Anúncios nas boxes ou como se cercam clientes
Não se entende como há concorrência num novo negócio em que as operadoras se uniram no desenvolvimento da plataforma, no calendário de ida para o mercado, no desenho, no formato e nas funcionalidades.
Não se admire se, a partir desta segunda-feira, começarem a aparecer anúncios publicitários quando carrega no “play” para ver um programa que foi gravado automaticamente na box que o seu operador de telecomunicações instalou em sua casa. Não se admire mas também não se irrite. Pelo menos não se irrite demasiado, vá lá.
Ficámos a saber na semana passada, através de uma notícia do Expresso, que esta nova funcionalidade está pronta e vai arrancar. É um projecto conjunto dos três maiores operadores – MEO, NOS e Vodafone, sendo que nada nos é dito da NOWO – que está a ser desenvolvido com a Accenture.
E, acto contínuo, li comentários críticos e irritados por mais uma intrusão publicitária num espaço que, até agora, estava livre dela. Claro que ninguém gosta de intrusos nem se de ser interrompido quando está a fazer uma coisa que quer fazer ou lhe dá prazer. E a publicidade é o grande intruso quando estamos a ver ou ouvir informação ou entretenimento, seja na televisão, rádio ou nas plataformas electrónicas.
Mas essa é uma inevitabilidade. Desde os primórdios dos media que o negócio é esse e encontra aí a maior fatia das receitas: captar a atenção de espectadores, ouvintes ou leitores com notícias ou entretenimento que querem ver, ouvir e ler e depois vender essa atenção a anunciantes que querem divulgar os seus produtos e serviços.
A outra fatia das receitas vem da venda directa dos conteúdos que os cidadãos compram directamente nas bancas ou através de subscrições ou assinaturas. Como sabemos, estamos numa era em que é muito fácil ter acesso gratuito aos conteúdos dos media através das redes sociais e os grupos de comunicação social vivem numa luta constante e difícil pela sobrevivência, tentando convencer os cidadãos a pagar pelos seus produtos.
(Declaração de interesses: uma parte importante dos meus rendimentos vem, precisamente, desse modelo de negócio tradicional quando escrevo este texto para o ECO, quando estou nas manhãs da Rádio Observador ou comento na TVI).
E se não queremos pagar pela informação e entretenimento mas também não queremos ser nós o produto que é vendido aos anunciantes – como fazem as redes sociais a que aderimos voluntariamente – a pergunta que deve ser feita é esta: então como é que queremos que a informação, os documentários ou a ficção sejam pagos?
A relação entre anunciantes e consumidores é, cada vez mais, um jogo do gato e do rato. E nessa caça permanente, nos últimos anos os consumidores ganharam vantagem sobre os anunciantes através de uma série de ferramentas que lhes permitem evitar os anúncios: “ad blockers” para a internet, navegação anónima, uso dos botões “skip ad” que as redes sociais tiveram que ir introduzindo para não perder audiência e visionamento de programas de televisão em diferido para poderem passar à frente os intervalos publicitários.
Nos Estados Unidos já houve, inclusivamente, disputas resolvidas em tribunal sobre este assunto. Empresas de media processaram fabricantes de boxes que desenvolveram sistemas que passam automaticamente à frente o conteúdo quando detectam publicidade.
Seja como for, uma coisa é certa: a publicidade irá sempre atrás das audiências e estará sempre onde estiverem as pessoas. E se as audiências estão, cada vez mais, nos programas que são vistos através das boxes depois de emitidos em directo, então esse é um novo segmento de negócio que os operadores e os grupos de media vão explorar.
O meu ponto sobre isto não é o facto de chegar a Portugal este novo segmento publicitário, que é uma evolução natural e faz parte do modelo de negócio tradicional. É sobre a forma como está a acontecer.
Este é um serviço que as operadoras de telecomunicações vão colocar no mercado com clientes e parceiros bem definidos. Os clientes são os anunciantes e o ecossistema da publicidade – agências criativas, produtoras, agências de meios. Os parceiros são os canais de televisão que, no limite, são os donos dos programas que as pessoas querem ver. As receitas vão ser cobradas aos primeiros e repartidas com os segundos.
E neste, como na generalidade dos sectores, a concorrência entre operadores é um factor de optimização da operação, de limitação de ganhos abusivos, de melhoria da qualidade, de diversificação da oferta e de benefício do consumidor.
E a menos que alguma coisa me esteja a escapar, não entendo como é que essa concorrência ocorre num novo negócio gerador de receitas, em que os operadores se uniram no desenvolvimento da plataforma, no calendário de ida para o mercado, no desenho do produto, no seu formato e funcionalidades.
Só falta que os preços a cobrar aos anunciantes e a repartir com os vários canais de televisão sejam também iguais para ter a cereja em cima do bolo.
Com uma oferta de canais muito semelhante e de preços de pacotes muito alinhados – ou de difícil comparação directa pelos consumidores – a concorrência neste sector faz-se em boa parte pelas diferentes experiências de navegação, fiabilidade do serviço, assistência e atendimento, velocidade das boxes e inovação tecnológica.
Se um novo serviço que mexe na relação com o consumidor final é formatado e lançado em harmoniosa colaboração entre os principais operadores e desenvolvido entre os três e a mesma consultora, estamos a matar um factor de diferenciação das ofertas e que podia ser gerador de concorrência – por exemplo, haverá clientes que preferem pagar um pouco mais pela sua subscrição mensal para não terem publicidade nas gravações automáticas, como acontece no serviço premium do Spotify?; haverá outros que preferem ser recompensados pelos anúncios que vêem?
Parece claro que nesta novidade, que é natural e inevitável no desenvolvimento do modelo de negócio dos media, ninguém quis ser o primeiro a avançar e a ser pioneiro na irritação dos consumidores. E para ninguém ficar com esse ónus foi mais conveniente avançarem todos ao mesmo tempo e da mesma forma, cercando os clientes. Assim, nenhum será tentado a mudar de operador por causa dos anúncios nas boxes. Gostava de saber se a Autoridade da Concorrência tem alguma coisa a dizer sobre isto. Mas uma coisa sei: não é certamente para esta uniformização de propostas de serviços que existe a economia de mercado.
Nota: Por opção própria, o autor não escreve segundo o novo acordo ortográfico.
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