A ‘culpa’ é de Carlos Costa?
O Banco de Portugal não está isento de falhas e o governador tem de prestar contas do que faz. Mas o que assistimos nas últimas semanas não foi mais que um processo de ajuste de contas..
Antes de mais, devo fazer uma breve introdução: Até 2012 não conhecia o governador do Banco de Portugal, Dr. Carlos Costa. Apenas quando iniciei as minhas funções na Presidência da República, tive oportunidade de me cruzar com ele, ao longo de quatro anos, em diversas reuniões e audiências por parte do Presidente da República, em que estive presente. Estabeleci com Carlos Costa uma relação de cordialidade e alguma simpatia. Mas não mais do que isso. Depois de terminar as minhas funções em Belém, almocei uma vez com o governador. Não o vejo seguramente quase há um ano. Como no último ano publiquei três livros técnicos, ofereci-lhe um exemplar de cada, e recebi uns amáveis cartões da parte dele, agradecendo essas ofertas.
Isto serve para dizer que não tenho nenhuma ligação especial ao governador, nem tenho qualquer intenção ou ambição relacionada com o Banco de Portugal. Escrevo aquilo que é a minha opinião. Cada um julgue como entender.
Nas últimas semanas intensificaram-se novamente as críticas ao Banco de Portugal e em particular ao seu governador, Carlos Costa, relativamente à supervisão do setor bancário em Portugal.
Embora ninguém esteja acima da crítica, creio que têm sido, regra geral, incorretas. Seguramente que houve erros e falhas por parte do Banco de Portugal e em particular de Carlos Costa. Mas há uma linha clara que separa o que é o natural processo de Accountability e prestação de contas, daquilo que assistimos nas últimas semanas, que não foi mais que um processo de ajuste de contas, com o objetivo de fragilizar o Governador, conduzindo à sua substituição.
Algumas decisões tomadas pelo Banco de Portugal nos últimos anos foram erradas, nomeadamente a decisão de transferir para o BES dois mil milhões de dívida do Novo Banco, atingindo apenas investidores estrangeiros institucionais. Mesmo o processo de resolução do BANIF levanta-me algumas dúvidas (embora aqui me pareça que a responsabilidade caí mais sobre o anterior governo, que geriu de forma desastrosa todo o processo).
Também me parece que o caso do Montepio tem sido gerido com alguma ambiguidade. Mas em todos os casos há naturalmente uma forte assimetria de informação, o que pode levar a que a minha opinião não contemple todos os factos relevantes no processo de tomada de decisão.
Já o processo de resolução do BES parece-me menos polémico: não é possível criticar o Banco de Portugal por ter feito o processo de resolução e simultaneamente achar que o Dr. Ricardo Salgado deveria ter sido afastado muito tempo antes.
Assim, a atuação do Banco de Portugal e do seu governador, desde 2010, tem de ser enquadrada nos seguintes cinco fatores:
- O primeiro fator tem a ver com as causas da crise no setor bancário em Portugal. Essas causas não aconteceram entre 2010 e 2015, mas sim antes de 2010. e podem ser dividida em dois grupos: Um grupo, o BPN, BPP e BES, resulta sobretudo de situações do foro criminal, indiciando fraude e económicos. O segundo grupo, em que se inclui a Caixa e o BCP, pese embora possamos ter também casos de crime (nomeadamente em alguns empréstimos de centenas de milhões de euros, que estão em investigação judicial), temos sobretudo um problema de modelo económico. Ou seja, além dos crimes que foram cometidos por pessoas que passaram pela gestão destes bancos, houve uma política económica conduzida a partir do momento em que Portugal entrou na zona Euro, que é também responsável pela crise bancária que temos vivido.Essa política consistiu num elevado endividamento, concentrado no imobiliário e nos não-transacionáveis, numa economia que desde 2000 praticamente parou de crescer. A responsabilidade tem de ser assacada a quem esteve aos comandos do país e do Banco de Portugal antes de 2010. Foram esses que não viram os crimes e que não viram que aquela política económica resultaria num desastre.A crise financeira de 2008 veio apenas “destapar” os efeitos desta política económica. A bonança que existia no crédito a nível mundial permitiu também durante anos esconder a situação de risco, provocada pelos crimes que foram cometidos em vários bancos.
Contudo, houve falhas de supervisão em toda a Europa (e mesmo antes de 2009). E é importante perceber que a supervisão tem limites e terá sempre falhas e imperfeições.
