As linhas de crédito são empréstimos ou subsídios?

Este é o momento para a banca se reconciliar com o País. Para tal, terá de fazer uso de práticas equilibradas, mas também terá de saber o que dela pretendem.

Na última semana, multiplicaram-se os ataques político-partidários ao sector bancário pelo mau funcionamento das linhas de crédito, com garantia do Estado, lançadas pelo Governo. Rui Rio abriu as hostilidades, vociferando contra a imoralidade de (eventuais) lucros na banca este ano e no próximo. Catarina Martins afinou pelo mesmo diapasão, estipulando que os bancos deveriam ter regras que não lhes permitissem lucrar com a crise. E até o Presidente da República sentiu necessidade de entrar na refrega, deixando escapar que o Governo teria carta branca para suspender o pagamento dos dividendos se os banqueiros não tivessem juízo. Mas, entre tanta acrimónia, ninguém fez a pergunta que se impunha: As linhas de crédito garantidas pelo Estado são mesmo para ser levadas como empréstimos ou serão antes subsídios disfarçados de empréstimos?

A introdução de linhas de crédito garantidas pelos Estados tem sido a norma nesta crise, mas o desenho tem variado de país para país. Em comum, está a utilização instrumental dos bancos comerciais para fazer chegar o dinheiro às empresas. Em Portugal, o modelo envolve garantia pública de 80% a 90% dos financiamentos concedidos, reduzindo, sem eliminar, o risco de incumprimento das empresas, e também spreads máximos por linha de financiamento, limitando, sem impor, o custo total dos empréstimos.

Por cá, temos ainda o compromisso do não-despedimento, a cumprir pelas empresas devedoras, sendo que a restrição se aplicará apenas às novas linhas por sector de actividade, de 3 mil milhões de euros, mas não à linha que já existia e que foi entretanto reforçada para 400 milhões de euros (a Capitalizar 2018 – COVID-19). Esta última está quase esgotada, ao contrário das novas linhas que estão ainda muito aquém do pretendido.

O modelo português é semelhante aos introduzidos na Alemanha e no Reino Unido. Mas há outros países que estão a fazer de forma diferente. Na Suíça, a abordagem consiste em duas linhas garantidas pelo Estado helvético, consoante a dimensão das empresas, para financiamento de despesas operacionais até 10% do volume anual de negócios, sujeitas a plafonds máximos. A primeira é dirigida a empresas de menor dimensão, encontrando-se garantida pelo Estado a 100%; nesta linha, os bancos cobram uma taxa de juro igual a zero. A segunda, para empresas de maior dimensão, está garantida pelo Estado em 85%, parte sobre a qual é cobrada uma taxa de juro de 0,5%, sendo que nos 15% não garantidos pelo Estado os bancos aplicam uma taxa de juro de mercado. A Suíça tem sido elogiada pela eficiência da sua abordagem e o dinheiro está a chegar rapidamente às empresas.

Nos Estados Unidos, pelo contrário, reina a confusão e a morosidade. Inicialmente, foi estabelecido um modelo no qual os bancos emprestariam às PME dinheiro proveniente de uma agência governamental e em que as dívidas poderiam ser perdoadas em função da utilização que as PME fizessem do dinheiro. Todavia, depois da recusa de alguns bancos em participar num esquema propício à fraude, a Reserva Federal teve de ir em socorro do Congresso, anunciando um programa de aquisição dos empréstimos em causa. Prevê-se agora que o financiamento estatal será realizado por intermédio dos bancos comerciais, mas que estes rapidamente despacharão os créditos para o balanço da Reserva Federal.

Está ainda previsto o resgate público de companhias privadas de maior dimensão, a começar no sector da aviação. A monetização do apoio estatal à economia norte-americana é certa, mas representa uma abordagem que não é exactamente transponível para a Europa do euro.

Regressando a Portugal, o Governo está a meio da ponte. Numa primeira fase, o ministro da Economia lançou as linhas de crédito em formato de empréstimo. Mas, em face da pressão das associações empresariais, o executivo vai agora sendo empurrado para outras ideias. A própria Comissão Europeia, tendo autorizado ajudas de Estado até um máximo de 13 mil milhões de euros (cerca de 6% do PIB), veio também dar alento àqueles que defendem a entrada do Estado nas empresas, através de participação directa no capital ou de empréstimos convertíveis em capital, ou até a atribuição pelo Estado de subsídios a fundo perdido às empresas. Seria uma espécie de modelo norte-americano, mas sem a Reserva Federal. Com a “Europa” tão longe restariam os contribuintes nacionais, ou, no caso de se perder o controlo à conta, o FMI.

A política orçamental deve ser utilizada nesta crise, mas a entrada do Estado nas empresas ou a atribuição indiscriminada e não-limitada de subsídios a fundo perdido parecem-me errados. Ao contrário do que sucede com o financiamento temporário dos salários por parte do Estado, que eu aqui defendi desde a primeira hora, e até numa modalidade mais generosa do que aquela que acabou por ser adoptada – que teria permitido evitar as moratórias para pagamento de rendas, prestações bancárias, bens e serviços diversos que entretanto foram instituídas pelo Governo e que, estas sim, vão revelar-se muito danosas à economia –, o resgate transversal da economia portuguesa seria mais do que temporário e seria contraproducente. Por um lado, porque não haveria critério para decidir quais as empresas merecedoras de intervenção pública. Por outro, porque, numa economia que vai mudar, a entrada do Estado trataria de anquilosar o tecido empresarial.

Nesta matéria, o modelo suíço parece-me equilibrado. Restringe a intervenção do Estado à salvaguarda do fluxo de crédito à economia, desonerando os bancos nos casos em que a fronteira entre empréstimos e subvenções não é clara, como sucederá nas PME, mas evitando as nacionalizações.

Ao mesmo tempo, introduz a partilha de risco e a liberdade contratual nos restantes casos, recuperando alguma disciplina de mercado em tempo de emergência financeira. Porque, sem a muleta do Estado, o custo de financiamento no novo normal pós COVID19 vai aumentar. Sobre isto, o maior operador mundial de cruzeiros marítimos, a Carnival, acaba de emitir dívida a três anos à taxa de juro de 11,5% por ano. Por fim, vertendo ainda outras lições internacionais para o caso português, a exemplo do que tem sucedido no Reino Unido, também em Portugal os bancos deveriam estar limitados na requisição de avales pessoais nas linhas garantidas pelo Estado. É um princípio que defendo desde há muito, sempre que falamos de empresas de responsabilidade limitada (ao capital das mesmas).

A banca é um sector mal-amado em Portugal, e justamente, pelos erros cometidos no passado e pelo uso abusivo de certas práticas bancárias, como a exigência desproporcionada de avales pessoais ou a subida exponencial das comissões bancárias. Assim, e ainda que as suas práticas tenham sido permitidas pelos sucessivos erros de supervisão, incluindo aqui a concentração bancária que hoje se lhe observa, e que fomenta a cristalização de certas práticas, o sector continua mal visto pela população.

Ora, numa altura em que existe a tentação política de legitimar o sequestro da iniciativa privada, na sequência dos poderes absolutos consagrados no segundo decreto presidencial do estado de emergência, não há nada politicamente mais eficaz do que a ameaça da força sobre um sector mal-amado. Mas este não é o momento para demonizar os bancos; este é o momento para a banca se reconciliar com o País. Para tal, terá de fazer uso de práticas equilibradas, mas também terá de saber o que dela pretendem.

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