Carlos Marques de Almeida: “A Economia da Vida e a Liga dos Campeões”
Primeiro-Ministro e Presidente da República, preocupados com a alegria dos portugueses, querem negar que com o fluxo de turistas circula também o fluxo do vírus. A pandemia não ficou no confinamento.
O Governo vive em negação. O Presidente da República incentiva os portugueses à felicidade. O vírus circula pelo País com mais intensidade, transformando o espaço nacional num arquipélago de surtos e de infecções. Na Europa, 17 países não aceitam cidadãos com origem em Portugal. Em Portugal o delírio do Verão e das férias cala a razão e excita a fantasia, a delícia de uma terra protegida pelo optimismo democrático.
A grande maioria dos portugueses, desalmada por anos sem fim de promessas e pragmatismo, conversa nos intervalos com a máscara no pescoço e continua a vida como se nada fosse. Acontece que esta descontracção acaba sempre por ter um preço e as vítimas são exactamente aqueles que acreditam no discurso político. A negação passa assim a ser o maior activo nacional, fazendo dos alertas e das opiniões contrárias uma espécie de discurso catastrofista a ignorar para não incomodar o espectáculo da festa da praia entre o concurso, a novela e o jogo de futebol em formato digital, visão aumentada e cores hipnóticas para além da realidade.
Aliás, o primeiro-ministro e o Presidente da República são os mordomos das romarias e os activistas do marketing nacional. A cerimónia de apresentação da Final Eight da Liga dos Campeões a realizar em Lisboa é o triunfo de uma encenação num hospício.
Portugal pretende surgir aos olhos da Europa como o santuário da pandemia, a reserva do Continente, o refúgio da civilização, com a vantagem acrescida de constituir um prémio para os funcionários do SNS. Mas como será racionalmente possível que trabalhadores ameaçados no emprego, na segurança e até na possibilidade de exclusão social, vibrarem com os grandes magnatas do futebol, filhos dos mesmos bairros, mas que, por milagre, sorte ou vocação para um jogo, ganham fortunas e esbanjam o luxo das celebridades? A única explicação reside na convicção dos “remediados” de que só se consegue ser rico por milagre, sorte ou corrupção. A riqueza é o espectáculo da vida dos outros. Enriquecer legitimamente pelo trabalho em Portugal é uma história contada nos infantários para combater a patologia suburbana e para prevenir o crescimento de uma legião de revoltados.
O intuito desta operação de charme e de mentira é a ambição de atrair turistas a Portugal, mas sobretudo a Lisboa. A economia nacional está tão dependente do turismo como a Venezuela está cativa do petróleo. A indústria da hospitalidade gera lucros mas não riqueza, multiplica receitas para o Estado, distribui rendimento pela precariedade dos empregos sazonais, apropriando-se de um património comum que vende à exaustão como se fosse um activo da indústria.
Esta dependência transforma Portugal num parque temático e os portugueses em empregados de mesa. Servir é a vocação da Nação. Nesta configuração pandémica é a associação entre o turismo e o futebol, pois num País sem ideologia, sem solidariedade, sem ilusões relativamente à classe política e empresarial, pois dinheiro por dinheiro, seja pelo turismo seja pelo futebol, não existe diferença nem escrúpulo. Sobram apenas as cadeias de transmissão.
No entanto, o “zen instantâneo” do primeiro-ministro e do Presidente da República preocupados com a alegria dos portugueses querem negar que com o fluxo de turistas circula também o fluxo do vírus. A pandemia não é um episódio que ficou no confinamento. Em Portugal a situação não está controlada, observe-se a região de Lisboa e a inércia das autoridades.
Na Europa a situação também não está controlada. A livre circulação de indivíduos é a livre circulação do risco que as autoridades portuguesas e europeias estão dispostas a assumir. Mas é fácil comprar o risco baseado no valor colateral da vida dos outros. O dilema político que se coloca é entre o predomínio da saúde pública ou a promoção da actividade económica. Pode existir uma interpretação política distorcida desta dicotomia, quando se considera que a Esquerda tende a favorecer a saúde pública e a Direita a actividade económica. Nesta lógica, Portugal teria um Primeiro-Ministro que ondula entre a Direita e a Esquerda dependendo se está a negociar com a Confederação Industrial ou com o Bloco de Esquerda; e um Presidente da República que oscila entre a Direita e a Esquerda dependendo se está numa Associação de Empresários ou no Banco Alimentar. No vácuo moral da política em Portugal é preciso entender que as duas dimensões são as duas faces do mesmo problema que é a pandemia.
A pergunta que se impõe é se há futuro para além da Final Eight? Entre o “horror económico” e uma “praga milenar”, a resposta política tem de considerar as duas possibilidades em simultâneo. A resposta política tem de se projectar com a visão de um desígnio, com o detalhe da imaginação, com a impaciência de uma vontade paciente, com a competência de uma gestão a longo prazo. A agitprop do Governo é o delírio da grandeza que infecta todas as transacções do poder. Se a Final Eight for um sucesso, Portugal será a maravilha da Europa. Se a Final Eight for um fracasso, Portugal entra talvez em confinamento no Outono e o abismo será maior do que a queda.
Rosa Luxemburgo ficava chocada pelo facto de existirem pessoas resignadas à realidade. O destino do indivíduo livre é pegar em armas e mudar o Mundo. Em caso de fracasso, a dignidade está no suicídio. Que dignidade espera Portugal?
Nota: O autor escreve ao abrigo do antigo acordo ortográfico.
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