. A verdade é que essas decisões foram erradas. O Novo Banco é uma sucessão de decisões erradas desde o momento da resolução. A pressa que Portugal teve para instaurar e inaugurar um modelo inovador de resolução na União Europeia e apresentá-lo como caso de sucesso foi claramente errada. Esse processo tem de ser analisado até para futuro pois, mais tarde ou mais cedo, vamos passar por situações semelhantes.
"Acredito que a comissão de inquérito vai, pelo menos, consolidar a posição de que vender um banco com uma garantia e sem que o Estado tenha poder para fiscalizar é um disparate. Da mesma forma como vender um banco sem esperar tempo suficiente para os ativos valorizarem é um disparate.”
Teme que a pandemia atrase ainda mais os trabalhos e estes se prolonguem demasiado no tempo e tirem alguma consistência à comissão de inquérito?
Neste momento as audições da comissão de inquérito irão arrancar e penso que irão decorrer com normalidade daqui em diante.
Será um ano de autárquicas. Vê a comissão de inquérito tornar-se num terreno de combate político por causa disso ou já há elementos suficientes que tornam essa discussão política inevitável nesta comissão de inquérito?
A discussão política em torno do Novo Banco existe desde o dia em que o BES foi resolvido. O Novo Banco nunca deixou de ser assunto, num deixou de ser uma polémica. É polémica porque absorveu 10 mil milhões de euros dos contribuintes. E isso não tem nada a ver com eleições, tem a ver com um banco que é um sorvedouro de recursos públicos e que foi alvo de várias decisões por parte de instituições públicas e vários erros também. Não é preciso inventar para criar polémica sobre o Novo Banco, o Novo Banco é em si uma polémica. Sempre foi e vai continuar a ser polémica sempre que continuar a pedir recursos ao Fundo de Resolução e, indiretamente, aos contribuintes.
Já nos habituamos a ver a Mariana a assumir um papel de destaque nas inquirições. Como se prepara para estes temas tão complexos?
Os inícios das comissões de inquérito são mais trabalhosos porque é preciso ler o máximo de documentação possível. Essa é a melhor preparação. As pessoas têm a ideia de que as comissões de inquérito só começam quando se iniciam as inquirições. Além das inquirições, entendo que a documentação é uma componente muitíssimo importante nas comissões de inquérito. À medida que as instituições enchem o Parlamento com documentação que poderia ser mais relevante, isso também se torna mais difícil de fazer. Esse é o grande desafio da comissão de inquérito: separar o trigo do joio e encontrar a documentação de suporte que seja mais relevante.
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