Espanha e Áustria nomearam ministros para o banco central. Ter ex-governantes com as rédeas da política monetária poderá comprometer a independência do BCE?
José Luis Escrivá não deixou o lugar de ministro arrefecer para assumir funções de governador do Banco de Espanha, numa mudança feita em poucas horas que mereceu muitas críticas da oposição do Governo de Pedro Sánchez. Na Áustria, o ministro da Economia, Martin Kocher, irá ficar com o lugar de governador do banco central quando terminar o mandato de Robert Holzmann no dia 1 de setembro do próximo ano.
Escrivá e Kocher vão ficar sentados à mesma mesa do conselho de governadores do Banco Central Europeu (BCE) que oito vezes por ano decide o rumo das taxas de juro na Zona Euro e onde já se sentam outros quatro ex-ministros: Mário Centeno (Portugal), Olli Rehn (Finlândia), Peter Kažimír (Eslováquia) e Edward Scicluna (Malta).
Ou melhor, seis, se incluirmos o vice-presidente da comissão executiva, Luis de Guindos, antigo ministro espanhol da Economia, e também a presidente Christine Lagarde, que foi ministra em várias ocasiões nos anos 2000.
Os últimos anos testaram ao limite a capacidade de os bancos centrais em todo o mundo de resistirem à pressão política, incluindo BCE. Por conta da escalada dos preços, as autoridades monetárias tiveram de agravar as taxas de juro, mas tal decisão implicou tirar dinheiro dos bolsos das famílias e das empresas. Sob forte contestação popular, os governos começaram a questionar se os bancos centrais não estariam a ir longe demais no remédio, que em vez de curar o problema ia matar o paciente.
Nos EUA, de resto, a Reserva Federal entrou na campanha: do lado republicano questiona-se o timing da descida dos juros que Jerome Powell já preanunciou por poder influenciar a campanha democrata, que por sua vez criticou a demora da Fed em baixar a pressão sobre a economia à beira da recessão.
Independência não está em causa, mas…
Por cá, levanta-se outra questão: com a passagem de ex-ministros para tomar as rédeas da política monetária estará a independência do BCE ameaçada?
Questionada sobre a nomeação de José Luis Escrivá, que já participou na reunião da última quinta-feira do Conselho de Governadores que decidiu um novo corte nos juros, a presidente Christine Lagarde disse que o espanhol foi bem recebido e que espera dele um contributo que não se cinja à realidade espanhola.
“Escrivá juntou-se ao círculo dos governadores, demos-lhe as boas-vindas, deu contributos úteis e esperamos que continue a dar as suas visões, que poderão ser inspiradas em parte pela situação de Espanha, mas que também tenha uma dimensão europeia como têm os outros governadores que se sentam na mesa do conselho”, disse a francesa. “Espero que seja uma jornada produtiva e agradável para ele e para o conselho”, frisou.
“Não creio que seja suficientemente significativo para globalmente pôr em causa a independência do BCE”, afirma Emanuel Leão, professor de Economia Monetária e Financeira do ISCTE.
“O BCE foi construído de forma a ser completamente independente do poder político. Estas nomeações mancham um pouco esse princípio”, assume ainda assim.
O BCE foi construído de forma a ser completamente independente do poder político. Estas nomeações mancham um pouco esse princípio.
Para João Duque, dean e professor de Finanças do ISEG, “estes movimentos não permitem por si só evocar um efetivo efeito de captura da independência dos bancos centrais, mas permitem-nos invocar um nexo de causalidade e de possibilidade”.
Estudos académicos mostram que há uma relação negativa entre independência do banco central e a inflação nos países industrializados: quanto menos independente, maior a inflação (e vice-versa).
“Todos vemos os desastres quando há a submissão da política monetária à gestão política do governo”, refere João Duque, que dá um exemplo concreto: “No caso da Turquia, onde o banco central se submete aos desejos do governo, a taxa de inflação foi de 53,9% em 2023, depois de ter sido de 72,3% em 2022”.
"Todos vemos os desastres quando há a submissão da política monetária à gestão política do governo. No caso da Turquia, onde o banco central se submete aos desejos do governo, a taxa de inflação foi de 53,9% em 2023, depois de ter sido de 72,3% em 2022.”
É frequente, mas…
Nomear ex-ministros para tomarem as rédeas da política monetária não é um fenómeno “incomum” e até é “frequente”, consideram Emanuel Leão e João Duque.
“As competências necessárias para os dois tipos de cargos são muitas vezes semelhantes”, observa o docente do ISCTE.
Por outro lado, “há sempre um certo crivo político nas nomeações”, acrescenta o professor do ISEG. “Os ocupantes dos lugares de governador não são eleitos e os parlamentos chegam a avaliar os seus perfis. É isso que lhe dá força e que dá força à sua liderança de um banco emissor e ao seu poder no controlo da inflação”, explica.
Mas há “várias circunstâncias que não são propícias à garantia de tal independência, embora ela possa ser mantida”, diz ainda João Duque. “Passagens diretas dos governos para esses cargos são um exemplo. Outro será a participação ativa na vida partidária, mesmo quando o partido do banqueiro nomeado não pertence ao partido que governa”, aponta.
Período de nojo?
Há quatro anos, Mário Centeno assumiu o cargo de governador do Banco de Portugal (20 de julho de 2020) poucos meses após ter abandonado as funções de ministro das Finanças. Na altura, a mudança do Governo para o supervisor foi criticada pelo PSD, que está agora no governo e poderá complicar um segundo mandato de Centeno – que já manifestou o desejo de continuar, embora o seu nome seja apontado com insistência para se candidatar às eleições presidenciais de 2026.
O mesmo se passou com os governadores eslovacos (2019) e maltês (2020): Peter Kažimír e Edward Scicluna passaram dos respetivos governos para o banco central numa questão de dois meses.
No caso espanhol, a mudança José Luis Escrivá de ministro da Transformação Digital e Administração Pública para o Banco de Espanha fez-se “da manhã para a tarde”, segundo a oposição.
João Duque sugere impor um período de nojo para evitar qualquer risco, um tema discutido por cá quando Centeno transitou para o Banco de Portugal: “Quando se impõe um vacatio de três anos aos administradores dos bancos para poderem exercer funções nos órgãos de gestão dos bancos centrais, não é legítimo questionar que tudo seja admitido quando se trata de passagens entre governos e bancos centrais?”
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Ex-ministros nos bancos centrais testam independência do BCE
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