As condições desenhadas pelo governo para acesso aos apoios excluem, logo à partida, mais de um quarto das empresas portuguesas dos sectores mais afectados. Esperar que funcione é esperar um milagre.
A semana que agora vai começar será de processamento e pagamento de salários de centenas de milhares de empresas a milhões de trabalhadores. É provável que muitas das que deixaram de ter clientes e receitas há duas semanas tenham já dificuldades em cumprir essas obrigações. E muitas mais terão daqui a um mês. Nessa altura estaremos quase com dois meses de quebra completa ou muito substancial dos negócios na generalidade das empresas do comércio, restauração e turismo.
E tal como o vírus, isto propaga-se de forma muito rápida. Além de terem dificuldade em pagar aos trabalhadores, sem receitas também não conseguirão pagar aos seus fornecedores, que por sua vez também têm trabalhadores e outros fornecedores… E aí já não será apenas o comércio a sofrer. No fim da linha há a agricultura e indústria, onde os produtos se produzem, fabricam ou processam. Desta vez nem sequer temos o mercado externo como escapatória, porque esse está tão ou mais bloqueado do que o mercado interno.
Ciente da razia, o Governo tem apresentado sucessivos pacotes de medidas para acorrer à maior urgência: apoiar a tesouraria das empresas, garantir que têm acesso a dinheiro para satisfazer estas necessidades mais básicas e urgentes.
Os montantes envolvidos nos sucessivos anúncios feitos pelos Governo mostram também uma evolução exponencial. Vejamos:
- Dia 4 de Março: António Costa anuncia no debate quinzenal no Parlamento uma linha de crédito de 100 milhões de euros;
- Dia 9 de Março: o ministro da Economia anuncia que medida duplica para 200 milhões de euros;
- Dia 16 de Março: a ministra do Trabalho aponta para medidas de 2000 milhões de euros por mês;
- Dia 18 de Março: ministros da Economia e das Finanças apresentam pacote de apoios e adiamento no pagamento de impostos que atingem 9.200 milhões de euros num horizonte previsto de três meses;
- Dia 20 de Março: António Costa anuncia um alargamento do pacote de apoios, nomeadamente a todo o comércio, mas não quantificou. Não deve ficar aquém dos 10 mil milhões de euros.
E este, anunciado na sexta-feira, não será certamente o último. O Governo anda, andamos todos, a correr atrás do prejuízo – nunca a expressão foi tão literal como agora.
A prioridade identificada pelo governo é a correcta: garantir que uma parte do dinheiro que deixou de entrar na caixa registadora pode entrar por outros mecanismos para evitar que as empresas despeçam e fiquem insolventes.
A condicionalidade dos apoios à manutenção dos postos de trabalho também é justa e faz todo o sentido, embora não se perceba bem como é que isso pode e vai ser controlado com a rapidez exigida.
Não se sabe se os montantes anunciados são ou não suficientes para a procura que vão ter. Ficam, pelo menos, aquém dos montantes proporcionais anunciados por outros países, que se situam acima dos 10% do PIB anual – em Portugal estamos a falar de cerca de 5%.
Mas isso não é o mais importante. Tal como passaram de 100 milhões para 10 mil milhões em duas semanas, os montantes envolvidos podem amanhã duplicar ou triplicar. Até porque, da forma como estão desenhados, o seu impacto orçamental será relativamente reduzido.
O que o governo está a fazer é dar a garantia de empréstimos bancários que serão devolvidos pelas empresas num prazo médio de quatro anos. Ou então, está a adiar prazos de pagamentos de impostos e contribuições. Não está a perdoar ou reduzir o seu pagamento, nada disso.
O custo destas medidas para as contas públicas será assim, para já, a execução das garantias dos empréstimos que as empresas não venham a honrar no futuro e o custo adicional do financiamento do Estado para fazer face à sua própria tesouraria. Não podemos, de todo, assumir que estes 10 mil milhões vão direitinhos ao défice.
