Um modelo schumpeteriano pode gerar 3% de crescimento, mas não com os fundamentos atuais da economia portuguesa, escreve neste ensaio o economista Óscar Afonso.
- Lisboa acolheu recentemente o Portugal Capital Markets Day da Euronext e a Web Summit, eventos que promovem uma visão otimista sobre o crescimento económico de Portugal, prevendo-se um aumento superior a 3% ao ano, embora essa expectativa careça de fundamentos sólidos.
- O crescimento económico de Portugal tem sido impulsionado por fatores temporários, como o Programa de Recuperação e Resiliência e o turismo, mas a falta de reformas estruturais e a dependência de setores de baixo valor acrescentado limitam a sustentabilidade desse crescimento a longo prazo.
- Sem reformas significativas e um aumento na qualificação da força de trabalho, Portugal pode enfrentar um crescimento estagnado, com projeções a indicar um retorno a taxas de crescimento de apenas 1% ao ano, colocando o país na cauda da União Europeia em termos de nível de vida.
Na última semana, Lisboa foi palco de dois grandes eventos internacionais – o Portugal Capital Markets Day da Euronext Lisbon e a Web Summit – que, apesar de muito distintos, convergiram numa mesma narrativa: A ideia de que Portugal está prestes a crescer acima de 3% ao ano e a transformar-se num dos novos “campeões” da economia europeia.
Trata-se de uma mensagem sedutora e mediaticamente conveniente, repetida tanto por responsáveis políticos como por intervenientes alinhados. Mas, infelizmente, não tem sustentação nos fundamentos atuais da economia portuguesa, dada a ausência de reformas estruturais dignas desse nome, como já tenho denunciado em crónicas passadas, e o contexto externo adverso. Se é possível? Em teoria, sim. Se é provável? No contexto atual, definitivamente não. E o facto de essa convicção assentar num estudo da Católica Lisbon Business & Economics que – tanto quanto sei – não é público e em discursos onde o otimismo suplanta largamente a análise, deveria deixar-nos prudentes.
Nesta crónica baseio-me, por isso, na informação disponível nos media – em particular na nota oficial da Agência para o Investimento e Comércio Externo de Portugal (AICEP) –, que revela pistas sobre as conclusões do estudo e o valor de 3% ao ano referido também pelo ministro das Finanças na Web Summit.
O enquadramento otimista dos eventos e o irrealismo de crescer acima de 3% ao ano no atual contexto
Se é compreensível o discurso otimista sobre a economia portuguesa do ministro das Finanças na Web Summit e dos responsáveis da Euronext Lisbon no evento que promoveram, dado que o objetivo é captar investimento estrangeiro, alerto o cidadão comum que, com as políticas atuais, estamos longe de atingir um crescimento económico de 3% ao ano nos próximos anos.
Passados os efeitos do Programa de Recuperação e Resiliência (PRR) e do surto de turismo pós-pandemia, é expectável que Portugal regresse à tendência de crescimento de 1% ao ano desde o início do milénio, o terceiro valor mais baixo da União Europeia (UE), que cresceu a um ritmo de 1,5% ao ano.
O Ageing Report de 2024 da Comissão Europeia, o documento oficial com projeções de mais longo prazo para os países da UE e que suporta as análises dos sistemas de pensões, mostra uma descida abrupta do crescimento do PIB potencial de Portugal após 2026, para um valor médio anual de cerca de 1% ao ano na década até 2033, inferior ao da UE. Isto traduz o regresso às tendências já observadas neste milénio, após alguns anos de crescimento apenas momentaneamente acima da média da UE — impulsionado, como referido, pelo PRR, pelo surto turístico (agora em abrandamento) e por uma entrada descontrolada de imigrantes associada ao anterior Regime de Manifestação de Interesse, como explico mais abaixo.
Acresce que a média da UE não é um bom referencial, por estar fortemente condicionada pelo peso das grandes economias europeias, há muito estagnadas, mas com níveis de vida ainda elevados e a que aspiramos convergir mais rapidamente, como o têm feito as economias de leste, embora penalizadas nos anos mais recentes pela guerra na Ucrânia. Pelo contrário, Portugal tem sido beneficiado, em termos relativos, pela imagem de país seguro (além de bonito), longe do conflito, para atrair mais turistas e também alguns investimentos nesta fase mais conturbada, ajudando também a explicar o crescimento acima da UE. Quando a guerra terminar, estes fatores relativamente favoráveis a Portugal desaparecerão.
