Neutralidade Carbónica 2050. Burocracia atrasará um futuro sustentável?

Portugal tem como meta alcançar a neutralidade carbónica até 2050, mas a burocracia e o licenciamento ainda representam desafios. Advogados defendem a simplificação do quadro regulatório.

A neutralidade carbónica até 2050 é uma das metas assumidas por Portugal no combate às alterações climáticas. Ou seja, o país quer tornar nulo o balanço entre as emissões e as remoções de dióxido de carbono e outros gases com efeito de estufa (GEE) da atmosfera até essa data.

Para tal, tem vindo a adotar várias políticas para reduzir as emissões, como o Plano Nacional Energia e Clima 2030 (PNEC 2030), em que antecipou a neutralidade para 2045, e o Roteiro para a Neutralidade Carbónica 2050.

No entanto, apesar de todos os avanços e de registar bons resultados, ainda existem obstáculos, como o excesso de burocracia no licenciamento de projetos renováveis, a morosidade e a falta de incentivos fiscais para empresas sustentáveis.

O atual quadro jurídico é regulado a nível europeu, tendo sido dados importantes passos nessa vertente ao longo dos anos. Ainda assim, há desafios na sua implementação. Segundo a sócia da Dower, Ana Filipa Urbano, existem instrumentos, mas a diversidade de diplomas e regras implica dificuldades na prática de implementação e de fiscalização das medidas.

“Por exemplo, para além da Lei de Bases do Clima, em 2024 foi ainda aprovada a revisão ao PNEC 2030. A dificuldade decorre da articulação das regras em diversos setores: resíduos, águas, transportes, construção”, revela a advogada, sublinhando que a revisão dos diplomas já existentes seria benéfica para a “clarificação dos destinatários das medidas”.

Conscientes de que o atual quadro jurídico é apenas o “ponto de partida” para atingir o objetivo, o sócio Manuel Andrade Neves e a associada Filipa Calheiros Ferraz, da Abreu Advogados, consideram que a neutralidade carbónica exige um esforço conjunto e consciente de todos. “Será necessário implementar as medidas constantes da Lei de Bases do Clima que ainda não foram implementadas pelo Estado, como por exemplo, o Conselho para a Ação Climática”, alertam.

Os advogados apontam ainda a necessidade de adotar medidas de financiamento público de projetos empresariais para a transição climática. “A colaboração entre o setor público e privado em projetos e atividades que contribuam diretamente para atingir a neutralidade carbónica será determinante”, defendem.

Já no que toca às infraestruturas e à inovação tecnológica, sublinham que devem ser feitos investimentos no desenvolvimento da capacidade da rede, na modernização das redes de transporte e de distribuição de eletricidade, em novas tecnologias e métodos de produção neutros em carbono e no armazenamento por bombagem de energia. “Paralelamente, a aposta na produção de energias renováveis e na mobilidade verde deverá ser reforçada”, notam os advogados da Abreu.

Ainda assim, Paulo Câmara e Isabel Guimarães Salgado, sócio e associada da Sérvulo, respetivamente, acreditam que o atual quadro jurídico do setor tem permitido uma trajetória “muito positiva” na incorporação de energias renováveis no Sistema Elétrico Nacional. Mas admitem: há ainda um “longo caminho” a percorrer no sentido da simplificação dos procedimentos, “que ainda não funcionam ao ritmo dos projetos e do investimento em renováveis – o que será fundamental para se atingir os compromissos de Portugal no âmbito do PNEC 2030”.

Quadro regulatório disperso e desarticulado e a complexidade do regime do licenciamento das linhas elétricas são algumas das lacunas legislativas apontadas pelos advogados à Advocatus.

“Uma das principais lacunas que encontramos na legislação está relacionada com a dispersão e complexidade do regime do licenciamento das linhas elétricas, o que assume natural relevância dada a necessidade de alargar a rede elétrica para a ligação de novos projetos renováveis”, referem os advogados da Sérvulo, que apontam ainda a necessidade de concluir a transposição da diretiva europeia do reporte de sustentabilidade (Diretiva CSRD).

