Ainda os campi universitários
A universidade deve ser um espaço de segurança, sem qualquer dúvida, pois sem ela é possível proteger a liberdade. Mas convém não confundir segurança com conforto.
Na passada semana, a propósito dos incidentes envolvendo as presidentes das universidades de Harvard, Penn e MIT, escrevi sobre a liberdade de expressão nos campi universitários americanos e, acredito, não só lá. Em Portugal, para minha estranheza, o assunto teve muito pouca repercussão. Em particular, que eu tenha notado, nenhum líder académico – reitor, diretor ou dirigente estudantil – se pronunciou acerca dele. Talvez não queiram agitar as águas e esperem que as ondas sísmicas não atravessem o Atlântico.
Volto ao tema porque o considero fundacional, não só para a academia como para a própria democracia liberal. De facto, parecemos esquecer, como o meu amigo António Nogueira Leite bem notou, que o cancelamento do discurso “micro ofensivo” e a política identitária já extravasaram os portões da academia e têm feito paulatinamente o seu percurso entre as elites corporativas. Estas, no fundo, atuam como a intelectualidade teorizada por Gramsci: agentes úteis de uma lenta e corrosiva ação educativa preparatória da revolução.
Mas regressemos aos campi americanos. No meu artigo da semana passada classifiquei a posição das presidentes como hipócrita, pois elas posicionam-se como baluartes da liberdade de expressão quando, na realidade, as universidades a que presidem têm uma trajetória deplorável na defessa dessa liberdade. Um excelente artigo de Ben Sasse (antigo senador republicano e presidente ad Universidade da Flórida) publicado na muito liberal/progressista The Atlantic (“The moral decay of elite universities”) fez-me ver que não se trata de hipocrisia das presidentes, mas, sim, de ideologia. Uma ideologia que amplia a visão marxista da luta de classes como motor da história, definindo, agora, “opressores” e “oprimidos” num conjunto de categorias que vão para além da mera classe social e incluem a raça, a orientação sexual ou a religião.
A célula a que pertencemos nesta matriz multidimensional determina e explica, em última análise, de forma imutável, a posição de cada um perante as mais variadas situações. Nesta teologia neomarxista o estatuto de vítima é a verdade mais fundamental e que subjaz a todas as análises da realidade social ou natural. Impõe-se às elites “conscientes” (“awakened”) identificar no mundo e nas suas instituições as categorias de opressores e oprimidos e, assim, descodificar as suas narrativas e propósitos. Como nota Sasse, a presidente de Harvard – mulher e afroamericana – será uma vítima, não obstante ganhar cerca de 900 mil dólares por ano, enquanto que um empregado de limpeza, CIS, branco e ganhando 30 mil euros será um opressor.
De acordo com esta visão, “palestiniano= oprimido” e “israelita=opressor”, sem qualquer nuance relativa a pessoas individuais e os seus valores, crenças ou posições políticas. Numa luta em que à “vitima” tudo é perdoável, não espanta que a intimidação de estudantes judeus seja encarada com naturalidade.
Não pertenço ao grupo daqueles que acham que a ideologia não tem lugar nos campi, quer no sentido mais geral quer enquanto ideologias políticas. O limite deve ser traçado quando a ideologia conflitua com o direito de professores e estudantes darem azo à sua curiosidade intelectual com total liberdade e em segurança.
A universidade deve ser um espaço de segurança, sem qualquer dúvida, pois sem ela é possível proteger a liberdade. Mas convém não confundir segurança com conforto. A promoção do desconforto intelectual a razão primeira da existência da universidade.
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