A regulação do ódio digital
O mito da internet livre de compromissos está a morrer depressa. E as leis que criminalizam comportamentos e discursos na internet estão a tornar-se regra.
Em França acaba de ser aprovada uma lei que pode vir a ser copiada em vários países europeus. A proposta veio de Laetitia Avia, uma advogada do partido de Macron que foi elogiada pelo exemplo de diversidade e representatividade que levou ao parlamento – mas que desde aí tem sido repetidamente vítima de insultos e discurso de ódio em muitas plataformas na internet.
Com esta nova lei, as plataformas digitais que recebem conteúdo gerado por utilizadores estão obrigadas a contratar novos analistas, a criar um sistema facilitado de denúncia de material abusivo e a retirá-lo no prazo de 24 horas desde a primeira denúncia. A multa pode ascender a 4% do lucro global de cada empresa, e o conteúdo e causa é aquele que pode ser considerado “discriminatório e que contém insultos de natureza sexual, religiosa, nacional ou racial.” Esta lei é mais um exemplo do que já ocorre noutros países.
Na Alemanha o cerne da lei tem a ver com o discurso de ódio e está em vigor desde o início do ano. O “Network Enforcement Act” obriga as plataformas a retirar discurso de ódio e conteúdo extremamente violento no prazo de 24 horas, bem como outro tipo de conteúdo ilegal em sete dias. Foi aqui que se introduziu a novidade de permitir que os próprios utilizadores assinalem este tipo de conteúdo, ficando as plataformas obrigadas a executar a retirada. Na sequência desta lei, o Facebook aumentou brutalmente o número de verificadores de conteúdo na Alemanha, demonstrando como as leis moldam os comportamentos destas plataformas sem consequências para o utilizador ou para o cenário de inovação tecnológica.
Já na Austrália é crime manter vídeos com conteúdo violento (como assassínios, suicídios e outras práticas). A lei passou no rescaldo do massacre de Christchurch e tem por título “Partilha de Conteúdo Aberrante e Violento”, coordenada por uma comissão de segurança digital (algo que nem existe em muitos países, a começar por Portugal). E responsabiliza as plataformas e os seus funcionários, que podem incorrer em multas ou penas de prisão até três anos caso não executem em tempo útil as intimações legais. Um aspeto interessante é a vastidão, porque abrange toda e qualquer plataforma que aloje conteúdo gerado pelo utilizador – o que vai das redes sociais a portais de emprego, por exemplo –, mas inclui exceções para o exercício de atos jornalísticos.
E na Nova Zelândia, precisamente depois de Christchurch, a polícia começou a identificar os responsáveis pelas partilhas online do vídeo do ataque em massa. Um empresário de 44 anos foi já condenado a 21 meses de prisão precisamente por essa razão, numa decisão judicial inusitada mas que rapidamente se deverá tornar comum.
Todas estas visam simplesmente aplicar à esfera digital a lei que já se respeita nos outros domínios da vida. Aquilo que é criminalizável se for gritado em plena rua deve também sê-lo nas redes sociais, responsabilizando os autores do crime e as plataformas que ajudam a difundi-lo. Há muito que se tornou óbvio que as plataformas não são inocentes e que atuam sobre o conteúdo, promovendo o que é mais polémico e potencialmente capaz de manter os utilizadores na plataforma – o que acaba por promover o discurso extremista que agora começa a estar sob fogo legislativo na Europa. Por isso é fundamental esta ação para clarificar que que o digital (e nomeadamente toda e qualquer plataforma de rede social) não está acima da lei.
A Comissão Europeia cessante não conseguiu um acordo para criar legislação pan-europeia nesta matéria, mas individualmente os países irão começar a exercer esta opção. Seria preferível um cenário transnacional que assegurasse maior coerência à atuação das plataformas no espaço europeu, mas esta tendência parece agora inevitável ao nível nacional – obrigando as plataformas ao que sempre se escusaram fazer. E, pelos vistos, a ameaça de multas e penas de prisão resulta, como demonstra o caso alemão.
Ler mais: Publicado no início de junho, o livro Speech Police faz uma boa súmula da discussão entre liberdade de expressão e crimes de ódio na esfera digital. O autor está especialmente habilitado para discutir este tema: David Kaye é o relator especial das Nações Unidas para a liberdade de expressão e por isso conhece os temas, os atores políticos e empresariais e as políticas que podem ser postas em prática.
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