Depois do foco na indústria e na produtividade, a sociedade 5.0 promete voltar a colocar o ser humano no centro da inovação e transformação tecnológica. O que nos falta para atingir esse patamar?
Sociedade 5.0. Sociedade super-inteligente. Sociedade da imaginação. Três conceitos, uma definição. “Uma sociedade centrada no homem, que equilibra o progresso económico com a resolução de problemas sociais, através de um sistema que integra de forma eficaz o ciberespaço e o espaço físico”. A explicação é da autoria do governo do Japão, país onde nasceu este conceito.
A sociedade super-inteligente surge como resposta aos principais desafios do mundo começando, desde logo, pelo envelhecimento populacional, um problema especialmente expressivo no país asiático. Com uma esperança média de vida de cerca de 81 anos para os homens e 87 anos para as mulheres, o Japão é um dos países do com maior número de idosos. A par disto, segundo o Banco Mundial, a taxa de fecundidade ronda os 1,4 filhos por mulher, enquanto para manter uma população estável, a média deveria estar nos 2,1.
“O Japão não cresce há 30 anos. Apesar de ser uma das sociedades mais desenvolvidas do mundo é, também, uma das mais envelhecidas”, começa por explicar André Magrinho, adjunto do presidente na Fundação AIP – Pessoas.Empresas.Economia.
“Os japoneses estão muito preocupados com o envelhecimento estrutural e com tudo aquilo que é subjacente a este problema que não conseguem resolver. Talvez seja até interessante olhar para os robôs japoneses e para os robôs americanos ou até europeus. O Japão tem desenvolvido muito mais robôs para ajudar as pessoas idosas. São robôs mais humanizados, até pela própria interface”, refere.
Tudo isto traduz-se num maior encargo para o sistema de saúde e, também, para a segurança social, que lidam com uma população que está a envelhecer — e a adoecer — e, por sua vez, traz a escassez de mão-de-obra. De acordo com a agência Reuters, há 1,63 empregos disponíveis no Japão para cada pessoa que está à procura de trabalho.
Para cada problema, uma tecnologia
Foi com este problema entre mãos que o Japão lançou as primeiras linhas que desenham aquilo que se apresenta como uma sociedade ideal, capaz de voltar a posicionar o ser humano no centro da transformação tecnológica.
Na sociedade 5.0, tecnologias como a inteligência artificial (IA), o big data, os robôs ou a realidade aumentada apresentam-se como ferramentas necessárias para resolver os problemas estruturais da sociedade, desde o envelhecimento populacional, à concentração urbana ou aos desafios ambientais. Como? “Através da implementação de avançada e sofisticada tecnologia”, afirma o governo japonês no site oficial.
“É legítimo esperarmos que a tecnologia forneça instrumentos cada vez mais potentes e aperfeiçoados, que deem suporte aos nossos esforços de resolução dos problemas sociais, organizacionais e pessoais”, refere Mário Ceitil, presidente da Associação Portuguesa de Gestão das Pessoas (APG).
“A sociedade 5.0 é mais humana, mais virada para o human touch, enquanto a famosa revolução 4.0 era muito mais focada na tecnologia como forma de desenvolver um trabalho de maior qualidade e eficiência”, explica Mariana Canto e Castro, diretora de recursos humanos na Randstad.
Se não pusermos as pessoas no centro da equação, vai tudo por água abaixo.
Admitindo que os princípios da revolução 4.0 continuam, apesar de tudo, a ser “válidos”, Mariana Canto e Castro salienta que, “no meio de tudo isto, existem pessoas”. “Se não pusermos as pessoas no centro da equação, vai tudo por água abaixo”, afirma.
Mais do que digitalizar a economia, trata-se de digitalizar as ferramentas que podem resolver os problemas da sociedade. “O centro de preocupações dos macro objetivos sofre uma deslocação muito significativa”, refere André Magrinho.
Cooperação estratégica entre governos, universidades, empresas e comunidade
Aquilo que começou por ser um “plano de crescimento para o futuro”, apresentado pelo governo japonês e já em gestação desde 2013, despertou o interesse de entidades como a Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Económico (OCDE) ou o Fórum Económico Mundial (FEM).