Por outro lado, Manuel Andrade Neves e Filipa Calheiros Ferraz defendem que é preciso transformar a legislação climática para a concretização prática das metas que se propõe atingir. “As medidas e planos previstos na Lei de Bases do Clima ainda não foram implementados pelo Estado Português apesar de já ter passado o prazo legalmente previsto para a sua implementação”, sublinham. Assim, consideram que a legislação deve procurar reduzir a complexidade e morosidade associada a alguns processos de licenciamento e à instalação de atividades, simplificando a sua tramitação de forma a acelerar o processo decisório.

Mas será o licenciamento de projetos de energia renovável um obstáculo? Os advogados consideram que ainda é um problema, enfrentando diversos entraves, como a complexidade burocrática e a morosidade.

“Os procedimentos administrativos ainda têm alguns trâmites demorados, mas existem formas de promover a celeridade procedimental. As entidades que pretendem investir devem procurar este apoio técnico especializado para conseguirem promover o investimento de forma mais ágil”, revela Ana Filipa Urbano.

Apesar de salientarem os recentes esforços para simplificar e integrar o processo com outros procedimentos, os advogados da Abreu garantem que os obstáculos “permanecem significativos”, depositando-se grande esperança na transposição da RED III (Diretiva EU/2023/2413 ou Diretiva das Energias Renováveis) cujo prazo já terminou em julho passado.

“A Administração Pública tem de ser dotada de recursos adicionais para poder analisar e decidir de forma mais célere os inúmeros pedidos de licenciamento que lhe cumpre apreciar. As entidades competentes veem-se a braços com inúmeros processos. O investimento na formação de recursos humanos especializados contribuiria de forma considerável para acelerar a tramitação dos processos de licenciamento”, acrescentam Manuel Andrade Neves e Filipa Calheiros Ferraz.

O sócio e associada da Abreu Advogados avançam que uma boa solução passaria pela criação de uma plataforma eletrónica para a tramitação digital dos processos, uma vez que facilitaria a interação dos promotores com as entidades competentes e contribuiria para uma decisão mais célere por parte das várias entidades competentes.

Os incentivos empresariais

As empresas são um ponto-chave no rumo à neutralidade carbónica e vários são os programas comunitários com incentivos, como o Plano de Recuperação e Resiliência (PRR) e o Portugal 2030. Ainda assim, alguns advogados consideram que os incentivos de investimento em projetos sustentáveis poderiam ser reforçados.

“Os incentivos existentes na legislação portuguesa estão longe de ser suficientes para impulsionar a descarbonização da economia de forma eficaz. É necessário trazer as empresas para o caminho da neutralidade climática”, defendem Manuel Andrade Neves e Filipa Calheiros Ferraz. Os advogados acreditam que o Estado precisa de “redobrar esforços”, criando incentivos fiscais e financeiros “mais abrangentes” e “robustos” para haver um verdadeiro progresso, sempre dentro dos limites permitidos pela Comissão Europeia ou negociando com esta uma revisão do Regulamento Geral de Isenção por Categoria, Regulamento de 2023.

Por outro lado, Paulo Câmara e Isabel Guimarães Salgado consideram que o “compromisso claro” do Governo com o setor da energia e com a sua descarbonização é um grande incentivo para os investidores. Isto porque se manifesta desde logo na “alocação de um volume significativo de verbas europeias ao apoio aos investimentos em renováveis”.

“Mostra-se prioritário que haja uma abolição rigorosa e sistemática dos casos de gold-plating, isto é, de adições domésticas ao quadro normativo europeu”, garantem.

De forma a acelerar a transição energética, os advogados defendem ser necessário assim reforçar e consolidar as medidas já existentes, bem como proceder a reformas fiscais “bem estruturadas”.

