“O PS nunca se associará a estes valores” de renda moderada

A deputada socialista Marina Gonçalves, ex-ministra da Habitação, diz que as medidas do Governo "estão desajustadas do rendimento" dos portugueses e vão aumentar os preços.

A deputada socialista Marina Gonçalves considera que as medidas para a habitação apresentadas pelo Governo “estão desajustadas do rendimento” dos portugueses, vão criar mais entraves ao acesso ao mercado e aumentar os preços.

Em entrevista ao ECO, a ex-ministra da Habitação enaltece a criação de estímulos para aumentar a oferta e a simplificação do licenciamento urbanístico, mas alerta que “o PS nunca se associará a estes valores” de limites de renda moderada, no limite dos 2.300 euros e vendas até aos 648 mil euros. “Temos de ver os diplomas para fazer uma ponderação mais séria“, diz Marina Gonçalves.

O PS já mostrou disponibilidade para negociar sobre este pacote. Quais são as medidas nas quais há alinhamento e linhas vermelhas?

Temos dito desde o primeiro momento – e tivemos a oportunidade de mandar uma carta ao primeiro-ministro – que esta era uma das áreas onde que era importante haver o máximo de consenso possível, porque é uma emergência nacional. É um problema que já não respeita só às famílias com menores rendimentos, mas também à classe média e às famílias jovens que se querem autonomizar e começar uma vida.

Por isso, é importante que possamos encontrar pontos comuns de convergência. Quando falamos de reforço de linhas de investimento para habitação a preços acessíveis, instrumentos de incentivo para que proprietários e senhorios possam trazer os seus imóveis para o mercado, medidas que venham baixar diretamente os custos do do preço da habitação… Estamos, obviamente, do lado da solução. O problema é quando essas soluções são inquinadas à nascença.

As rendas moderadas?

O conceito de preços moderados é, para nós, de muita divergência neste momento. Ainda não há nenhum tipo de conversação nem proposta no Parlamento, mas é preocupante que a base em que assenta quase a totalidade das propostas, como o IVA a 6%, os investimentos e a dedução de rendas, sejam determinados valores. Quando esses limites são 2.300 euros no caso de uma renda e 648 mil euros de uma casa que que será vendida é um patamar que não corresponde à nossa realidade.

O Governo argumenta que foi o teto encontrado para englobar o valor médio na maior parte das zonas do país sem comprometer as finanças públicas.

Realística e objetivamente temos de fazer esta discussão olhando para a forma como o mercado se comporta. Um privado, quando olha para um projeto e quer avançar, olha para a dimensão principal, o lucro, além da resposta ao serviço público. Quando aumentamos os limites, o efeito imediato que vemos é o encostar aos limites máximos.

Isto não é uma crítica. É um facto, como vimos no Porta 65 e noutras medidas deste género. É com alguma incompreensão com ouço o ministro das Infraestruturas dizer que há muitos casais jovens com um rendimento de 5.000 euros. É uma utopia. Uma taxa de esforço de 46% é incomportável e nunca devia estar na base de uma política pública. O que temos, neste momento, é um conjunto de medidas que estão completamente desfasadas nos limites que são definidos e na realidade dos portugueses.

O salário médio em Portugal é de 1.741 euros, inferior aos 2.300 euros. Quando construímos uma política pública temos o objetivo de responder às famílias, jovens e classe média. Ora, se faço medidas que não só não chegam a esta frente da população, como terá um efeito de aumento dos preços, ainda os estamos a prejudicar mais.

É com alguma incompreensão com ouço o ministro das Infraestruturas dizer que há muitos casais jovens com um rendimento de 5.000 euros. É uma utopia. Uma taxa de esforço de 46% é incomportável e nunca devia estar na base de uma política pública.

Para o PS, qual seria o valor máximo para ser considerado uma renda moderada?

O Governo teve o cuidado de retirar o conceito de renda acessível e colocar o de renda moderada. Digo o cuidado, porque deixou de ser acessível, por isso é que precisa de ser um conceito novo. A alteração que é feita não é um pormenor. É mesmo uma grande alteração.

Então não é um problema de semântica?

Não acho que seja semântica. Acho que é mesmo para redefinir o objetivo da política pública, para um segmento da população, porque senão mexia-se no regime que já está. É para responder só a alguns. Por exemplo, fala-se muito dos incentivos fiscais aos senhorios (isenção total de tributação nas rendas que estão a preços acessíveis) não chegarem a muita gente pela burocracia. Pois bem, olhe-se para o programa e perceba-se como retirar a burocracia.