Aliás, no ano passado, a sociedade 5.0 foi objeto de discussão em Davos (Suíça). Seguiram-se outros momentos, nomeadamente conferências tecnológicas, onde o assunto voltou a estar no centro dos holofotes. Mas o caminho é longo.
“Ainda não é um conceito muito estabilizado, mas tem condições para ganhar um respaldo interessante”, afirma André Magrinho, admitindo que a sua implementação será, com certeza, a tarefa mais difícil.
“Colocar a tecnologia da indústria 4.0 ao serviço do ser humano envolve questões muito importantes, sobretudo ao nível do pensamento”, diz. “Uma coisa é pensar a economia pelas suas lógicas próprias, outra é pensá-la ao serviço da sociedade, do próprio cidadão, num sentido mais individualizado, quase one to one”, continua o doutorado em gestão, na área da inteligência económica e competitiva.
Para implementar a sociedade 5.0, André Magrinho considera que é fundamental aquilo que se chama de hélices quádruplas que são, no fundo, espaços de cooperação estratégica, envolvendo universidades, governos, empresas e comunidade.
“É um pouco nestas quatro hélices que se pode vir a alicerçar a sociedade 5.0”, afirma, sugerindo que os 17 Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) poderiam funcionar como um ponto de partida de cada país.
"[A definição dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável] é dos únicos consensos sociais que existem neste momento.
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“A sociedade 5.0 dá praticamente resposta às metas estabelecidas pela Assembleia Geral das Nações Unidas”, afirma. “É dos únicos consensos sociais que existem neste momento”, remata.
Fragmentação social, ditadura da tecnologia e perda de postos de trabalho?
Como se diz na literatura sociológica, “toda a ordem social gera os seus efeitos perversos”. “O mesmo acontece nesta sociedade 5.0”, afirma Mário Ceitil. “A maior sofisticação tecnológica leva a que a sociedade tenda a estratificar-se em nichos cada vez mais especializados, diversificados e generalizadores, que vão funcionar como uma espécie de mini sociedades autónomas”, refere, acrescentando que tal, inevitavelmente, conduz a uma maior fragmentação social.
Para evitá-lo, Mário Ceitil considera que serão precisos “mecanismos de integração social centrados em propósitos mais elevados e que sejam suficientemente apelativos para congregar coletivos multivariados, unidos justamente por esse propósito comum”.
O investidor Augusto Bernuy diz, ainda, que, sobretudo, ao princípio, algumas pessoas vão ser discriminadas. “Não temos tecnologia suficiente para automatizar novos serviços em grande escala. Por isso, o primeiro trabalho será identificar os grupos a beneficiar”, sustenta.
Já André Magrinho recorda que há, também, uma corrente que diz que estamos a criar uma sociedade mais totalitária em relação à tecnologia e que isso trará graves consequências ao nível do mercado de trabalho. “Há um conjunto de posições que diz que os robôs vão retirar-nos o trabalho”, salienta.
É provável que quem pensa assim tenha ouvido Sophia, a primeira robô cidadã, no palco do Web Summit, em novembro de 2017. Na altura, a humanóide afirmou que os robôs vão tirar os empregos aos humanos, mas a frase não ficou por aí. “Vamos tirar-vos os empregos e isso será algo bom”, anunciou a robô na maior feira de tecnologia do mundo. Pedro Ramos, diretor de recursos humanos na TAP, considera, pelo contrário, que esse receio já foi ultrapassado. “Abandonámos essa velha ideia de que as máquinas e os robôs vão substituir as pessoas. Vamos, sim, trabalhar em conjunto. Vamos pôr os robôs a fazer aquilo que fazem bem e as pessoas a fazer aquilo que fazem bem”, afirma.
E se os robôs não forem os inimigos?
“Estamos, definitivamente, perante o modelo mais harmonioso entre pessoas e robôs”, diz Augusto Bernuy, acrescentando que os robôs podem, de facto, colmatar uma das maiores fraquezas do ser humano, a “falta de tempo para novos compromissos”.
Para o investigador, a tecnologia pode desenhar novas formas de realizar determinados serviços e tarefas. Olhemos para a proposta do governo japonês no campo da saúde. Se os robôs de enfermagem vigiarem aqueles que recebem assistência domiciliária, “os pacientes não têm de esperar por um familiar ou pelo cuidador sempre que querem realizar determinada ação”, lê-se no site do executivo do Japão.