Um estudo da Faculdade de Economia do Porto (FEP) mostra que Portugal precisa de crescer, no mínimo, 1,4 pontos percentuais acima da UE até 2033 para entrar na metade de países com maior nível de vida da UE nesse ano. Tal significa crescer na casa dos 3% ao ano se a UE mantiver um ritmo anual de 1,5%, mas admitindo por hipótese que, no atual contexto adverso, o valor baixa para cerca de 1% nesse horizonte –a Alemanha como a França enfrentam problemas económicos e orçamentais, para o que contribuem a guerra na Ucrânia, a feroz concorrência da China e o efeito das tarifas de Trump –, então Portugal apenas precisaria de crescer no mínimo 2,4% ao ano para atingir o objetivo de nível de vida.
Um estudo da Faculdade de Economia do Porto (FEP) mostra que Portugal precisa de crescer, no mínimo, 1,4 pontos percentuais acima da UE até 2033 para entrar na metade de países com maior nível de vida da UE nesse ano. Tal significa crescer na casa dos 3% ao ano se a UE mantiver um ritmo anual de 1,5%, mas admitindo por hipótese que, no atual contexto adverso, o valor baixa para cerca de 1% nesse horizonte –a Alemanha como a França enfrentam problemas económicos e orçamentais, para o que contribuem a guerra na Ucrânia, a feroz concorrência da China e o efeito das tarifas de Trump –, então Portugal apenas precisaria de crescer no mínimo 2,4% ao ano para atingir o objetivo de nível de vida.
Em qualquer dos casos, tal só será possível mediante reformas estruturais, pois na ausência das mesmas, o melhor que podemos esperar é o crescimento potencial de 1% ao ano projetado no Ageing Report da Comissão Europeia, que colocará Portugal na cauda da UE em nível de vida em 2033, como refere o estudo da FEP. Essa dinâmica pressupõe ainda um fluxo regular de imigração superior ao registado desde o início do milénio, estimado em 138 mil ao ano se a economia crescer 3% ao ano, como referido no estudo original, mas que baixa para cerca de 80 mil se o ritmo for apenas 2,4% ao ano (cenário adverso referido para a UE) e já descontando a revisão em alta dos estrangeiros nas estatísticas da AIMA (Agência para a Integração Migrações e Asilo).
Olhando para o período 2017-2024, a desconexão entre fluxos migratórios e a atividade económica associada ao RMI é clara à luz do estudo da FEP: o fluxo anual médio de imigrantes situou-se em 168 mil nos números da AIMA e o crescimento económico foi de apenas 2,1% ao ano, quando esse volume de imigração apontaria para um ritmo claramente acima de 3%. Esta análise sugere, assim, que uma boa parte dos imigrantes entrados nesse período estará (ou esteve) na economia paralela, contribuindo apenas marginalmente para o PIB – sobretudo por via do seu consumo, que é registado nas contas nacionais –, mas ajudando também a explicar o crescimento económico de Portugal acima da UE.
Com o aperto das regras da imigração, que era necessário regular – mas, nalguns aspetos, as novas regras parecem ter ido longe demais, como explico mais abaixo –, é expectável que esse efeito da imigração desregulada no crescimento económico também desapareça.
A notícia da AICEP: O estudo otimista da Católica alinhado com o discurso do ministro das Finanças
Ora vejamos então, com base na notícia da AICEP, quais as conclusões do estudo da Católica e a relação com o que disse o ministro das Finanças na Web Summit.
- Portugal pode crescer mais de 3% ao ano, segundo a Católica em estudo pedido pela Euronext e AEM. O futuro de Portugal que se pode perspetivar é ser um dos campeões da economia europeia, defendeu o Dean da Universidade Católica. “A nossa análise conclui que cada milhão de euros investidos em I&D em Portugal gera, em média, 8 postos de trabalho qualificados, através dos efeitos diretos e indiretos na economia”, disse Filipe Santos (…). Os resultados do relatório: Portugal as a Prime Investment Destination: Infrastructure & Innovation at the Core (…) põem Portugal como bem posicionado para ser um dos campeões da economia europeia.