“A dedução de IRC para empresas que invistam em energias renováveis, redução de IVA em equipamentos mais sustentáveis, redução de IMI para edifícios com usos de materiais 100% sustentáveis. Sabemos que o nosso Estatuto dos Benefícios Fiscais já tem algumas medidas, mas as mesmas são pouco significativas no dia-a-dia das empresas, o que afasta a sua aplicação. Há empresas que nem perdem tempo a ponderar investimento para obter parcos benefícios”, aponta Ana Filipa Urbano.

Segundo Manuel Andrade Neves e Filipa Calheiros Ferraz, Portugal pode dar um “empurrão” decisivo à transição energética com reformas fiscais bem estruturadas. “A criação de uma taxa ainda mais reduzida ou isenção total de IVA para equipamentos de produção de energia renovável, como painéis solares, térmicos e fotovoltaicos, é uma possibilidade que tem sido sempre adiada. A ampliação dos incentivos fiscais existentes para a compra de veículos elétricos e híbridos poderia acelerar ainda mais a transição energética”, exemplificam.

Já para os advogados da Sérvulo, a aposta nos incentivos à descarbonização dos transportes deve continuar e é necessário reforçar o enfoque nos incentivos à incorporação de fontes de energia renovável e à inovação de novos produtos e processos produtivos de baixo teor de carbono “por forma a melhorar o desempenho energético e ambiental das empresas”.

“Por outro lado, benefícios fiscais introduzidos aquando da reforma da fiscalidade ambiental, como os benefícios fiscais relativos a imóveis destinados à produção de energia a partir de fontes renováveis, têm sido interpretados pela Administração Tributária como tendo tido aplicação apenas nos anos de 2015 a 2019 pelo que era importante voltar a promover estas medidas ou introduzir novos benefícios de idêntica natureza”, acrescentam Paulo Câmara e Isabel Guimarães Salgado.

Advogados podem ter papel determinante

O caminho para alcançar a neutralidade carbónica enfrenta desafios jurídicos, económicos e ambientais e os escritórios de advogados, especialmente aqueles que trabalham nas áreas do ambiente, energia e infraestruturas, podem ter um papel decisivo em diversas fases.

“Primeiro, na identificação das obrigações e definição de estratégias de implementação. Num segundo momento, apoio para identificar incentivos a algo que é inevitável, que passa pela mudança de cultura das organizações para concretizar as metas do Pacto Ecológico Europeu (apoio nas candidaturas a programas de incentivos, apoio na parte fiscal, definição de políticas internas para implementação de ESG)”, aponta a sócia da Dower.

Também Paulo Câmara e Isabel Guimarães Salgado explicam que o papel das firmas desdobra-se em dois. Por um lado, devem convergir para a neutralidade carbónica e deste modo cumprir a sua parte na responsabilidade coletiva perante a comunidade e as gerações futuras. De outro lado, devem estar tecnicamente “apetrechadas” para assessorar as empresas nos processos de reconversão dos negócios para modelos sustentáveis, no plano ambiental, social e de governação.

“Nomeadamente, têm um papel decisivo na assessoria à estruturação e execução de projetos renováveis, não só no acompanhamento dos clientes ao longo do intrincado conjunto de procedimentos junto de entidades licenciadoras, ambientais, e municípios, e na comunicação com essas mesmas entidades, como também na gestão da frustração dos clientes face aos obstáculos administrativos que vamos encontrando e à inércia que, tantas vezes, se observa por parte das autoridades envolvidas”, sublinham.

Assine o ECO Premium

No momento em que a informação é mais importante do que nunca, apoie o jornalismo independente e rigoroso.

De que forma? Assine o ECO Premium e tenha acesso a notícias exclusivas, à opinião que conta, às reportagens e especiais que mostram o outro lado da história.

Esta assinatura é uma forma de apoiar o ECO e os seus jornalistas. A nossa contrapartida é o jornalismo independente, rigoroso e credível.

Comentários ({{ total }})

Neutralidade Carbónica 2050. Burocracia atrasará um futuro sustentável?

Respostas a {{ screenParentAuthor }} ({{ totalReplies }})

{{ noCommentsLabel }}

Ainda ninguém comentou este artigo.

Promova a discussão dando a sua opinião