
A garantia pública que garante tudo menos justiça social
A garantia pública no crédito à habitação para os jovens prometia ajudar os mais desfavorecidos, mas só facilitou a vida aos que já podiam comprar casa. Mais uma política social que falha o alvo.
Quando há cerca de um ano o Governo anunciou a disponibilização de uma garantia pública para o crédito habitação jovem, vendeu a ideia de que finalmente se iria resolver o drama desesperante dos jovens que não conseguem comprar casa. Um Estado paternalista e benevolente que estenderia a mão aos desfavorecidos, garantindo que até os mais pobres pudessem realizar o sonho da casa própria. Que bonito, que nobre, que… completamente ao lado da realidade.
Porque a verdade, crua e inconveniente como sempre, é que esta medida está a ser uma festa para quem menos precisa dela. Os dados do Banco de Portugal, publicados no Relatório de Estabilidade Financeira de maio, espelham aquilo que já corria no mercado: os jovens que recorrem à garantia pública têm, em média, rendimentos mais elevados do que aqueles que conseguem crédito sem ajuda do Estado.
Isto significa que a garantia pública é uma espécie de versão moderna do Robin Hood, que “rouba” aos pobres para dar aos ricos. Ou melhor, que usa o dinheiro de todos os contribuintes para facilitar a vida aos jovens que já estavam numa posição confortável para comprar casa. Os mutuários com rendimentos mais baixos têm uma representatividade inferior neste regime, revela o supervisor bancário com a frieza de quem constata o óbvio: mais uma política social que falha o alvo por metros.
A garantia pública está a permitir aos jovens comprar casas mais caras, não a ajudar os que não conseguem comprar casa nenhuma.
Os números não deixam dúvidas. Enquanto o valor médio dos empréstimos com garantia pública ascende aos 190 mil euros, os jovens elegíveis que não usaram a garantia ficaram-se pelos 173 mil euros. Ou seja, a garantia pública está a permitir aos jovens comprar casas mais caras, não a ajudar os que não conseguem comprar casa nenhuma.
Mas a história fica ainda mais “saborosa” quando se observa que 89% dos contratos com garantia pública financiaram 100% da compra da casa com um rácio loan-to-value médio de 99%. É o tudo ou nada da irresponsabilidade financeira: jovens a endividarem-se pela totalidade do valor dos imóveis, com maturidades médias de 37 anos e 8 meses – quase seis anos acima da média geral.
E não se diga que ninguém avisou para esta situação. Tanto o Banco de Portugal como o seu governador alertaram várias vezes para o risco que se estava a criar com esta garantia pública. Por diversas ocasiões, Mário Centeno alertou para “consequências evidentes” e para “questões complexas” relacionadas com as medidas macroprudenciais que o regime da garantia pública coloca em causa, e que contribuíram em muito na consolidação da atual da solidez do sistema financeiro, após anos no deserto. Mas quem é que ouve economistas quando há votos para conquistar?
O mais hilariante é que 59% dos jovens elegíveis para a garantia nem sequer a usaram. Ou seja, a maioria dos jovens que podia usar esta ajuda do Estado… não precisou dela.
A verdade é que a taxa de esforço dos mutuários que recorreram à garantia é, em média, 6 pontos percentuais superior à observada no conjunto das novas operações de crédito habitação, segundo os dados do Banco de Portugal. Traduzindo: estes jovens estão a comprometer uma fatia muito maior dos seus rendimentos para pagar a casa. E quando as taxas de juro voltarem a subir? Ah, isso é problema para depois, provavelmente para outro governo.
Enquanto isso, os bancos esfregam as mãos de contentamento. No primeiro trimestre, o crédito com garantia representou 9% do número de contratos e 13% do montante total dos novos contratos de crédito habitação. Algumas instituições já usaram mais de 30% do limite atribuído, enquanto outras nem chegaram aos 5%. É a lei da selva bancária: uns espertos, outros nem por isso.
O mais hilariante é que 59% dos jovens elegíveis para a garantia nem sequer a usaram. Ou seja, a maioria dos jovens que podia usar esta ajuda do Estado… não precisou dela. Estão a conseguir comprar casa na mesma, obrigado. Só os mais gastadores é que precisaram do Estado como fiador para se endividarem ao máximo.
O que os números do primeiro trimestre mostram é que garantia pública no crédito à habitação para os jovens é o populismo em estado puro: uma medida que soa bem nos discursos eleitorais, que promete resolver um problema grave, mas que, na prática, beneficia quem menos precisa. É uma versão habitacional do IRS Jovem – mais uma borla fiscal para a classe média-alta disfarçada de política social.
E o mais trágico é que os jovens que realmente precisavam de ajuda para comprar casa continuam sem ela. Esses, com rendimentos mais baixos, continuam a ter uma representatividade inferior neste regime. Ficam a ver os comboios passar enquanto os filhos da classe média se aproveitam do dinheiro dos contribuintes para financiar a totalidade das suas casinhas de 190 mil euros.
Quando as taxas de juro voltarem a subir — e vão voltar, porque a história da economia é cíclica como as marés — será interessante ver o que acontece a esta legião de jovens super-endividados, com taxas de esforço de bradar aos céus e prazos de pagamento que se estendem até quase aos 70 anos de idade. Será que o Estado vai assumir as responsabilidades quando começarem a aparecer os primeiros casos de incumprimento? Ou será que vamos descobrir que, afinal, os 15% do valor da transação que o Estado garante não chegam bem para cobrir os buracos?
Por agora, fica a lição: em Portugal, até as políticas sociais são regressivas. Conseguimos criar um mecanismo que se destina a ajudar os jovens pobres e acaba por beneficiar os jovens ricos. É preciso talento para isto. Parabéns, estamos perante mais uma obra-prima da engenharia social portuguesa: uma garantia pública que garante tudo, menos que chegue a quem precisa e que dê resposta ao problema que se comprometeu a resolver.
Assine o ECO Premium
No momento em que a informação é mais importante do que nunca, apoie o jornalismo independente e rigoroso.
De que forma? Assine o ECO Premium e tenha acesso a notícias exclusivas, à opinião que conta, às reportagens e especiais que mostram o outro lado da história.
Esta assinatura é uma forma de apoiar o ECO e os seus jornalistas. A nossa contrapartida é o jornalismo independente, rigoroso e credível.
Comentários ({{ total }})
A garantia pública que garante tudo menos justiça social
{{ noCommentsLabel }}