- As principais conclusões são que Portugal está a consolidar-se como um dos destinos de investimento mais competitivos da Europa, sustentando o seu desempenho económico recente em transformações estruturais de longo prazo. O país alia estabilidade macroeconómica, capital humano altamente qualificado, infraestruturas energéticas e digitais avançadas e um ecossistema de inovação dinâmico, que em conjunto reforçam a sua atratividade para o investimento global.
- O investimento está a recuperar, apesar de ser ainda tímido. O ponto aqui é que nós, com o potencial de desenvolvimento do capital humano que temos por ser um país atrativo para pessoas e talento, este 1% de conhecimento pode aumentar e se tivermos um aumento do investimento em Portugal, conseguimos também aumentar a intensidade do investimento, o que pode levar a economia a crescer de forma consistente e consolidada, acima de 3% nos próximos anos, disse o Dean da Católica (…).
- O que vai de encontro ao que disse esta terça-feira o ministro de Estado e das Finanças, Joaquim Miranda Sarmento, que defendeu que o PIB português poderá crescer 3% ao ano se se reduzir a burocracia e Portugal continuar a atrair mão de obra.
- (…) O relatório foi desenvolvido (…) a convite da Euronext e AEM, inserido como uma das ações do Portugal Capital Markets Day 2025, e dá continuidade ao estudo publicado em 2024 sobre as tendências estruturais da economia portuguesa, aprofundando agora os fatores críticos que sustentam o seu posicionamento num contexto geopolítico em rápida transformação.
- (…) A análise demonstra que o forte desempenho económico registado entre 2022 e 2025 não é circunstancial, mas resultado de motores sustentáveis de crescimento, como o reforço do capital humano, a modernização das infraestruturas e a consolidação de um ecossistema de inovação com impacto económico e social duradouro.
- (…) Filipe Santos realçou que o Governo está numa política contracíclica de poupança e de excedentes orçamentais, e isso é quase o único na economia europeia. Em 26 países, talvez haja três que têm excedente orçamental, Portugal é um deles.
- Segundo o Dean da Católica, o que aconteceu é que Portugal se tornou, a partir de 2021, 2022, atrativo para capital e talento. Para o economista o fenómeno da imigração, (…) tanto a de baixa qualificação como a de elevada qualificação, permitiu reverter o peso do envelhecimento da população e a inércia grande da economia portuguesa. A população e a população ativa estavam a diminuir todos os anos, e isso puxa para baixo a economia.»
A notícia continua dentro deste registo muito otimista – diria irrealista –, mas o resto decorre, em grande medida, do que já assinalei acima.
Infelizmente, não posso concordar com esta visão cor-de-rosa da economia nacional por uma razão simples, o de que Portugal está fortemente especializado em atividades de baixo valor acrescentado e reduzida produtividade, com realce para o turismo, do qual o país está cada vez mais dependente.
Este setor tem um peso direto e indireto no PIB de cerca de 12% segundo o INE. Em 2023, explicou 46%, ou 1,4 pontos percentuais (p.p.), do crescimento real de 3,1% do PIB. Em 2024, o turismo começou a abrandar e contribuiu já apenas com 0,3 p.p. (16%) para o crescimento do PIB, que baixou para 2,1%, mostrando claramente que tem influenciado bastante o andamento da economia, além do PRR, e que ficamos sujeitos às fortes oscilações de procura do setor e limitados pela sua baixa produtividade.
O efeito do PRR e do turismo, a par da retoma pós-pandemia e da entrada descontrolada de imigrantes e os efeitos da guerra tornam o crescimento económico entre 2022 e 2025 fortemente dependente de fatores temporários, lamento dizê-lo, e não o ‘resultado de motores sustentáveis de crescimento, como o reforço do capital humano, a modernização das infraestruturas e a consolidação de um ecossistema de inovação com impacto económico e social duradouro’, como afirma o Dean da Católica.
Quanto aos excedentes orçamentais de Portugal nos últimos anos, como já evidenciei em crónicas anteriores, resultam da subexecução crónica do investimento público, insuficientemente compensada pelos fundos da UE – mesmo que canalizados primordialmente para o setor público, o que significa que não estão a apoiar tanto o setor privado como deveriam –, o efeito da inflação passada e o crescimento económico empolado pelos fatores temporários referidos. As dificuldades visíveis no exercício orçamental de 2026 são já o reflexo do desvanecimento de alguns desses fatores (inflação e turismo em particular): o governo projeta um saldo de 0,1% do PIB nesse ano, antes das alterações em sede de especialidade no Parlamento, enquanto as previsões de outono da Comissão Europeia, divulgadas esta segunda-feira, apontam já para o retorno a saldos deficitários (-0,3% em 2026 e -0,5% em 2027).
