Novas tecnologias prometem avisar se estivemos perto de alguém com Covid-19. Começam a chegar também a Portugal, apesar das dúvidas sobre a sua eficácia e receios em torno da privacidade dos cidadãos.
Semanas depois de o governo de Singapura ter lançado uma tecnologia para localizar e combater o coronavírus, somente um em cada seis cidadãos tinha instalado a aplicação no telemóvel. A fraca adesão levou o responsável do projeto a declarar: “Se me perguntam se os sistemas de contact tracing já lançados ou em desenvolvimento, em qualquer parte do mundo, estão prontos para substituir o contact tracing manual, digo sem qualificação que a resposta é não. Não agora, nem num futuro próximo.”
Nos últimos dias, este conceito epidemiológico — contact tracing — assumiu uma presença assídua no debate público sobre novas formas de combate à pandemia. Refere-se à prática de “investigar” os contactos que uma pessoa infetada pelo vírus teve num passado recente, de forma a detetar a cadeia de transmissão da doença e a isolar possíveis casos que ainda não tenham sido identificados. Por norma, é uma tarefa complexa, feita por médicos e profissionais de saúde, não escalável e que consome recursos. Mas agora, também em Portugal, a tecnologia promete dar uma ajuda.
Entre as soluções portuguesas mais bem lançadas encontra-se a STAYAWAY, uma tecnologia de “rastreio rápido” do coronavírus que está a ser desenvolvida pelo INESC TEC, inserida no projeto “monitorCovid19.pt”. O protótipo já foi apresentado a membros do Governo português e até ao Presidente da República, assim como aos parceiros sociais e partidos com assento parlamentar. A intenção é “desenvolver um sistema baseado numa app, que corre nos telemóveis e que seja um auxiliar para as entidades públicas no rastreio e identificação de potenciais infetados com Covid-19″, explica ao ECO Rui Oliveira, administrador daquela instituição científica.
“Quando um de nós, atualmente, é diagnosticado com Covid-19, os serviços de saúde perguntam-nos com quem privamos nos últimos dias, onde estivemos e quando estivemos, de forma a tentar perceber se as pessoas que se cruzaram connosco poderão estar infetadas com o vírus. Depois disso, há uma equipa de profissionais que tenta chegar a essas pessoas que podem estar contagiadas. É um processo que exige muito dos profissionais de saúde e que é minado muitas vezes à nascença pela falta de informação”, justifica o investigador e cientista.
Já no início de abril, Apple e Google também uniram esforços para desenvolver uma tecnologia semelhante e que deverá vir já instalada de origem na generalidade dos smartphones em todo o mundo. As empresas não se comprometeram com datas, embora o Tech Crunch tenha noticiado que a apresentação da ferramenta deverá ser feita muito em breve. Dado a influência destas empresas, bem como a ubiquidade dos sistemas operativos que gerem (iOS e Android), o contact tracing poderá mesmo ser uma solução que vem para ficar.
GPS é palavra proibida
Importa entender como funcionam este tipo de aplicações de contact tracing. Os cidadãos são convidados a instalar um aplicativo no telemóvel. O telemóvel vai gerando códigos únicos e anonimizados que são constantemente emitidos por Bluetooth para os telemóveis nas redondezas. À medida que um telemóvel vai emitindo esses códigos, vai também anotando os que recebe. Esta informação é, depois, guardada no próprio dispositivo ou enviada para um servidor remoto, onde permanece armazenada.
Quando um dos utilizadores da aplicação é diagnosticado com Covid-19, essa informação é colocada na aplicação. A partir daqui, todos os códigos gerados pelo telemóvel do doente são identificados como pertencendo a um utilizador infetado. Em simultâneo, os telemóveis que tenham registado os códigos gerados pelo telemóvel identificado recebem um alerta de que os seus utilizadores poderão ter estado em contacto com uma pessoa doente. Esse alerta pode mesmo vir com uma recomendação para que estes casos “suspeitos” contactem e se dirijam até junto das autoridades de saúde.
Em teoria, o sistema não permite identificar que telemóvel gerou um determinado código e quem é a pessoa infetada. A informação é aleatória e anónima e os códigos são compostos por muitos dígitos. No entanto, na prática, não é garantidamente assim. Segundo o The New York Times, em muitos países começam a surgir receios em torno da privacidade dos cidadãos. Em causa, eventuais vulnerabilidades que possam existir nestes softwares e que permitam a agentes mal-intencionados obterem uma vasta quantidade de informação sensível de uma “fatia” relevante da população. Afinal, como ensina o mantra da cibersegurança, nenhum sistema tecnológico pode ser considerado 100% seguro.
