
A impossível reforma do Estado
É possível e desejável cortar na burocracia. Já a reforma do próprio Estado seria importante mas não vai acontecer.
Podemos já desistir. Tirar daí o sentido. Baixar as expectativas. Lamento começar isto assim mas é melhor sermos claros, logo à partida.
Luís Montenegro começou este seu segundo Governo com uma cartada de um simbolismo importante. A criação de um Ministério da Reforma do Estado, a cargo de Gonçalo Saraiva Martins, sinaliza um assomo de ímpeto reformista que tem estado largamente ausente da nossa vida política. A escolha deste responsável é também feliz, porque o que lhe faltará em peso político será compensado por uma visão exterior (à máquina do Estado) bastante útil e pelo seu amor aos dados, cuja análise é quase sempre o berço das boas decisões.
Temos, porém, de definir primeiro de que raio estamos a falar, quando falamos de reforma do Estado. Em conversa recente com o economista e antigo ministro da Economia Carlos Tavares, ele insistia que a reforma do Estado não é a mesma coisa que a reforma da Administração Pública. A primeira é muito mais abrangente do que a segunda, porque envolve coisas como a análise e definição do papel do Estado ou as áreas nas quais ele deve atuar, sem possível substituição por privados, entre outros elementos.
E mesmo a reforma da Administração Pública pode ter, sobretudo, duas vertentes, que podem (e devem) estar interligadas: a organização interna dos serviços públicos, os seus procedimentos, a sua alocação de meios, nomeadamente humanos; e a relação da máquina estatal com os privados, numa ótica de redução da burocracia.
Voltando a parafrasear Carlos Tavares, ele pedia que não se falasse em reforma do Estado, porque é algo tão geral e tão abrangente que é quase uma garantia que vai desiludir, que não se vai conseguir fazer grande coisa. Mas, diz, é essencial fazer uma reforma da Administração Pública.
Ouvindo as primeiras intervenções do ministro, fica a ideia que o foco será na “guerra à burocracia”. E todos sabemos como o País precisa desesperadamente disso.
Mas uma reforma do Estado, ou só da Administração Pública, é muito mais do que isso, e é também inadiável. Senão vejamos.
Como é possível que, com toda a revolução tecnológica em curso e os avultados investimentos do PRR na modernização da máquina estatal, continue todos os meses a aumentar o número de funcionários públicos? E atenção, eu não consigo dizer com segurança se temos funcionários públicos a mais ou a menos. O que eu sei é que eles estão mal distribuídos, e isso parece não ter solução (as que foram tentadas no passado esbarraram de frente contra os tribunais e enfrentaram pelo lado dos sindicatos uma guerra sem quartel).
O grande desafio da Administração Pública não é tecnológico e nem sequer é financeiro. É de pessoas, é de atração de talento, de qualificação. E isso é absolutamente incompatível com a forma rígida como os recursos humanos do Estado estão organizados. Os sindicatos continuam a insistir no desenho e na regulamentação de carreiras, que na maior parte das vezes só garantem uma coisa: que os medíocres estão protegidos e os bons desmotivados. Tirando algumas profissões específicas, isso não servirá para requalificar a Administração Pública e muito menos para atrair talentos das gerações mais jovens.
Estas até poderiam ser, em teoria, um bom campo de recrutamento, porque tendem a valorizar o propósito no trabalho. E há poucos propósitos profissionais mais dignos do que servir o seu País e os seus concidadãos. Porém, valorizam também outras coisas, como a capacidade de evolução, o trabalho por projetos, a flexibilidade, a motivação, o feedback e recompensa frequentes e rápidos. Ora tudo, ou quase tudo, coisas em que a Administração Pública falha, espartilhada num labirinto de carreiras desenhadas a regra e esquadro que contribuem para um trabalho muitas vezes burocrático, desinteressante, desumanizado e naturalmente desmotivador. Para estas gerações, nomeadamente entre os mais qualificados, a perspetiva de uma carreira toda estruturada, segura, com promoções com hora marcada, de uma vida inteira a fazer a mesma coisa, não é um trunfo. É uma visão do demónio.