- O segundo fator tem a ver com o próprio Banco de Portugal. Pouca gente sabe, mas em 2010 o Banco tinha mais de 1.500 funcionários, mas apenas 50 estavam afetos à supervisão bancária. Note-se que após 1999, o Banco de Portugal praticamente ficou reduzido à função de supervisão dos bancos (a dos seguros está noutro regulador). Mas apenas 3% dos seus recursos estavam afetos à sua atividade core.Mudar um “porta-aviões” nesta situação é um exercício de muito longo prazo. Só quem nunca trabalhou e não conhece a Administração Pública (e são tantos no Parlamento e nas estruturas dos partidos políticos), é que acha que em 2-3 anos se altera esta situação. Além que o Banco de Portugal é um órgão colegial, com as vantagens e desvantagens que resulta de um modelo dessa natureza.O Banco de Portugal em 2010 funcionava mal e não estava preparado para o que aconteceu. Mas também aí a responsabilidade tem de ser quem durante vários anos o tinha gerido.
- O terceiro fator é que devemos perguntar: está hoje o Banco de Portugal mais bem preparado que em 2010? Creio que sim, embora muito dessa mudança resulte de decisões Europeias, ao nível do BCE.
- O quarto fator tem a ver com a questão do BES (que junto com o BANIF tem concentrado as críticas a Carlos Costa). O instrumento de resolução que permitiu resolver o problema apenas esteve disponível a partir de junho de 2014. Até lá, só mesmo com a remoção da sua administração.Como fazê-lo sem causar uma situação de rutura no banco e de pânico nos depositantes? Hoje é fácil dizer que o Governador devia ter demitido Ricardo Salgado um ano antes da resolução do BES. Mas alguém na altura teria tido essa coragem? Afinal Ricardo Salgado não era o DDT? Basta pensar, e há duas semanas tivemos mais alguns elementos, nas reportagens da Sábado e da Visão, na forma como o governo de José Sócrates se relacionava com o grupo Espírito Santo.Alguém pode dizer, de boa-fé, que teria em 2012 ou 2013, sem sombra de dúvida, demitido Ricardo Salgado?
- O quinto e último fator tem a ver com a questão, sempre hipotética (porque o “counterfactual” é impossível): “alguém, naquelas condições, teria feito melhor?”.Ora, aqui importa fazer uma distinção de eficiência. Na teoria económica existe, simplificando, dois tipos de modelos de eficiência: Há modelos que simulam uma eficiência “perfeita”, ou seja, qual seria a eficiência máxima possível e depois comparam essa reta de eficiência com os elementos em estudo. E verifica-se qual a distância de cada elemento (por exemplo, uma empresa) face a essa reta teórica. Depois, há modelos em que entre os elementos em estudo (por exemplo, um grupo de empresas num determinado setor), identifica-se a que é mais eficiente (ou as mais eficientes), e essa(s) são a reta de fronteira eficiente. E depois compara-se as restantes com essa reta (que é real).Ora, o que me parece é que devemos avaliar o Banco de Portugal e o governador pelo segundo modelo. Num mundo perfeito, não teria havido crimes nem erros de política económica, e o supervisor seria infalível e não existiria informação incompleta e assimétrica. Nesse sentido, creio que, dadas as circunstâncias e os elementos, dificilmente alguém teria feito melhor que o atual Governador.
Só que não vivemos num mundo perfeito. Como tal, não pode o “polícia” ser culpado pela existência do crime. Terá havido seguramente falhas na supervisão e na atuação após 2010? Seguramente que sim. Mas acreditar que tudo o que aconteceu nos bancos em Portugal desde 2008 resulta da culpa de Carlos Costa, só mesmo de quem acha que devemos recuperar Ricardo Salgado e pô-lo a mandar na banca Portuguesa.
Isto não significa contudo que não concorde com o Paulo Ferreira, no seu artigo de há duas semanas, quando dizia ser preciso uma forte mudança na forma como se faz supervisão bancária. Mas essa mudança passa sobretudo em Frankfurt.
Demitir o Governador, como muitos à esquerda querem, terá graves implicações ao nível do BCE e dos mercados. Mas não me surpreenderia, que na “geringonça”, haja quem olhe para a “cabeça” de Carlos Costa e veja um ótimo troféu para negociar com a extrema-esquerda mais uns tempos de poder. Mesmo que à custa do interesse nacional.
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