A independência do Conselho das Finanças Públicas
O pior que pode acontecer a uma instituição reguladora criada há poucos anos é o ataque do poder político, quando confrontado com críticas e com análises que desmontam a narrativa oficial.
Teodora Cardoso terminou na semana passada o seu mandato (único, não renovável) de sete anos à frente do Conselho de Finanças Públicas (CFP). O CFP foi criado em 2012. Se há algo que foi uma marca do anterior Governo e de Pedro Passos Coelho foi exatamente procurar melhorar a qualidade e transparência das contas públicas.
Foi Passos, em 2010, quando acordou com o Governo socialista medidas de Consolidação orçamental (“austeridade” como se tornou popular chamar) que impôs ao Governo a melhoria das condições de funcionamento da UTAO. Foi o chamado “PEC 2”. Passos aceitou na altura, em nome do interesse de Portugal, medidas como o aumento de um ponto percentual (p.p.) nas três taxas de IVA, aumentos no IRS e no IRC e cortes nos apoios sociais.
Mas em 2010 a real situação das Finanças Públicas era difícil de escrutinar. O Governo PS, entre 2005 e 2010, tinha usado frequentes esquemas de desorçamentação. Muitos exemplos podem ser dados da forma opaca e pouco séria como o Orçamento era gerido nesses tempos: As PPP.
A receita de portagens nas SCUTS entregue à Estradas de Portugal para manter uma empresa altamente endividada e deficitária fora do défice. Ou a venda de imobiliário à Estamo, para gerar receitas no OE à custa de dívida numa empresa fora do perímetro. Ou ainda, em 2007 e 2008, o Estado a receber uns 300-400 M€/ano de dividendos da CGD e depois a fazer aumentos de capital (os dividendos eram receita e reduziam o défice, mas os aumentos de capital da CGD não iam ao défice, mas apenas à dívida). Claro que todo este descontrolo orçamental só podia terminar da forma como acabou: um resgate financeiro na iminência da República falhar os seus compromissos.
Em 2010, Passos obrigou nesse acordo (chamado “PEC2”) um reforço das competências e dos meios da UTAO (a Unidade Técnica de Apoio Orçamental). A UTAO tinha sido criada em 2006, como entidade independente que no Parlamento dá apoio em matérias de Finanças Públicas. Apesar de ser uma recomendação de boas práticas por parte de várias entidades internacionais como a OCDE e o FMI, Portugal foi dos últimos países a criar uma unidade deste género.
A excelência do trabalho que desenvolveu nestes últimos 13 anos é reconhecida por (quase) todos. Em 2006, a UTAO foi constituída com três elementos. Foi, depois, reduzida a dois elementos e em 2010 tinha três elementos (o Carlos Marinheiro, o Jorge Oliveira e eu próprio). Até 2010, a UTAO debatia-se com falta de meios, mas sobretudo com falta de acesso à informação relevante. Quem ler os relatórios da UTAO desse período verá que o acesso aos dados foi limitado e que muita informação necessária não foi disponibilizada.
No acordo de 2010, a UTAO foi alargada primeiro para cinco membros (reforço de dois pessoas) logo em julho e para janeiro de 2011 o reforço de mais três membros, formando assim uma equipa de oito pessoas. Na altura, Sócrates não percebia porque Passos insistia nisso. Dizia até que isso se iria virar contra Passos quando um dia ele fosse primeiro-ministro.
Passos foi eleito primeiro-ministro em junho de 2011. Na altura já com o acordo da Troika (MoU) assinado por Sócrates e Teixeira dos Santos. No MoU não havia qualquer referência ao reforço da UTAO ou criação de uma nova entidade que fiscalizasse as contas públicas. Havia sim, tendo sido cumprido, várias medidas que melhoravam a qualidade do reporte orçamental, nomeadamente a inclusão da maioria das empresas fora do perímetro e alterações significativas no boletim mensal da DGO.
Mas em 2012 o Governo decidiu criar uma nova entidade que fiscalizasse as contas públicas. Foi, assim, criado o CFP (o CFP passou a constar da Lei de Enquadramento Orçamental na sua 5ª revisão, em 2011). A sua missão é proceder a uma avaliação independente sobre a coerência e o cumprimento dos objetivos definidos e a sustentabilidade das finanças públicas, promovendo a sua transparência.
É verdade que passámos em poucos anos de ausência de entidades técnicas de acompanhamento e avaliação das contas públicas para duas entidades. Mas elas têm natureza diferente. A UTAO visa apoiar o trabalho dos deputados (e se eles precisam…). O CFP visa ser um “independent fiscal council”, fora do âmbito da esfera politica. Por isso a nomeação para o CFP é feita por indicação do Banco de Portugal e do Tribunal de Contas, entidades que determinam o orçamento do CFP.
