Avenidas de Abril

A Sociedade Civil devia repensar a herança de Abril e equacionar o lugar daquela madrugada no nosso imaginário colectivo, na nossa identidade democrática, no nosso destino comum.

A democracia não tem dono e o 25 de Abril é de quem o apanhar. Mentira. A democracia pertence à Esquerda e o 25 de Abril é uma eterna patente dos filhos da madrugada. Existe uma Comissão que se multiplica em Comités divididos em Células para apreciar as credenciais revolucionárias dos que pretendem participar no Desfile da Liberdade. Se qualquer português pretende participar tem de ter um Certificado Antifascista que o habilita a descer a Avenida mais burguesa de Portugal. O mesmo Certificado dá direito a um vale desconto para uma incursão no Reino Capitalista do consumo em plena Avenida da Liberdade – Liberdade para ostentar a “riqueza imoral” das lojas de luxo que fazem guarda de honra ao Passeio Público.

O espectáculo é o choque de dois Mundos. Revolucionários com todas as provas dadas e outros “idiotas úteis” desfilam em frente às montras do luxo que a Revolução quer destruir. O brilho das montras devolve a imagem luminosa dos estandartes e bandeiras de todas as causas perdidas, e projecta ao infinito a celebração ritual de uma Revolução que para muitos é a última Religião. O desfile do 25 de Abril é a derradeira barricada cheia com o entusiasmo gasto daqueles que apenas reconhecem camaradas e irmãos e desprezam compatriotas e cidadãos. O desfile do 25 de Abril é a descrição convencional de uma realidade tão limitada na sua aplicação que, de forma trágica, se transforma numa ficção.

Há alguns anos conheci um repórter que tinha estado em 27 Revoluções dispersas por todo o Mundo. Alguém que conheceu a Lisboa distante de 1974. O repórter era um conservador por natureza e um revolucionário por vocação e dizia que a Revolução é uma coisa de rumores, ritmos interrompidos, conspirações fantasiosas, um modo extraordinário, imprevisível e incompreensível de estabelecer um novo normativo nas relações humanas. Quando a Revolução se transforma numa Instituição, a recordação e a nostalgia invadem os dias dos Revolucionários Reais e dos Revolucionários Imaginários, fazendo com que o tempo pare naquela madrugada, o dia inicial inteiro e limpo guardado para sempre como um insecto preso no âmbar. O desfile do 25 de Abril é o insecto no fragmento cristalino, a afirmação saudosista solidificada pelo medo do futuro, um filme sem começo e sem fim parado num qualquer fotograma em que a lenda de um Capitão domina a Cidade para a Eternidade.

Nos dias de hoje é um Coronel na Reserva que controla os portões da Catedral. Também eram os Coronéis que controlavam o lápis azul da censura. Muda-se o Mundo, mas não se Muda a Vontade, e nosso Coronel escolhe quem escorrega na Avenida e quem deve ter vergonha para ficar em casa, para ficar calado, para se tornar invisível, porque não tem um selo e dois carimbos a certificar o antifascismo. Para o Coronel, ser Liberal é ser fantoche do fascismo, colaborador das forças reaccionárias, instrumento do capital, traidor ao Povo Português, tudo decidido em Processo Sumário, julgado em Assembleia Revolucionária, decidido por voto com a mão no ar. Adorava ver o Coronel com uma pochette da Louis Vuitton cheia de despachos do Conselho da Revolução e de retratos de Abril.

A crise do nascimento do Portugal Democrático é um livro superlativo de uma História fulgurante que contém muitas visões reais e surreais que se tornam a marca de uma identidade democrática. O livro e a História estão abertos ao contributo de todas as gerações, aberto aos Portugueses de Esquerda e aos Portuguesas de Direita, porque todos somos filhos daquele momento irrepetível e único. Ninguém é dono de Portugal, ninguém é dono de Abril, pela razão óbvia de que sem Abril esta crónica não existia, pela simples razão de que sem Abril o artigo não teria a cumplicidade do seu olhar como leitor. Estamos unidos pelas palavras, mesmo quando as opiniões nos separam. Mas pertencemos ao mesmo Portugal Democrático.

Os guardiões oficiais da ortodoxia de Abril estão a transformar o 25 de Abril numa celebração caquética de um velho novo 28 de Maio e o renovado princípio da Revolução Nacional. A nova geração de Portugueses, de todos os quadrantes políticos, deve observar o 25 de Abril com a distância crítica em que a vitória dos factos sobre a incerteza e a possibilidade de futuros alternativos continua aberta a novas perspectivas e a outras tantas interpretações. Ninguém se deve contentar com a mitologia ortodoxa das metáforas ditas “progressistas”, ninguém se deve resignar a um rótulo político marcado pela ignorância e pelo oportunismo. Sem revisionismo ou elogios em causa própria, a Sociedade Civil devia repensar a herança de Abril e com ela e sem complexos equacionar o lugar daquela madrugada no nosso imaginário colectivo, na nossa identidade democrática, no nosso destino comum. Na complexidade do nosso século, Abril somos todos nós.

A narrativa de Abril está cativa de uma flor de cravo que tanto se parece com o vírus da moda. O cravo e o vírus causam doença, com a diferença de que para o vírus existe vacina, mas para o cravo existem apenas as muitas letras do Fado Cravo. A lógica de Abril implica uma nova descrição do Mundo, oferecendo os novos mapas dos lugares que haveremos de construir.

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