Nessas previsões, a Comissão aponta ainda para um crescimento económico de Portugal de 1,9% em 2025 e 2,2%, valores revistos ligeiramente em alta e já apenas marginalmente abaixo dos do governo (2,0% e 2,3%, respetivamente). Contudo, a projeção de 2,1% para 2027, ainda que mais otimista face às de outras entidades independentes (1,5% do FMII e 1,7% do Banco de Portugal, BdP, ambas de outubro), fica muito abaixo da do governo (2,9%), que terá visto no estudo da Católica uma forma de validar o seu otimismo.
Relativamente à atração de imigrantes, ela decorreu, em grande medida, do crescimento estimulado pelo turismo e pela construção (obras do PRR), mais o descontrolo gerado pelo RMI, que alimentou a economia paralela e pouco o PIB oficial, tendo em conta o estudo da FEP. O fim dos efeitos temporários do turismo e PRR e a política migratória mais restritiva deverão agora reduzir significativamente esse fluxo.
O que nos leva às declarações do ministro das Finanças, de que o PIB português poderá crescer 3% ao ano se se reduzir a burocracia e Portugal continuar a atrair mão-de-obra. Complemento a notícia da AICEP com as declarações exatas do ministro nesta parte: “precisamos de atrair pessoas para trabalhar em todos os setores e todo o tipo de habilidade. E precisamos de reduzir a burocracia”.
O efeito do PRR e do turismo, a par da retoma pós-pandemia e da entrada descontrolada de imigrantes e os efeitos da guerra tornam o crescimento económico entre 2022 e 2025 fortemente dependente de fatores temporários, lamento dizê-lo, e não o ‘resultado de motores sustentáveis de crescimento, como o reforço do capital humano, a modernização das infraestruturas e a consolidação de um ecossistema de inovação com impacto económico e social duradouro’, como afirma o Dean da Católica.
Em relação à imigração, convido, mais uma vez, o ministro das Finanças a confirmar na nova Lei de Estrangeiros que os vistos de trabalho ficaram limitados a trabalhadores estrangeiros capazes de trabalho “altamente qualificado”. A não ser que a Via Verde – que não parece ter a mesma limitação no que se refere às qualificações – comece a apresentar níveis de execução mais elevados, não se percebe como é que o governo conseguirá captar imigrantes suficientes para executar as obras públicas com que se comprometeu nos próximos anos, nomeadamente na habitação e transportes (aeroporto e ferrovia).
Portugal precisa de trabalhadores especializados nos diversos setores – com experiência e formação nas profissões necessárias, comportando maiores ou menores habilitações académicas –, pelo que a política de vistos do governo deveria ser articulada com as entidades representativas das empresas, que melhor conhecem as suas necessidades.
Acresce que ter um fluxo de imigração regulado pelas necessidades da economia é apenas uma condição necessária, não suficiente, para um maior crescimento, como demonstrou o estudo da FEP.
Por isso, lamento também dizer, mas mesmo que a política de imigração já estivesse devidamente regulada – além do problema dos vistos de trabalho, se a restrição das regras de naturalização for excessiva, também poderá trazer problemas de captação de imigrantes para a economia, nomeadamente os “altamente qualificados” –, não bastaria reduzir a burocracia para o país crescer acima de 3% ao ano, como afirmou o ministro das Finanças.
No âmbito da reforma do Estado, precisamos que a redução da burocracia, desejavelmente por via da digitalização e melhoria da gestão, seja acompanhada de uma descida substancial do peso da despesa corrente primária, para acomodar um maior peso do investimento público e uma baixa mais forte e sustentável da carga fiscal, com vista a estimular o investimento privado.
Seria importante, ao nível da despesa corrente, o governo apontar – como meta instrumental e demonstrativa do impacto da reforma do Estado – um rácio de entradas por cada saída de funcionários públicos (via aposentação) significativamente abaixo de 1, o que continua a não acontecer.