O CFP hoje tem também uma função prevista nas regras Europeias. Ainda há umas semanas, a convite do IPP/ISEG, tive a oportunidade de reunir com uma delegação do Tribunal de Contas Europeu. E foi realçado que Portugal criou um “independent fiscal council” ainda antes de essa entidade ser obrigatória nas regras Europeias. É que só depois de Portugal criar o CFP é que foi aprovado o “two-pack” (dois regulamentos que compõem a estrutura de supervisão orçamental da União Europeia, no âmbito do Tratado Orçamental e do Semestre Europeu).
O CFP tem assim a função de fiscalizar o cumprimento das regras orçamentais, acompanhar eventuais mecanismos de correção de défices excessivos, avaliar se a correção orçamental está a decorrer de acordo com as regras Europeias e o plano aprovado entre o governo e Bruxelas, apoiando a credibilidade e a transparência do mecanismo de correção.
Além disso, avalia as condições que permitem um desvio temporário do objetivo orçamental de médio prazo ou da trajetória de ajustamento a esse objetivo desde que tal desvio não ponha em causa a sustentabilidade orçamental a médio prazo. Também tem a responsabilidade de emitir um parecer sobre as previsões macroeconómicas do OE e do Programa de Estabilidade.
No entanto, não devemos esperar que o CFP recomende ou aplique medidas de correção dos défices, mas tão-somente a identificação do problema. O objetivo do CFP deverá ser o de sinalizar os desvios e derrapagens, ainda no decurso da execução orçamental, procurando assim inverter o caminho e alcançar os objetivos.
A correção de problemas orçamentais é sempre competência dos atores políticos, seguindo as suas opções políticas, dentro do quadro técnico. É ao poder político que assiste a legitimidade Democrática de fazer escolhas. O que se exige é que esse processo de tomada de decisão seja transparente.
Podemos definir que transparência orçamental consiste em disponibilizar (com acesso fácil) ao público em geral a informação (fiável, completa, atualizada, compreensível e comparável internacionalmente) respeitante à estrutura e funções do Estado, às intenções da política orçamental, às contas públicas e às projeções. Isso permite avaliar com precisão a posição financeira do Estado, bem como os verdadeiros custos e benefícios das atividades do setor público, incluindo as suas consequências económicas e sociais, presentes e futuras.
Teodora presidiu ao CFP nestes primeiros sete anos. Mas teve dois períodos diferentes. Entre 2012 e 2015 teve apoio institucional. A partir de janeiro de 2016, com a entrega por este Governo do OE/2016, passou a ter uma “guerrilha institucional”. O OE/2016 foi aliás exemplificativo. O Governo apresentou a Bruxelas um documento que continha erros metodológicos, sobretudo no cálculo da variação do défice estrutural. O CFP alertou para isso. O Governo criticou o CFP. Mas poucas semanas depois o Governo apresentou um novo documento a Bruxelas, corrigindo os erros do anterior.
Outro exemplo foi a nomeação de Paul de Grauwe para o CFP. De Grauwe é alguém que se tornou respeitado pela qualidade do seu trabalho académico. Só que, como notou o Luís Aguiar Conraria há umas semanas, o professor De Grauwe faz declarações públicas contraditórias com o seu trabalho académico. Numa entrevista ao Público, defendeu que Portugal deveria aumentar o défice, mesmo num contexto de uma dívida pública de 120%. Disse o professor De Grauwe que “não há qualquer razão para termos orçamentos equilibrados”. Só que tudo aquilo que defendeu na entrevista ao Público vai contra as conclusões da sua investigação académica.
Como disse o Luís Aguiar Conraria nesse artigo que referi: “Da próxima vez que o Público entrevistar Paul De Grauwe, sugiro que lhe pergunte em que qualidade é que está a responder: se na de académico respeitado, com algum trabalho de referência no assunto, ou se na de polemista. De caminho, peçam-lhe para esclarecer qual das duas versões de Paul de Grauwe tem assento no Conselho das Finanças Públicas de Portugal. Depois, apresentem-no tendo isso em consideração”.
Tudo isto mina uma instituição que está ainda a dar os primeiros passos. O pior que pode acontecer a uma instituição reguladora criada há poucos anos é o ataque do poder político, quando confrontado com críticas e com análises que desmontam a narrativa oficial. Foi isso que o governo fez nestes últimos três anos. Sem pudor e sem constrangimentos. Mesmo sabendo que prejudicavam Portugal. O lamentável é que um académico respeitável como o Doutor Centeno, que sabe bem da importância de instituições regulatórias independentes e credíveis, tenha participado de forma acérrima nesse processo de tentar descredibilizar e minar o CFP.
Mas nada que nos possa surpreender vindo de um Governo socialista e em particular deste governo coligado com a extrema-esquerda.
Teodora Cardoso foi substituída pela professora Nazaré Costa Cabral, especialista em Finanças Públicas. Nazaré Costa Cabral não tem uma missão fácil, caso estes governantes continuem no poder durante mais tempo. Tem uma equipa de excelência. Mas a sua independência não vai agradar à nossa esquerda, como não agrada nada que lhes fuja do controlo.
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