Mas outras questões também têm sido levantadas do ponto de vista da proteção dos dados pessoais dos cidadãos. Num documento com diretrizes sobre estas tecnologias de contact tracing, datado de 21 de abril de 2020, o Comité Europeu para a Proteção de Dados (CEPD), do qual faz parte a portuguesa Comissão Nacional de Proteção de Dados (CNPD), estão plasmados alguns desses receios: “Governos e atores privados estão a voltar-se para o uso de soluções baseadas em dados como parte da resposta à pandemia Covid-19, levantando inúmeras preocupações com a privacidade”, escreve a autoridade que junta as diferentes entidades de proteção de dados dos países da União Europeia (UE).
Como tal, este organismo europeu defende a adoção de um sistema harmonizado na UE, ao invés de soluções diferentes patrocinadas por cada Estado-membro. No seio da Comissão Europeia, parece mesmo existir uma palavra proibida, GPS. Isto porque Bruxelas já veio alertar que, à luz das regras comunitárias, não é legal usar a geolocalização dos aparelhos para combater o Covid-19: “Os dados de localização não são necessários nem recomendados para efeitos de aplicações de localização de contactos, uma vez que o objetivo não é acompanhar os movimentos das pessoas nem fazer cumprir as ordens”, apontou a entidade presidida por Ursula von der Leyen.
Junta-se ainda o facto de que qualquer aplicativo de contact tracing na Europa necessita de ser voluntário. De forma a não violar o Regulamento Geral de Proteção de Dados (RGPD), há que obter o consenso dos utilizadores, um cenário bem diferente do que se verifica em países com regimes autoritários, como foi o caso da China, e que estará já politicamente afastado. Como noticiou o Público, o Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa, e o primeiro-ministro, António Costa, consideram que forçar o uso de um sistema de contact tracing em Portugal esbarraria na Constituição, isto é, seria ilegal também à luz do Direito português.
O ECO enviou um conjunto de questões à CNPD acerca da privacidade dos cidadãos e da posição da CNPD relativamente às aplicações de contact tracing. Não obteve resposta a tempo de publicação deste artigo. Contactados, o Ministério da Saúde e a Direção-Geral da Saúde também não responderam.
Sobre estes receios, Rui Oliveira reconhece que “a discussão anda mais à volta dos aspetos não funcionais do que dos aspetos funcionais” deste tipo de tecnologias. No que diz respeito à privacidade, a STAYAWAY “cumpre escrupulosamente a legislação europeia, nacional e o RGPD, e não fornece qualquer informação às autoridades de saúde”, promete o administrador do INESC TEC.
Com efeito, toda a informação que a aplicação permite recolher, e que se limita aos tais códigos gerados pelos telemóveis, “é absolutamente pública e absolutamente aleatória”. “Tudo o que a aplicação partilha são números gerados aleatoriamente e que, por definição não fazem qualquer referencia à identidade do telemóvel e à identidade do utilizador”. “Como está feita, a aplicação permite muito facilmente garantir a qualquer pessoa que a privacidade será assegurada”, reforça Rui Oliveira.
Governos e atores privados estão a voltar-se para o uso de soluções baseadas em dados como parte da resposta à pandemia Covid-19, levantando inúmeras preocupações com a privacidade.
Sem escala, eficácia é comprometida
A privacidade não é, contudo, o único problema em torno das aplicações de contact tracing para o Covid-19. Existem ainda dúvidas quanto à eficácia destes aplicativos, que se adensaram com a publicação de dados pouco animadores para os entusiastas deste tipo de soluções. De acordo com um estudo da Universidade de Oxford, é necessário que 60% da população de uma determinada área opte por instalar e manter ligada a aplicação para que este tipo de ferramenta seja eficaz no combate à pandemia.
Trata-se de uma percentagem elevada e que dificilmente é alcançada se uma dada ferramenta não for obrigatória. Já para não falar de que nem todos os portugueses têm um smartphone. O melhor exemplo, até ao momento, parece ser o da Noruega: 30% da população já usava a aplicação oficial de contact tracing uma semana e meia depois de a solução voluntária ter sido lançada. Ainda assim, muito abaixo dos 60% tidos como necessários para a eficácia referida.
A fasquia de 60% da população portuguesa é um número alto que Rui Oliveira também reconhece: “Os números dos modelos que temos são esses.” Mas nem por isso a ambição e rasgo do cientista esmorecem: “Se todos nós conseguirmos informar as pessoas de que existe esta aplicação e de qual é o objetivo da mesma, tenho dificuldade em encontrar uma razão racional que faça com que alguém não a instale”. Como foco de atratividade poderá estar o “egoísmo” da população, de querer saber, para sua própria proteção, se se cruzou com alguém infetado. “Ganho uma vantagem”, explica o investigador. Isto ao mesmo tempo que, sem esforço, contribui também para o sistema.