A realidade é que não vejo qualquer impacto orçamental relevante decorrente da reforma do Estado, apesar dos discursos efusivos do ministro com essa nova pasta.
O deslumbramento do ministro da Reforma do Estado na Web Summit
Devo dizer que também fiquei um pouco desiludido com a postura de “vendedor” (para ser simpático) com que o ministro Gonçalo Matias se apresentou na Web Summit – basta ver o vídeo que se tornou viral nas redes sociais para se perceber o estranho tom discursivo.
Em termos de conteúdo, a sua intervenção na Web Summit ficou marcada por um otimismo que roçou o irrealismo. Quando afirmou que Portugal “tem todas as condições certas para se tornar um líder mundial em Inteligência Artificial” (IA), o ministro ignorou factos estruturais bem conhecidos: a escala reduzida da economia portuguesa, a crónica insuficiência de investimento em Investigação & Desenvolvimento (I&D) e a incapacidade do país para reter talento altamente qualificado num mercado globalizado onde os salários nacionais dificilmente competem. A declaração soou mais a entusiasmo provocado pela atmosfera da Web Summit do que a uma avaliação séria das condições reais do país.
O anúncio de que Portugal se posicionaria como um “centro europeu líder em gigafábricas de IA” reforçou essa perceção de desfasamento. A expressão — pouco clara tecnicamente — sugere uma capacidade industrial e tecnológica que Portugal não possui. Não existe, presentemente, massa crítica empresarial, energética ou financeira que sustente projetos dessa escala. A promessa de investimentos de “milhares de milhões” foi feita sem explicitação de compromissos concretos, prazos, parceiros ou modelos de financiamento, o que conferiu à intervenção um carácter mais performativo do que substantivo.
Outro momento revelador do deslumbramento foi a descrição de Portugal como “hiper-hub global” devido aos cabos submarinos que chegam ao país. Embora a conectividade internacional seja, de facto, uma vantagem comparativa, o salto argumentativo — de infraestrutura de cabos para liderança mundial em IA — carece de ligação lógica. Cabos submarinos não criam, por si só, ecossistemas de investigação, nem substituem políticas públicas de longo prazo, investimento privado robusto ou um sistema educativo capaz de formar especialistas ao ritmo exigido.
Finalmente, a apresentação do plano para formar “milhões de cidadãos em competências digitais até 2030” reforçou a impressão de que o discurso privilegiou números grandiosos em detrimento de um diagnóstico realista. Um programa dessa dimensão exigiria recursos, instituições e capacidade de execução que o Estado português raramente demonstrou possuir em iniciativas de larga escala.
No conjunto, a intervenção do ministro transmitiu entusiasmo — legítimo num palco como a Web Summit —, mas também um desfasamento claro entre ambição discursiva e realidade. O deslumbramento tornou-se visível precisamente porque as promessas ultrapassam em muito o que Portugal, no seu estado atual, consegue entregar em matéria de inovação tecnológica e liderança global em IA.
Crescimento económico de 3% ou mais induzido pela inovação parece pouco credível no cenário atual
A notícia da AICEP sobre o estudo da Católica e outras notícias apontam para um crescimento do PIB potencial acima de 3% ao ano nos próximos anos, sustentado em infraestruturas e inovação. Como referi, o estudo não é público, tanto quanto eu saiba, e por isso desconheço o modelo e os pressupostos do mesmo, mas sendo investigador nesta área, posso fazer uma análise contextual para demonstrar o grau de otimismo inerente.
Qualquer modelo de crescimento económico que eu tenha publicado em revistas internacionais — modelos validados por pares, inspirados na tradição schumpeteriana e na linha teórica desenvolvida por Aghion, Howitt e Acemoglu, todos distinguidos com o Prémio Nobel da Economia — pode, naturalmente, ser calibrado para gerar taxas de crescimento anual de 3% ou mais. Por exemplo, o meu trabalho com o Professor Tiago Sequeira, publicado no Journal of Money, Credit and Banking (Afonso & Sequeira, 2023), “The Effect of Inflation on Wage Inequality: A North-South Monetary Model of Endogenous Growth with International Trade”, produz taxas de crescimento elevadas sempre que se assumem parâmetros estruturais muito favoráveis. Mas é precisamente aqui que reside o ponto essencial: para obter 3% de crescimento na situação atual da economia portuguesa, seria necessário assumir pressupostos completamente irrealistas. E o próprio modelo deixa isto bastante claro.