Devíamos até olhar para os valores [da renda acessível, como estabelece a lei dos solos] e perceber se estão desatualizados. O que está a ser feito não é uma atualização de valores. É mesmo uma opção política de olhar para um pequeno grupo da população e aumentar brutalmente os limites, que vão ser tidos em conta na construção das soluções no futuro.

Mesmo sem conhecer os detalhes as propostas em matéria fiscal ou até de licenciamento, estão disponíveis para viabilizar medidas?

Sobre o licenciamento, é a quarta vez que ouvimos esse anúncio do Governo. O “Construir Portugal” foi apresentado em maio de 2024 e tinha como uma das soluções o licenciamento e a simplificação. Recordo que, nesse mesmo ano, entrou em vigor o Simplex Urbanístico, fruto do “Mais Habitação”, e tínhamos três das medidas: o diferimento tácito, a redução dos prazos e passar muitas das obras que hoje são objeto de licenciamento para comunicação prévia.

Esse exercício já foi feito, mas não rejeitamos que se volte a fazer para saber se é aplicado na prática. Acho que é uma dimensão em que devíamos mesmo olhar, porque acho que está a ser esquecida pelo Governo.

Se está a colocar oferta no mercado?

Exatamente. A confiança no mercado dá-se se eu garantir a um privado que procura construir habitação que vai ter um processo em prazos normais. É fundamental que se passe dos anúncios sucessivos sobre a mesma matéria para propostas concretas, sobre as quais temos sempre disponibilidade para tratar.

Por clareza, vou-lhe dizer as propostas que vão no bom sentido: simplificar licenciamento e criar estímulos para aumentar a oferta e reduzir o preço. O problema é que a maior parte destas propostas baseia-se no preço. Com os valores que que estão em cima da mesa, neste momento, não estamos a responder à classe média nem aos jovens e, portanto, o PS nunca se associará a estes valores.

“Simplificar licenciamento e criar estímulos para aumentar a oferta e reduzir o preço” são “propostas que vão no bom sentido”, diz Marina Gonçalves, antiga ministra da Habitação, em entrevista ao ECO. “O problema é que a maior parte destas propostas baseia-se no preço”, critica a agora deputada do PS.Hugo Amaral/ECO

No caso do aproveitamento do património do Estado, no âmbito deste pacote legislativo, como analisam o mapa dos imóveis públicos para hasta pública e PPP?

É uma medida que nos preocupa, porque naqueles nove imóveis identificados temos, pelo menos, um – a Secretaria Geral da Presidência de Conselho de Ministros (PCM) – que tem todas as características e aptidão habitacional e, com uma reabilitação mais profunda ou menos, permitia dar dezenas de habitações.

A opção do Governo é vender um património sem que haja uma garantia de que irá para habitação ou outro fim para, depois com o investimento que venha a fazer, poder canalizar para uma política de habitação. Isto é muito errado, não apenas do ponto de vista de salvaguarda do património público como também da operacionalidade do investimento.

O número de imóveis para alienação levou algumas questões. Ao Bloco de Esquerda, em novembro, o Governo tinha indicado 19 em vez de nove. Têm alguma listagem distinta da que foi apresentada?

Com total clareza, temos de referir que a inventariação do património do Estado é um processo que não terminou com o PS. Estava em crescendo e estavam a ser incorporados vários imóveis. Essa lista de que se fala — entregue em novembro, porque tivemos esta discussão no Orçamento do Estado — é a lista dos imóveis que são libertos pelos serviços e depois centralizados todos na Caixa Geral de Depósitos.

O próprio Governo diz que esta é a primeira leva de edifícios que será colocado em hasta pública. Na altura [novembro de 2024] foi dito uma coisa diferente: houve a garantia de que o património com aptidão habitacional ficaria no Estado para promover habitação. O que se está a fazer agora é vendê-lo todo. Nas PPP há outros exemplos incompreensíveis, como o antigo Campo das Salésias, a Quinta da Alfarrobeira, o Hospital Miguel Bombarda… O Miguel Bombarda está desde 2020 na Câmara de Lisboa sem que seja sequer aprovado o pedido de informação prévia.