Uma das soluções para a dificuldade em ganhar escala poderá estar no protocolo que está a ser desenvolvido pela Apple e pela Google, e que o INESC TEC pretende adotar para a STAYAWAY assim que fique disponível. “A Google e a Apple têm tido uma atitude de extremo cuidado e razoabilidade, de verdadeira colaboração. O que eles vão fornecer não é uma app, é um enriquecimento da API [sistema de integração] do Bluetooth dos sistemas operativos que eles têm. Já temos as certificações e devem estar a lançá-la mais dia, menos dia”, explica. Assim, “mal a Google e a Apple disponibilizam as novas API, passamos a usar essa”, revela o responsável.
Mesmo assim, restam também questões do ponto de vista dos “falsos positivos”. O uso do Bluetooth pode ajudar a proteger a privacidade dos cidadãos, mas não permite situar um determinado telemóvel no espaço, ao contrário do que seria possível através da recolha das suas coordenadas exatas. Há, por isso, o risco de que um cidadão que tenha circulado numa rua seja notificado de que pode ter contactado com uma pessoa infetada, mesmo que essa pessoa estivesse em casa ou no interior de um edifício próximo. Casos como este poderão gerar alarmismo e dificultar ainda mais a tarefa já complicada dos profissionais de saúde.
Se todos nós conseguirmos informar as pessoas de que existe esta aplicação e de qual é o objetivo da mesma, tenho dificuldade em encontrar uma razão racional que faça com que alguém não a instale.
Operadoras podem ajudar
Neste contexto, as operadoras de telecomunicações poderão assumir um papel relevante, sobretudo na promoção de uma eventual aplicação oficial junto dos respetivos clientes. E, ao que o ECO apurou, pelo menos a Altice Portugal assume-se disponível para “colaborar” com o Estado nesta vertente.
“A implementação de aplicações móveis, que permitem aos utilizadores saber se estiveram em contacto com algum doente com Covid-19, trata-se de uma decisão política e legal no apoio à gestão da saúde pública”, começa por dizer ao ECO fonte oficial da dona da Meo. “A Altice Portugal fará o que for determinado pelas entidades competentes, encontrando-se sempre disponível para colaborar, tal como tem vindo a acontecer em inúmeras ações nas áreas da saúde e da educação”, reconhece.
Mas a avançar qualquer iniciativa, a empresa liderada por Alexandre Fonseca salienta, desde já, o foco na privacidade e na segurança dos dados pessoais dos cidadãos: “Tratando-se de um contexto sensível, a Altice Portugal prima sempre por introduzir neste tipo de soluções ferramentas que garantam a total confidencialidade dos processos e dados pessoais”, refere a mesma fonte. O ECO contactou também a Nos e a Vodafone Portugal acerca deste tema. Não foi possível obter respostas destas operadoras a tempo de publicação deste artigo.
“Temos tido contactos com as operadoras”, admite Rui Oliveira, referindo-se a um projeto mais abrangente onde se insere a aplicação de contact tracing que o INESC TEC está a desenvolver. “Temos conversado sobre em que medida as operadoras podem contribuir. A nossa relação, até com a própria Anacom, é relativamente próxima”, garante.
Governo tem faca e queijo na mão
Para já, é certo que a STAYAWAY não verá a luz do dia se o Governo não lhe der a sua bênção: “Por razões naturais, se não houver apoio do Governo, não fará sentido lançar a aplicação. Porque, não havendo apoio do Governo, deverá, julgo eu, significar que as autoridades de saúde não se juntam ao projeto”, indica.
O INESC TEC precisa, desde logo, que sempre que um teste de diagnóstico de Covid-19 tenha resultado positivo, essa informação venha acompanhada de um código único, aleatório e temporário, que o cidadão infetado pode, depois, voluntariamente, introduzir na aplicação para alertar os cidadãos com quem se cruzou. De outra forma, qualquer pessoa, independentemente de ter ou não ter feito o teste, poderia dar-se como infetada a qualquer momento e prejudicar a integridade da informação.
“Sem as autoridades de saúde, isto não pode existir”, confessa Rui Oliveira ao ECO. “A população não perceberia por que aderir a uma app destas se o governo decidisse não a apoiar”, nota. Por isso, a adoção desta tecnologia poderá estar nas mãos do Governo e da Direção-Geral da Saúde. Com o “OK” final, a STAYAWAY será disponibilizada nas duas principais lojas de aplicações, Play Store e App Store, provavelmente com outro nome.
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Aplicações prometem “rastreio rápido” do coronavírus. Eficácia e privacidade geram dúvidas
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