Para já, a preocupação com o défice é outra e tem a ver com a forte redução de cobrança de impostos que se está já a verificar e com o aumento de custos sociais com subsídios de desemprego e outros, que vão certamente subir. Mas é para isso mesmo que servem os estabilizadores automáticos.
A questão central, neste momento, é se os apoios desenhados desta forma vão ser eficazes para os fins que se propõem atingir: garantir que as empresas não despedem e se mantêm formalmente em actividade. E isso levanta as maiores dúvidas.
Primeiro há a questão da urgência. O dinheiro devia começar a chegar às empresas daqui a uma semana e isso não vai acontecer porque a burocracia é sempre demasiada. Depois há as condições impostas para o acesso a estes apoios. Quais são? Genericamente são estas.
Destinam-se a quem?
- A microempresas, PME e a empresas maiorzinhas denominadas “small mid cap” (até 500 trabalhadores) e “mid cap” (até 3000 trabalhadores).
E o que exigem para a concessão do financiamento?
- Situação líquida positiva no último balanço aprovado ou num balanço intercalar aprovado até à data da operação.
- Contragarantias a 100% do montante do empréstimo.
- 26% do total das empresas portuguesas tem situação líquida negativa;
- a percentagem é maior nas microempresas, que são a base do tecido económico: 28%;
- por sectores, os que são afectados de forma mais imediata são também os que têm maior percentagem de empresas com situação líquida negativa: 28% no comércio e 27% nos outros serviços.
Por aqui percebemos que mais de um quarto das empresas estão automaticamente excluídas destes financiamentos. Pode perguntar-se se empresas com capitais próprios negativos deviam continuar em actividade. É uma boa discussão mas não será para agora. Até porque, nesta matéria, o Estado dá maus exemplos, como habitualmente. Se aplicássemos o mesmo critério, empresas como a TAP, a CP ou a Soflusa/Transtejo já estariam fechadas. Todas têm situações líquidas negativas há anos. São apenas três exemplos entre muitos que se encontram no sector empresarial do Estado ou em participadas públicas.
Depois, há os spreads cobrados nestes financiamentos, que podem chegar aos 3,278 pontos percentuais acima das taxas Euribor de referência. E pode haver também lugar ao pagamento de comissões de garantia e de gestão do financiamento.
No fundo, estas linhas assumem o perfil dos apoios regulares que estão a funcionar há décadas para as empresas, geridos essencialmente pelo IAPMEI. E não é certamente com fórmulas ordinárias que se lida com uma situação extraordinária.
Gostava de enganar-me, mas o António do café ou restaurante de bairro, a Beatriz do cabeleireiro, a Carla que tem duas ou três lojas em centros comerciais e o Diogo da empresa de animação turística mais depressa vão despedir quem puderem do que pedir empréstimos e assumir responsabilidades por anos para tentar lidar com uma situação que nada depende deles. Não é a capacidade de trabalho e de gestão deles que vai definir se isto corre bem ou mal.
Os sectores mais afectados são precisamente aqueles onde a precariedade do trabalho é maior. E perante a elevada incerteza sobre a viabilidade dos apoios e o tempo em que estarão fechados ou sem clientes, vão encaminhar quem puderem para o desemprego e para o recebimento do respectivo subsídio até que a tempestade passe. É a forma mais simples, directa, com reduzida burocracia e menos arriscada de acederem a um apoio público.
Já não será nada mau se daqui a três ou quatro meses, esperando que a epidemia esteja controlada e vencida até lá, estiverem em condições de retomar imediatamente a actividade, abrir as portas, receber clientes e contratar de novo aqueles que agora estão a despedir.
Até lá vai ser duro e feio. Já está a ser. E não são anúncios de linhas de milhões com fórmulas clássicas para tempos normais que vão resolver a maior crise económica nas nossas vidas.
Nota: O autor escreve ao abrigo do antigo acordo ortográfico.
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