A Argentina talvez já só precise de um programa do FMI

Costumo dizer que a Argentina precisa de dois programas do FMI: um para enfrentar os seus problemas económicos atuais e outro para os problemas do primeiro, que muitas vezes são exatamente os mesmos.

A Argentina já vai no 22º programa de empréstimo do Fundo Monetário Internacional (FMI). Neste momento estão a acontecer negociações para o 23º. Sem surpresa, a Argentina é o maior devedor do FMI. É um daqueles casos em que se um país deve dinheiro ao FMI isto é um problema do país, mas se deve muito dinheiro passa a ser um problema do FMI. O problema aqui não é o dinheiro em si, antes a reputação do fundo monetário. Um fracasso da Argentina seria um falhanço do modelo de negócio do FMI, com consequências para a instituição e para a ordem económica mundial vigente.

Os programas da Argentina com o FMI são por isso muito discutidos nos círculos de política económica. Costumo dizer que a Argentina precisa de dois programas. Um para resolver o problema atual de inflação elevada, défice nas contas externas, falta de divisa estrangeira, défice nas contas públicas e dívida pública insustentável. E outro para resolver os problemas causados pelo primeiro programa. Normalmente são exatamente os mesmos.

Desta vez poderá ser diferente. Ainda é cedo, claro, mas há sinais de que as políticas de Javier Milei estão a ter alguns resultados. No primeiro trimestre de 2024 as contas públicas tiveram um excedente. Isto foi conseguido através de uma política de austeridade equivalente a cerca de 4% do Produto Interno Bruto (PIB) de 2023. Trata-se de uma das maiores contrações fiscais de sempre. Não é surpreendente que esta política de austeridade tenha piorado a recessão económica na Argentina. O consumo privado está em queda. O desemprego está a subir. Chegam relatos de dificuldades sociais. Há cerca de uma semana, houve protestos em Buenos Aires contra a falta de financiamento das universidades públicas.

Infelizmente, recessões económicas e dificuldades sociais não são novidade na Argentina. E não é com pensamento mágico que se resolvem problemas, nem de Milei, nem de ninguém. Com controlo político limitado, o governo de Milei para já pôs de lado ideias mais radicais como a dolarização ou a liberalização completa da economia, focando os esforços na estabilização macroeconómica.

Há alguns resultados interessantes. A inflação baixou e aproxima-se dos 10% segundo os dados oficiais. Estimativas com base em preços online da PriceStats, uma empresa de um projecto de economistas do MIT que era muito útil quando a inflação oficial era manipulada, apontam para uma inflação mensal de 5% e em tendência de cair ainda mais. A taxa de câmbio estabilizou e o banco central tem vindo a acumular reservas. O consumo privado estabilizou-se, ainda que a um nível mais baixo que no ano passado. Estão a criar-se condições para uma retoma económica em 2025. O desafio no curto prazo é fazer os cortes necessários para recolocar a Argentina numa trajetória de crescimento económico, evitando demasiados danos económicos e sociais no processo.

Numa conferência em Dezembro de 2023 com alguns colegas argentinos, todos queriam saber o que esperar de Milei. A resposta foi que não era tão louco como parecia na imprensa internacional. Que se estava a rodear de pessoas sensatas, por exemplo o economista Federico Sturzenegger, e que as restrições políticas iam tornar difícil implementar grande parte do programa eleitoral. Mas falou-se também do declínio político-económica da Argentina e da necessidade de retirar muitos interesses instalados a explorar as pessoas por via do Estado. De fazer reformas com efeitos no longo prazo.

Porque é que as reformas acontecem mais frequentemente quando a economia está em dificuldades? Por um lado isto parece contraproducente. Se as reformas retiram a alguns grupos a capacidade de extrair recursos públicos para proveito próprio, seria mais fácil fazer reformas quando a economia está bem, porque podemos compensar os “perdedores” mais facilmente. Mas um ponto crucial é que quando a economia está boa, os grupos que recebem rendas têm muito mais a perder. É apenas quando a economia está mesmo má que há oportunidades de grupos novos aparecerem e mudarem as regras do jogo, de melhorarem as instituições. Se as reformas forem bem sucedidas, poderão aumentar a atividade económica novamente. Mas há sempre o perigo de criarem situações privilegiadas para outros grupos, e eventualmente levar ao declínio económico, recomeçando o ciclo de reformas.

Não tenho contexto suficiente para julgar potenciais violações da democracia na Argentina, nem uma visão clara de qual seria o contrafactual dadas as dificuldades económicas do país. Deixo isso para os especialistas. Do ponto de vista macroeconómico, a experiência na Argentina é muito interessante. O contexto é um pouco específico, mas o resultado poderá mover a agulha sobre o consenso de políticas económicas para países em dificuldades no curto prazo. Se conseguirem resolver o problema das instituições, isso será relevante para todos os países, incluindo Portugal.

  • Professor de Economia Internacional na ESCP Business School

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