Afinal, isto até está a correr bem
Na organização do trabalho, esta crise tem constituído para um cada vez maior número de empresas e pessoas, um poderoso fator de alavancagem para a adoção de muitas das novas práticas.
Com a quarentena, voluntária ou imposta, relacionada com a epidemia do covid-19, há muita gente que já vai sentindo que, como no poema de Álvaro de Campos, “o que há em mim é sobretudo cansaço”: de estar em casa, de estar em privação, de estar com medo, do desgaste de uma paisagem quotidiana monocromaticamente constante. Cansaço, enfim, “assim mesmo, ele mesmo, cansaço”.
No ambiente concentracionário e triste de um estado de emergência imposto, ainda que por razões nobres, há muita gente que já vai soçobrando à “insustentável leveza” do distanciamento ao outro, e se afunda na tristeza da impossibilidade material do contacto físico, da ausência dos abraços e dos beijos ainda que trocados na mera liturgia dos rituais quotidianos.
Neste momento singularmente difícil, em que coabitamos quotidianamente com uma “qualquer coisa que ninguém sonhou”, há já muitos que se deixam levar pelo pessimismo e pelo desnorte de verem os seus horizontes de vida turvados pela dúvida.
Mas há também muita gente que, pelo contrário, embora respeitando com escrúpulo cidadão as prescrições de isolamento social, se encanta com os fugazes vislumbres de espaços próximos nunca antes revelados, de ruas suavizadas das atmosferas tóxicas de dióxido de carbono e, sobretudo, da impressionante e majestosa “dignidade do silêncio”.
E há, finalmente, muitos mais que, recuperando rapidamente da perturbação disruptiva de uma mudança demasiado profunda e súbita, adotam já essa mudança como a nova realidade na qual vão viver, não importa quanto tempo, uma realidade diferente, com um ponto de partida cronologicamente exato, mas com um ponto de chegada inevitavelmente incerto.
E, se mantivermos a nossa mente “de olhos bem abertos” ao que já vai acontecendo de (muito) bom nesta crise, ou face a ela, observamos em muitas situações, em muitas pessoas, em muitas empresas e instituições, fluir uma capacidade fantástica de adaptabilidade e de inovação, uma energia vital que nalguns estava anestesiada de rotina e uma vontade determinada em reescrever uma rota de destino que não se submeta reativamente à fatalidade de um vírus.
Com uma espantosa celeridade, vemos empresas a readaptarem os seus modelos de negócio às novas realidades, como o que acontece, por exemplo, no setor da restauração; vemos outras que, reconfigurando as potencialidades da sua estrutura produtiva, diversificam os seus produtos, indo ao encontro de necessidades agora mais prementes dos consumidores; e há ainda muitas mais que, mantendo o essencial da sua identidade, adotam simplesmente novas modalidades de organização do trabalho, com maior flexibilidade, para se manterem ativas e, sobretudo, produtivas.
Em concreto no domínio da organização do trabalho, esta crise tem constituído para um cada vez maior número de empresas e pessoas, um poderoso fator de alavancagem para a adoção de muitas das novas práticas e até de novos paradigmas que já se vaticinavam com os prenúncios da 4.ª revolução industrial.
Desde logo a questão do trabalho remoto e a generalização da utilização das competências digitais, constitui talvez o elemento mais notório e dominante da iconografia desta crise.
Neste contexto, a capacidade de adaptação que as pessoas e as equipas têm evidenciado está bem patente na observação de uma chefia intermédia que, perante a evidência da não existência de perdas de produtividade e, até, de incrementos em algumas áreas, por via da adoção de novos métodos de trabalho, desabafava, com evidente satisfação: “Afinal, isto até está a correr bem!”.
E vai seguramente continuar a correr e a correr cada vez melhor.
Para que isso aconteça, é sobretudo essencial dinamizar as motivações, a começar obviamente pelas nossas próprias, e mobilizar as vontades para um esforço colaborativo onde, mais do que o episódico sucesso individual, o que verdadeiramente importa é a nossa capacidade de nos reinventarmos coletivamente, e mantermos o espírito aberto a novas aprendizagens e a novas maneiras de nos pensarmos a nós próprios e aos outros.
Nas crises, sobretudo nas de maior profundidade e de impactos potencialmente mais dramáticos e devastadores, somos naturalmente acossados pelos impulsos mais larvares da sobrevivência, que nos levam a ter comportamentos reativos e desconexos.
Mas nesta, há que vivê-la como um verdadeiro teste para a construção de um futuro realmente novo. E, para tal, sobreviver, só, não chega.
*Mário Ceitil é presidente da APG.
*Este artigo de opinião faz parte de um conjunto de artigos que a APG e a revista Pessoas estão a publicar a propósito da pandemia de coronavírus.
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