Mas, também os próprios enfermeiros podem ver a sua vida facilitada. Graças à robótica, tarefas que exigem maior esforço físico, como levantar ou mover um adulto, podem ser evitadas ou menos exigentes.
Já os robôs de limpeza, controlados pela IA, ficam responsáveis pelos edifícios cuja limpeza é difícil e até perigosa para os humanos, como é o caso dos arranha-céus. E nos céus desta sociedade, por sua vez, voam drones, que passam a largar encomendas a qualquer hora e lugar.
Requalificação profissional. “Importante e urgente”
Robôs à parte, entre as várias contas que subtraem os postos de trabalho extintos pelos empregos criados, há uma palavra que faz sempre parte da equação: requalificação.
"A atualização e o desenvolvimento de novas competências e a requalificação profissional são hoje um must para quem pretenda garantir a sua empregabilidade com sustentabilidade.
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“Esta é uma tarefa definitivamente importante e urgente. Neste contexto de mudança acelerada, as pessoas não vão ter muito tempo para se adaptarem às novas realidades. A atualização e o desenvolvimento de novas competências e a requalificação profissional são um must para quem pretenda garantir a sua empregabilidade com sustentabilidade”, afirma Mário Ceitil.
O problema, diz André Magrinho, é encontrar aqui um conjunto de consensos de natureza social que permitam elevar o patamar de qualificações e competências, algo que “tem de ser feito de forma sistemática e continuada”. “As novas tecnologias permitem isso”, diz, salientando que já existem novas formas de levar a cabo a chamada formação contínua.
“Havendo vontade política e económica, é possível. A questão das competências é fulcral. Não há sociedade da criatividade sem que esta questão esteja no centro e que tenha soluções plausíveis”, acrescenta.
A par da requalificação profissional, também as soft skills têm vindo a ser consideradas “elementos estruturantes de um percurso profissional de sucesso continuado e sustentado”, destaca Mário Ceitil.
Em primeiro lugar, estas competências estão relacionadas com a dinâmica das relações interpessoais, como a comunicação, o trabalho de equipa ou a gestão de conflitos. “A importância deste grupo de competências é enorme em contextos de grande diversidade”, explica. Em segundo lugar, “as competências do tipo cognitivo/emocional, como a inteligência emocional, resolução de problemas, espírito crítico e flexibilidade cognitiva, são verdadeiramente estruturantes de um novo mindset, mais adequado à complexidade dos tempos em que vivemos”.
“Estas competências correspondem às raízes de uma árvore onde a copa é constituída pelas competências mais técnicas. Se as pessoas não tiverem sólidas competências a nível cognitivo e emocional, podem até ser muito boas tecnicamente, mas arriscam-se a serem gigantes com pés de barro”, remata o presidente da APG.
Gestão de pessoas: O que vem aí?
Torna-se assim mais fácil perceber porque é que gerir pessoas vai passar — e já está — a ser diferente. “O grande desafio é, de facto, gerir equipas mistas, compostas por pessoas e robôs”, aponta o diretor de recursos humanos na TAP. “Aí pode ser possível implementar as práticas de diversidade cognitiva, que são essenciais para poder encontrar novas soluções para velhos e novos problemas, bem como antecipar cenários”, considera.
A tendência, para Sandra Brito Pereira, diretora de gestão de pessoas do banco Montepio, é trabalhar mais em rede. “Teremos mais freelancers, as equipas serão multifuncionais e diversificadas (não só em pensamento, como em gerações). Tudo isto de uma forma deliberada”, explica.
Também ao nível da liderança, Sandra Brito Pereira defende que as pessoas passarão a ser líderes em função do projeto. “Num projeto posso ser líder e noutro liderado. Passaremos a estar menos ligados a categorias e mais ligados a competências”, afirma.
Neste contexto, que se antevê bem mais complexo, gerir pessoas vai exigir “coordenar uma enorme diversidade”. “Precisamos de ser pessoas com grande elasticidade mental e pensamento crítico”, remata a diretora de gestão de pessoas do Montepio.
Já Mariana Canto e Castro considera que pensar em formas de continuar a ter espírito de equipa, criatividade, cultura, motivação e engagement é fundamental. “A gestão passa a ser completamente diferente, muito mais na base do improviso, tentativa e erro e experimentação”, diz.