Acompanhei durante vários anos inquéritos de satisfação de trabalhadores, que incluíam empresas de vários setores. Um ponto recorrente era os trabalhadores da Função Pública serem sempre os mais insatisfeitos, mas eram sempre daqueles que menos admitiam estar a pensar em sair para outro emprego. Ou seja, odiavam o que faziam mas nem pensavam em largar a segurança do emprego público. E isto é uma tragédia, porque significa que, com decisões políticas erradas (eleitoralistas e cobardes), formámos um exército de insatisfeitos comprados com o ouro da segurança. Este é o corpo de trabalho da Rádio Alcatifa, que passa os dias a dizer mal do trabalho ou do chefe de departamento, mas que não dá a vaga a outros. Pior, que já desistiu de acreditar que as coisas podem melhorar.
A raiz do problema é cultural e já foi mais do que identificada. Nenhum trabalho pode ser realmente bem feito se não houver incentivos para tal, no público ou no privado. Se não houver recompensa por um trabalho bem feito, nem penalização por um trabalho mal feito, é impossível que a coisa corra bem. E esta é a regra no Estado, infelizmente.
Os bons não são promovidos nem aumentados (por questões orçamentais e com quotas de promoção artificialmente limitadas), os maus não são despedidos. Os primeiros fartam-se de suar a camisola enquanto os outros – que muitas vezes ganham mais apenas porque são mais antigos ou de determinada cor política – não dão o litro. E os melhores, os mais comprometidos, vão-se embora, para onde o mérito é reconhecido e recompensado. Não há milagres.
A “guerra à burocracia” é muito bem-vinda e necessária. Se este Governo conseguir ser focado e eficaz aí, já será uma vitória importante. Mas o verdadeiro trabalho não está aí. O grande desafio está e vai estar cada vez mais nas pessoas, e essa “guerra” só se vai ganhar com uma revolução cultural. Que não pode viver de slogans ou frases motivacionais, mas sim de sistemas de avaliação robustos e isentos, de ferramentas eficientes para trabalhar, de formação de qualidade, de flexibilidade nos prémios e nas promoções, de penalização de quem não quer servir bem o público, de efetiva valorização dos muitos funcionários públicos que nos honram todos os dias com o seu talento e o seu empenho.
Antes de terminar, uma palavra importante sobre outro dos grandes problemas da Administração Pública, a sua politização, ou melhor, a sua partidarização. Não é possível motivar trabalhadores se eles virem, à sua volta, chefes incompetentes e colegas injustamente perseguidos ou premiados (e isto é verdade no público ou no privado), devido à cor do cartão partidário. Quando os partidos no poder (e aí ambos são iguais) insistem em colocar milhares de “amigos”, militantes ou simpatizantes na máquina do Estado sempre que muda o Governo, estão a demonstrar uma enorme falta de respeito pela Administração Pública. Mais, estão a bloquear a evolução positiva e a desmotivar aqueles que apenas querem fazer o melhor trabalho em prol de todos nós.
Isto para dizer que há um risco, que não deve ser ignorado, de aumentar a discricionariedade e flexibilidade nas promoções e penalizações na Função Pública. O sistema foi desenhado para que o funcionário público seja um profissional de carreira e aí passe toda a sua vida, fazendo o seu melhor independentemente de quem esteja no poder. Os governos passam, o Estado fica.
Se os partidos não mudarem a sua postura (e tenho sérias dúvidas que o queiram fazer) e as avaliações na base das decisões sobre funcionários não forem isentas e à prova de bala, arriscaríamos ficar pior do que estamos.
Que se corte a burocracia, sim!
Mas que se tenha a coragem para mexer no resto, incluindo na partidarização do Estado. De contrário, não há simplexes que nos valham e não há qualquer reforma do Estado que seja possível.
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