Pedro Nuno Santos anunciou uma ligação ferroviária Lisboa-Porto em 1h15. Há 20 anos, João Cravinho fazia o mesmo anúncio. Fomos conversar com o ministro do Planeamento de António Guterres.
No dia 6 de julho de 1999, o Público fazia esta manchete: “TGV vai ligar Lisboa ao Porto em 1h15”. Esta quinta-feira, passados mais de 20 anos, o mesmo diário escrevia na capa: “Linha de alta velocidade entre Porto e Lisboa vai reduzir viagem para 1h15”.
A coincidência das capas foi comentada ontem pelo ministro Pedro Nuno Santos durante a apresentação do Programa Nacional de Investimentos (PNI) 2030: “Temos de saber fazer, enquanto país, uma autocrítica. Um jornal lembrou uma capa de 1999, e a verdade é que em 1999 chegámos aquela que era a melhor solução para aproximarmos as principais cidades do país, para encurtarmos a distância e tempo dentro do nosso território”.
Pedro Nuno Santos referia-se à solução do seu homólogo João Cravinho que há 20 anos também anunciou uma linha de alta velocidade entre Lisboa e o Porto, também em 1h15. “Homenagem seja feita, e há momentos em que têm de ser feitas, nós não estamos a inventar nada, o Eng. João Cravinho já tinha chegado a isto. Infelizmente perdemos tempo”, afirmou ontem o Ministro das Infraestruturas e da Habitação.
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Passaram-se 20 anos, o tempo prometido pelos governantes na viagem Lisboa-Porto é o mesmo (1h15) e a única coisa que mudou é o nome: Com Nuno Santos é “Alta Velocidade” e com Cravinho chamava-se “TGV”, um tema que o primeiro-ministro em 2018 classificou como “tabu” e em 2019 como “bastante tóxico”.
“Não quero saber se é alta velocidade ou velocidade alta”. A frase é de António Costa Silva que recuperou o tema para a sua “Visão Estratégica” que serviu de inspiração para o Plano de Recuperação e Resiliência que Portugal apresentou a Bruxelas. O consultor sugeriu começar a obra pelo troço Porto-Soure, onde existem mais constrangimentos de circulação.
Pedro Nuno Santos aceitou a sugestão e vai avançar com a obra que vai custar 4,5 mil milhões de euros, sendo que, segundo o jornal Público, numa primeira fase será feita em bitola ibérica, mas em cima de carris polivalentes para que no futuro a linha possa migrar para a bitola europeia. Só nessa fase é que os comboios poderão circular a 300km/hora para que o Porto e Lisboa fiquem a 1h15 de distância.
Como nasceu e como morreu o TGV?
O ECO conversou esta quinta-feira com João Cravinho, o ex-ministro de António Guterres, que há 20 anos prometia também uma ligação de 1h15 entre as duas principais cidades do país. “Uma hora e 15 minutos é um standard que já tem vinte anos”, diz Cravinho que, tal como Pedro Nuno Santos, lamenta o tempo que o país perdeu, recordando que o primeiro TGV na Península Ibérica data de 1992, e ligava Madrid a Sevilha.
Como surgiu a ideia do TGV? “Quando entrei no Governo, em 1995, havia a Rede Europeia de Transportes que no caso português previa só uma ligação via rápida, de autoestrada, entre Lisboa e Valladolid. Pareceu-me que estávamos muito mal colocados, e que era fundamental alterar a Rede Europeia de Transportes de forma a valorizar a costa atlântica, criando uma rede multimodal, com várias modalidades de transportes (rodoviário, aéreo, marítimo e ferroviário)”.
Foi então que Portugal chamou Arias-Salgado, o ministro de Fomento espanhol de José María Aznar e juntos conseguiram convencer Bruxelas a alterar a Rede Europeia de Transportes, o que veio a acontecer na Cimeira de Dublin. A Rede Europeia de Transportes passou a contemplar uma ligação TGV Lisboa-Porto, Lisboa-Madrid e Porto-Madrid.
A ideia era ter uma rede em ‘T’, com um eixo vertical a ligar Porto e Lisboa e a partir dessa linha sairia uma outra para Espanha, algures no Entroncamento. “Era o esquema que negociei com Arias-Salgado, entrávamos [em Espanha] em direção a Cáceres, vindos de Lisboa ou do Porto”.
Como morreu o TGV? João Cravinho saiu do Governo no final da década de 90 e “já estavam todos os estudos feitos para o TGV e para o aeroporto da Ota. Se tivessem começado a ser feitos na altura, as obras já estariam concluídas em 10 anos. Não havia razão nenhuma para não avançar em 2001 e 2002”.
Para o ex-ministro do Planeamento, a Ota era fundamental. “Você tem 80% do tráfego a norte do Tejo e apenas 20% a sul, e você vai fazer um aeroporto onde está 20%?” Na altura, o objetivo não era fazer um aeroporto complementar, mas um que substituísse a Portela.
Cravinho defende que “interesses imobiliários” deram um golpe à opção Ota e mais tarde o Laboratório Nacional de Engenharia Civil (LNEC) viria a chegar à conclusão que o aeroporto deveria ser na margem sul e então começou-se a perder a tal visão integrada da fachada atlântica e da infraestruturação do país: “Começaram-se a fazer coisas soltas e não ligadas. O país não percebia a ligação profunda entre as diferentes peças”.
“O TGV iria ligar Lisboa e Porto, mas não se sabia como ia ligar a Alcochete. Na altura as duas peças não encaixavam”, explica Cravinho.
Mais tarde José Sócrates chega a lançar o primeiro concurso para o TGV entre Poceirão e Caia, e é nessa altura que João Cravinho diz que “o TGV morre da crise”.
E é desta que vamos demorar 1h15 a chegar ao Porto?
João Cravinho acredita que sim. “Agora, em princípio, há dinheiro”, referindo-se aos milhões que virão de Bruxelas.
Cravinho não acredita muito no conceito da modernização da Linha do Norte, mas não lhe choca que se volte a apostar na bitola ibérica “já que hoje em dia o material circulante pode, em muito pouco tempo, mudar de bitola. Aquela ideia de que poderíamos ficar aprisionados numa ilha por causa da bitola não faz sentido nenhum”.
Acredita que “desta vez não há recuo”, mas lamenta o atraso de 20 anos para fazer 300 quilómetros de obra. “Que se tenha levado tanto tempo a perceber que Lisboa Porto é fundamental é que eu não percebo. Não temos propensão para organizar e para pensar o que será estrategicamente o país daqui a 10 ou 20 anos”.
O que sente quando olha para estas duas capas do jornal Público, com uma diferença de 20 anos, ambas a prometer Lisboa-Porto em 1h15?
“Até certo ponto sinto alívio. Até que enfim que estou num país com alguém com o cérebro inteiro”, desabafa.
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“TGV morreu da crise”. Ressuscitou e mudou de nome
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