Para que Portugal crescesse 3% ao ano, seria necessário que o país reunisse simultaneamente várias condições estruturais que hoje não estão presentes.
- Em primeiro lugar, seria indispensável que se investisse muito mais em inovação e tecnologia avançada, permitindo um verdadeiro salto para setores complexos e de maior valor acrescentado. Só assim se obteria um aumento sustentado da produtividade e uma deslocação estrutural da nossa especialização produtiva, algo que todos os indicadores internacionais mostram estar longe de acontecer.
- Em segundo lugar, o crescimento elevado exigiria menores restrições financeiras às empresas. O modelo mostra que taxas de crescimento elevadas surgem quando as empresas enfrentam menores custos financeiros, maior liquidez real, menos dependência de financiamento de curto prazo e fricções reduzidas ao investimento em I&D. A realidade portuguesa é o oposto disso: uma franja ainda significativa de empresas descapitalizadas, margens estreitas, baixa escala e forte dependência do sistema bancário.
- Em terceiro lugar, o país teria de beneficiar de uma integração comercial que gerasse ganhos tecnológicos reais. Embora Portugal seja uma economia aberta, exporta sobretudo bens de baixo valor acrescentado, importa praticamente toda a tecnologia que utiliza e mantém um défice tecnológico persistente. Assim, a integração comercial que o modelo exige como motor de crescimento tecnológico simplesmente não existe no nosso caso.
- Em quarto lugar, crescer 3% de forma sustentada exigiria uma abundância de trabalho altamente qualificado, capaz de criar, absorver e difundir tecnologia. Para tal, seria preciso um aumento significativo da massa crítica de trabalhadores e gestores qualificados — o que implicaria requalificar as gerações mais antigas e predominantes no ativo, que comparam muito mal no contexto da UE —, bem como salários competitivos capazes de atrair e reter talento, o que manifestamente não estamos a conseguir, como mostra a emigração dos nossos jovens qualificados, apenas parcialmente minorada pela entrada de imigrantes. Assim, o que se observa em Portugal é uma escassez de qualificações em vários setores, fuga de talento e salários insuficientes para manter trabalhadores altamente qualificados no país.
Mais grave ainda, todos os fatores que reduzem o crescimento no modelo estão presentes em Portugal. A especialização excessiva em setores de baixa qualificação mantém a economia presa a um regime estrutural de baixo crescimento. As restrições de liquidez e financiamento penalizam fortemente a inovação, sobretudo em economias “do Sul”, conceito que descreve quase linha por linha o caso português. Por fim, estendendo o modelo, até as assimetrias regionais agravam divergências, reduzem a produtividade relativa e diminuem o crescimento agregado, fenómeno observável nas crescentes disparidades entre interior e litoral e, dentro do próprio litoral, entre uma Lisboa centralista que concentra recursos, investimento e decisão, e um Porto e restante litoral claramente secundarizados.
Tudo isto leva à conclusão inevitável: Sim, um modelo schumpeteriano pode gerar 3% de crescimento — mas não com os fundamentos atuais da economia portuguesa. Para atingir esse patamar, seria necessário transformar profundamente as condições estruturais de inovação, qualificação, financiamento empresarial e especialização produtiva. A evidência disponível e a teoria económica moderna convergem neste ponto: o crescimento sustentado é consequência direta da capacidade de inovar, de financiar essa inovação e de possuir um tecido produtivo capaz de a absorver e multiplicar. Sem estas condições, qualquer surto de crescimento — como o que hoje resulta do PRR, do surto turístico e da entrada massiva de imigrantes — é apenas temporário e inevitavelmente transitório.
Portugal precisa de maior intensidade de investimento (leia-se peso do investimento no PIB) para crescer a um ritmo superior, como aliás tenho vindo a afirmar em diversas crónicas, nessa parte acompanho o que vem referido a respeito do estudo da Católica.