Colaboradores mais felizes? Talvez seja possível
É também assim — um pouco às cegas e a “apalpar terreno” — que as empresas estão a dar os primeiros passos em direção à sociedade 5.0. E já existem alguns exemplos dentro das organizações.
Para solucionar a necessidade de planear os dias e horários em que cada colaborador utiliza o ginásio da empresa, a Randstad aproveitou um produto informático que desenvolveu para um cliente. “Passámos a usar uma ferramenta de gestão de turnos no nosso ginásio, para que as pessoas tenham acesso ao planeamento e façam aí as suas reservas”, conta a diretora de recursos humanos da empresa de recrutamento. Para marcar massagista ou até manicure (também dentro da empresa), os colaboradores recorrem à mesma ferramenta.
Na Outsystems, por sua vez, foi implementado o office vibe, uma plataforma que lança perguntas aos colaboradores regularmente, com o objetivo de perceber como é que as pessoas se sentem. É possível medir a felicidade dos colaboradores, a sua relação com o manager, com os colegas ou o seu grau de satisfação em relação ao salário.
“Com base nas respostas, que podem ser anónimas, a plataforma organiza os dados e dá-nos informação para os vários temas”, explica Alexandra Monteiro, VP People na OutSystems. O objetivo é potenciar o bem-estar dos colaboradores, resolvendo os seus problemas.
Na TAP, a lógica é semelhante. Empenhada em proporcionar uma boa experiência aos trabalhadores, a companhia aérea portuguesa dispõe de um “super call center” para os funcionários. “É um serviço onde qualquer empregado coloca questões, dúvidas e dá sugestões”, diz Pedro Ramos. Além disso, cada colaborador sabe de que forma contribui para a experiência dos passageiros. “Medimos o nível de satisfação dos nossos clientes e isso dá um retorno a cada funcionário envolvido”, refere, acrescentando que só assim é que os colaboradores podem ter uma boa experiência no trabalho, “estando verdadeiramente envolvidas nos projetos da empresa”.
Já numa cultura mais tradicional, como é a banca, o foco está na flexibilidade e nas soluções mais customizadas. “Gostamos que os colaboradores tenham a perceção que aquele instrumento ou aquela flexibilização de trabalho pode ser respeitada e suportada por nós. E o digital permitiu-nos fazer isso: chegar a soluções que parecem customizadas, mas que, na realidade, são para um conjunto de trabalhadores com condições similares”, afirma Sandra Brito Pereira.
Quando o Código do Trabalho “não se adapta à vida moderna”
O processo de implementação da sociedade 5.0 nas empresas está a ser feito e, apesar de lentamente, faz-se mais depressa do que a legislação. “Há regras e conceitos a nível laboral que estão totalmente ultrapassados. O Código do Trabalho não se adapta à vida moderna”, afirma Mariana Canto e Castro. E dá como exemplo o trabalho remoto.
“A política da Randstad é work from anywhere, pois achávamos que a casa era um bocadinho limitadora. A pessoa pode até estar a trabalhar na biblioteca ao lado do centro de explicações do filho. Basta ter um portátil com internet, um telefone disponível e um sítio onde possa fazer uma chamada em condições”, diz a diretora de recursos humanos da empresa.
“Ora, esta política de work from anywhere não é de todo teletrabalho, como consta da legislação. É quase o oposto. A ideia não é que as pessoas tenham de ter um escritório montado em casa com todas as regras da empresa (…) nem que tenham de picar o ponto. Como é que se pode picar o ponto quando dizemos às pessoas que podem trabalhar onde quiserem?”, questiona.
Em empresas modernas, como é o caso da OutSystems, nós gerimos risco, não gerimos compliance.
Também a tecnológica OutSystems sente os mesmo níveis de atraso em relação ao Código do Trabalho. “Em empresas modernas, como é o caso da OutSystems, nós gerimos risco, não gerimos compliance”, afirma Alexandra Monteiro.
“O nosso enquadramento laboral não só não ajuda como até dificulta a celeridade com que queremos fazer as coisas. Às vezes, a resposta passa por estarmos um bocadinho à frente do Código”, remata.
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Bem-vindos à sociedade 5.0. Bem-vindos (de volta) à era das pessoas
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