Era a Fundiestamo que tinha este imóvel para fazer arrendamento acessível, mas está parado graças ao PSD. Se agora a Câmara de Lisboa responder temos muito claro porque é que esteve parado, mas ainda bem que continua a estar para arrendamento acessível – desde que seja nos valores que tínhamos.

Simultaneamente, um desses nove imóveis está em processo de aquisição pela Câmara de Lisboa. Carlos Moedas diz que é um “erro”, mas o Governo ainda não o confirmou. Estão a acompanhar tema?

Esse é o exemplo de como não se está a gerir o património do Estado e apenas a vender sem olhar verdadeiramente para a sua função e para o que podia ser. Falei em concreto da Secretaria Geral da PCM porque é o exemplo paradigmático do imóvel que não devia sair do Estado, porque tem todas as condições para ser convertido em habitação. Quanto aos outros, essa avaliação estava em curso.

No anterior Governo, começámos um caminho de redefinição das competências de cada entidade para simplificar e para tornar mais eficaz o seu funcionamento. A Estamo já tinha um papel importante na identificação dos devolutos, integração dos imóveis e distribuição em função da política. Em maio de 2024, quando o plano foi apresentado, referia a construção pública como a máquina para promover o arrendamento acessível. Desapareceu agora desta organização do Estado.

Para dar confiança ao mercado, temos de ter processos que funcionam bem para os dois lados: inquilino e senhorio. Não podemos é abdicar de uma com a retirada de um conjunto de salvaguardas para os arrendatários. Preocupa-nos olhar para o histórico PSD-CDS da Lei Cristas, que foi uma desproteção total das famílias.

Por outro lado, há um aproximar à esquerda — não necessariamente o PS, mas eram bandeiras do Bloco de Esquerda e do PCP – com o agravamento do IMT em compras de casas por não residentes. Esta medida também se junta ao vosso leque das que vão no bom sentido?

Conhecemos pouco da abrangência da medida, e portanto da sua eficácia, mas sendo justa, é uma medida que vem no sentido correto, na teoria. Não é que o PS considere que só medidas de agravamento é que podem responder a uma política de habitação, mas temos de pôr na balança os vários direitos e perceber o que priorizar. Como outras, que se não tivessem a alteração dos tetos podiam ser positivas. Quando todas (ou a maioria) as propostas estão assentes nos novos tetos que foram definidos, torna-se muito difícil fazer esta discussão.

A apresentação do programa estende-se até dezembro. Do que foi possível apurar, está a ser estudado o fim do limite dos 2% para o aumento das rendas nos novos contratos de arrendamento. Que efeitos antecipa?

Foi anunciado pelo ministro que vai haver um novo pacote legislativo ainda este ano mais centrado no Novo Regime do Arrendamento Urbano (NRAU). Isso preocupa-nos muito, não pela alteração em si – temos de a conhecer para avaliar – mas por algumas das premissas que já foram referidas. Sabemos que, para dar confiança ao mercado, temos de ter processos que funcionam bem para os dois lados: inquilino e senhorio.

No “Mais Habitação”, através do Balcão Nacional de Arrendamento, fizemos simplificações para que fosse um processo célere. Essa dimensão é importante. Não podemos é abdicar da outra com a retirada de um conjunto de salvaguardas para os arrendatários. Preocupa-nos olhar para o histórico PSD-CDS da Lei Cristas, que foi uma desproteção total das famílias.

Teme que seja uma nova Lei Cristas?

Seria errado da nossa parte estarmos já a tirar conclusões de algo que não conhecemos, mas preocupa-nos que o caminho para dar confiança seja retirar direitos, como é o caso do travão dos 2% de que que se falou. É preciso estimular a oferta, mas também é preciso respeitar quem procura casa. Trabalhemos neste novo conceito de arrendamento moderado – acabemos com ele, se calhar – e voltemos ao arrendamento acessível e, se for necessário, atualize-se. O problema é que todos acordámos tarde para o problema da habitação no país.

Só em 2015 é que começámos a pensar numa estratégia global para habitação. Antes tínhamos tido o PER [Programa Especial de Realojamento] e mais nada de política estruturada, portanto quando se começou a construir já as famílias tinham problemas de acesso à habitação e, depois, tivemos o boom do imobiliário em todo o mundo, a pandemia, uma crise inflacionária provocada pela invasão da Rússia à Ucrânia, a pressão adicional de turismo e o aumento de imigração.

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