A (i)mutável lei da greve

  • David Carvalho Martins e Carolina Caldeira Fernandes
  • 14:00

Propõe-se a criação de um balcão único gerido, onde todos os pré-avisos de greve relativos a sectores críticos devam ser registados e divulgados, de forma atempada.

O direito à greve, previsto no artigo 57.º da Constituição da República Portuguesa, é um dos pilares fundamentais do Estado de Direito democrático e constitui um dos elementos marcantes do Direito do trabalho. Contudo, a sucessão de greves em setores essenciais em Portugal, como transportes, saúde, educação e Administração Pública, tem colocado em evidência os limites do regime atual e a necessidade de uma reflexão séria sobre a sua reforma, tendo em vista não só o regime constitucional, mas também o equilíbrio entre o direito dos trabalhadores e os interesses dos utentes dos serviços públicos essenciais, os quais, não raras vezes, não têm quaisquer alternativas.

No emprego privado, o regime jurídico da greve encontra-se estabelecido nos artigos 530.º a 543.º do Código do Trabalho. Este regime prevê que a greve pode ser declarada por sindicatos ou, em alternativa, por assembleias de trabalhadores, desde que representem pelo menos 20% ou 200 trabalhadores. O pré-aviso de greve deve ser comunicado com uma antecedência mínima de cinco dias úteis, ou dez dias úteis em caso de serviços essenciais (“empresa ou estabelecimento que se destine à satisfação de necessidades sociais impreteríveis”),

O aviso prévio de greve deve ser feito por meios idóneos, nomeadamente por escrito ou através dos meios de comunicação social. Embora seja uma regra necessária, cabe revê-la de acordo com critérios de adequação e de proporcionalidade estrita, de forma a assegurar o cabal e o atempado conhecimento do pré-aviso de greve ao empregador e aos destinatários dos denominados serviços essenciais. Não bastará, naturalmente, um anúncio num jornal regional ou local para substituir a comunicação escrita ao empregador.

Por outro lado, os serviços mínimos podem ser definidos (i) por acordo entre as partes ou, na ausência deste, (ii) por intervenção da Direção-Geral do Emprego e das Relações de Trabalho (DGERT), na generalidade dos casos, ou (iii) por tribunal arbitral, no caso de empresa do setor empresarial do Estado.

Hoje, os denominados serviços essenciais podem ser prestados por empresas privadas ou por empresas do setor empresarial do Estado. No limite, fará sentido ter diferentes sistemas de definição de serviços mínimos para uma greve que abranja um determinado setor, em igual período temporal, que pode conduzir a resultados distintos, tendo em conta apenas a natureza jurídica da empresa, sendo que o interesse subjacente aos serviços mínimos reside nos destinatários dos serviços? Não faz.

As incongruências continuam se olharmos para as particularidades do emprego público.

Se ao nível da competência para declarar a greve não se verificam diferenças significativas, regista-se um maior cuidado (embora insuficiente) no que toca ao pré-aviso de greve. Com efeito, as entidades com legitimidade para decidirem o recurso à greve devem dirigir ao empregador público, ao membro do Governo responsável pela área da Administração Pública e aos restantes membros do Governo competentes, por meios idóneos, nomeadamente por escrito ou através dos meios de comunicação social, um aviso prévio com as antecedências acima mencionadas para o emprego privado. Também nesta sede, não bastará um mero anúncio num jornal regional ou local para substituir a comunicação escrita ao empregador.

Os serviços mínimos podem ser definidos (i) por instrumento de regulamentação coletiva de trabalho, (ii) por acordo com os representantes dos trabalhadores, na ausência destes, (iii) por tribunal arbitral, cuja lista de árbitros é distinta daquela que se aplica ao emprego público.

Como sabemos, não são raros os casos de empregadores que prestam serviços essenciais com a atividade de trabalhadores com vínculo de emprego privado e outros com vínculo de emprego público. Nessa eventualidade, os riscos de definições de serviços mínimos incoerentes, ineficazes ou inconciliáveis são reais, geram insegurança jurídica e causam inevitavelmente danos aos destinatários dos serviços essenciais, desprotegendo direitos fundamentais ao trabalho, à saúde e à educação, em particular dos mais pobres ou de quem não tem alternativas. Não faz, também, sentido.

Face a estes desafios, torna-se imperioso assegurar maior transparência e previsibilidade na divulgação dos avisos prévios de greve. Propõe-se, por isso, a criação de um balcão único gerido, onde todos os pré-avisos de greve relativos a sectores críticos devam ser registados e divulgados, de forma atempada. Esta medida permitiria prevenir efeitos surpresa sobre os utentes, reduzindo o impacto negativo de paralisações inesperadas para os beneficiários de serviços essenciais, os quais são totalmente alheios ao conflito laboral que está na origem da greve. Adicionalmente, talvez fosse recomendável associar, quando existam, as decisões dos tribunais que analisam a necessidade, sentido e alcance da definição de serviços mínimos para uma maior transparência do processo decisório.

Outro aspeto fundamental é a harmonização de critérios e de procedimentos na definição de serviços mínimos nos casos em que as greves abrangem simultaneamente trabalhadores sujeitos ao Código do Trabalho e à Lei Geral do Trabalho em Funções Públicas no seio do mesmo empregador. A existência de diferentes regimes legais dentro da mesma entidade tem dificultado a definição coerente e eficaz dos serviços mínimos, pelo que se impõe a adoção de critérios comuns, baseados no impacto social e na proteção dos grupos mais vulneráveis. É verdade que são vínculos jurídicos distintos. Contudo, é o dever de proteção dos destinatários de serviços essenciais que exige este reequilíbrio e que fundamenta a existência de serviços mínimos.

Em suma, as experiências recentes evidenciam as fragilidades e a oportunidade de atualização da lei da greve, a qual não está escrita na pedra, nem é imutável. A harmonização entre os regimes jurídicos, a centralização e transparência dos procedimentos, a harmonização de critérios e de procedimentos para a definição de serviços mínimos e a proteção efetiva dos utentes são passos essenciais para garantir um equilíbrio mais justo entre o direito à greve dos trabalhadores e os direitos fundamentais das demais pessoas. Só assim será possível assegurar que a lei da greve, sem perder o seu núcleo essencial, responde de forma adequada aos desafios do presente, promovendo a justiça social e a segurança jurídica de forma transversal e inteligível para a generalidade dos interessados.

  • David Carvalho Martins
  • Sócio diretor da Littler Portugal
  • Carolina Caldeira Fernandes
  • Jurista da Littler Portugal

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