Só que tal não será conseguido apenas por via da elevação da despesa em inovação (e da I&D em particular, pois há ainda despesa não I&D) como sugerido na notícia da AICEP, uma vez que o seu peso é relativamente pequeno no conjunto do investimento mesmo nas economias mais avançadas. Interessa mais o que depois se consegue com esse investimento em inovação — e se alavanca e orienta o demais investimento —, e aí Portugal está mal colocado na transformação do conhecimento gerado em valor económico, o que contribui para um perfil de especialização com pouca intensidade em conhecimento e tecnologia, como se vê pelo baixo peso das exportações associadas. Esta é uma das principais razões por que Portugal é apenas um inovador moderado no European Innovation Scoreboard.
E é preciso ter ainda em conta o conjunto do país, não apenas o que se passa na capital. Segundo o Regional Innovation Scoreboard da Comissão Europeia, a região da Grande Lisboa é a única a nível nacional que está classificada na edição de 2025 como “inovador forte”, sendo as demais regiões “inovadores moderados” ou, em dois casos (Alentejo e Região Autónoma dos Açores), apenas “inovadores emergentes”.
Conclusão
Em suma, tanto o marketing estratégico do Portugal Capital Markets Day como o deslumbramento político exibido na Web Summit revelam uma profunda assimetria entre o discurso e a realidade económica do país. Não falta, por isso, ambição nem visões sobre inovação, talento ou investimento – nisso até houve uma evolução positiva face aos anteriores governos socialistas.
O que falta são políticas e reformas consistentes com essa ambição, que transformem boas intenções em resultados tangíveis e sustentáveis. Enquanto Portugal permanecer preso a uma especialização produtiva de baixo valor acrescentado, dependente de ciclos temporários como o turismo ou o PRR, e enquanto persistirem constrangimentos conhecidos há décadas – baixa produtividade, financiamento e investimento (privado e público) insuficientes, despesa pública corrente excessiva, fuga de talento e incapacidade de execução –, qualquer promessa de crescimento sustentado na ordem dos 3% ao ano não passará de wishful thinking, como dizem os anglo-saxónicos, ou a famosa ‘fezada’ à portuguesa.
O país pode, naturalmente, ambicionar mais – deve fazê-lo. Um estudo da FEP mostra que crescer 1,4 pontos percentuais acima da UE, mediante reformas – que terão de ser adequadas ao atual contexto –, nos permitirá entrar na metade de países europeus com maior nível de vida em 2033. Se a UE mantiver a tendência de 1,5% ao ano, Portugal precisará de crescer na casa dos 3% ao ano para atingir esse objetivo, mas admitindo que o ritmo da economia europeia baixa mais realisticamente para perto de 1% ao ano face ao atual contexto adverso, então Portugal apenas precisaria de crescer, pelo menos, 2,4% ao ano.
O caminho não passa, por isso, por narrativas exuberantes nem por projeções que ignoram a evidência empírica e o contexto externo. Passa por reformas estruturais sérias, por políticas públicas estáveis e por uma estratégia coerente que envolva todo o território, não apenas a capital. Passa, sobretudo, por reconhecer que o otimismo não consubstanciado – isto é, não suportado em políticas e reformas consistentes – rapidamente será descoberto como tal e não cria riqueza. É esse o engodo que procurei desmontar nesta crónica com informação factual e credível.
De resto, as recentes previsões de crescimento da Comissão Europeia para Portugal, embora revistas ligeiramente em alta, já se encarregaram de mostrar o desfasamento com a realidade: em 2027, já sem o efeito do PRR, o governo espera um crescimento de 2,9% e a Comissão de apenas 2,1%, mas há outras entidades independentes com previsões bem menores para esse ano (1,5%, diz o FMI, e 1,7% o BdP, nas projeções divulgadas em outubro).
Só com uma alteração profunda do modelo de desenvolvimento económico, acompanhada de uma política migratória articulada com as necessidades reais das empresas, de um Estado mais leve e eficiente, e de uma maior capacidade de transformar conhecimento em valor económico, poderá Portugal aspirar, de forma credível, ao crescimento robusto que agora nos parecem apresentar como inevitável com as políticas em curso, que são manifestamente insuficientes. Até lá, continuaremos a assistir ao contraste crescente entre o discurso e a realidade — e a pagar, em nível de vida relativo, o preço de uma ambição que insiste em não ser acompanhada pela execução.
Será que existe um vírus de deslumbramento e cegueira que afeta os governantes quando tomam posse? Fica a pergunta.
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O milagre dos 3% ou quando o discurso ultrapassa a realidade
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