Babados com a China
Sou apologista de que Portugal se posicione como parceiro estratégico da China, mas isto distingue-se profundamente de branquear o regime totalitário.
Há umas semanas, tinha Bolsonaro acabado de quase dispensar a segunda volta das eleições presidenciais no Brasil, conversava com o meu amigo Diogo Nogueira Leite e dizia-me ele que é possível que este ressurgimento de regimes anti-liberais seja apenas uma reversão para a média da História da Humanidade, onde a Democracia tem sido episódica. A hipótese da repetição da História, apesar de assustadora, fez sentido.
E voltou a fazer sentido quando, há uns dias, durante um jantar-conferência, se aflorou a questão do papel da China no mundo. À mesa, alguém mencionou a baixa rentabilidade de alguns dos investimentos estrangeiros chineses e usou esse facto como prova da falta de ambições hegemónicas da China. Pois a mim pareceu-me que esse argumento favorece a ideia de que há nessas aquisições de capital um interesse que não é somente financeiro, mas tem muito de geopolítico ‒ sendo os investimentos em África um bom exemplo disso.
Pareceu-me também que o Ocidente insiste em tomar-se como referência e analisa o mundo à luz dos seus próprios valores. Creio que estava convencido de que, uma vez inserida no comércio internacional, a China rapidamente arranjaria os seus Rousseau e Voltaire e faria em poucos anos as revoluções liberais que Europa e Estados Unidos conheceram no século XVIII. Mas ficou surpreendido com o facto de a China conseguir ser simultaneamente capitalista e comunista.
Não confundamos, contudo, esta minha crítica com o apelo que ouvi a Daniel Traça para que olhemos “com abertura” o modelo político chinês. Confesso que aqui a surpreendida fui eu, porque nunca tinha pensado vir a assistir a condescendência com uma ditadura vinda do director da Faculdade de Economia da Universidade Nova de Lisboa. Fui verdadeiramente apanhada de surpresa com a sua intervenção na conferência “Road to China: Portugal-China, uma relação com futuro”. Daniel Traça afirmou que há um “contrato claro entre o partido que está no poder e o povo de algum controlo como contrapartida de um crescimento económico muito acelerado”. Isto a respeito de um regime de partido único, onde não existem eleições.
Que o PCP seja complacente com democracias musculadas, desde que esse músculo seja em nome da luta de classes, não se estranha. Mas, pelos vistos, liberais e gente defensora da Democracia também conseguem distinguir boas e más ditaduras: se se estiver a proporcionar crescimento económico, parece que é razoável suprimir umas liberdadezinhas. Afinal de contas, quando uma pessoa tem comida na boca, a liberdade de expressão não interessa muito, não é? E, então, se se estiver a jogar o jogo do mercado, é que não conta mesmo nada, rapidamente se esquece o comunismo.
Sim, eu sei que a China é a maior economia do mundo, se a avaliação for feita em função do PIB em paridade do poder de compra ou da população, o que faz dela o maior mercado mundial. E que está em segundo lugar se o critério for o do PIB nominal em dólares. E percebo que as suas taxas de crescimento económico acima dos 6% nos deixem a salivar ou que admiremos a sua 28.ª posição no índice de competitividade do Fórum Económico Mundial. Compreendo a importância do investimento chinês na saúde, nos seguros, na banca ou na energia.
Entendo que estamos a falar de um relevante parceiro comercial, destino de 1,5% das nossas exportações de bens (o que a torna o nosso 11º cliente) e sexto fornecedor internacional de bens. Não ignoro que é a China o principal mercado emissor de turistas, sector fundamental na economia portuguesa.
Sou, por isso, apologista de que Portugal se posicione como parceiro estratégico da China, numa lógica ‒ aí concordo com Daniel Traça ‒ de multilateralismo, procurando usar os laços históricos que tem para ser parte activa no processo de afirmação chinesa no triângulo Europa-África-América, influenciando-o. Mas isto distingue-se profundamente de branquear o regime totalitário da República Popular da China; de elogiar um modelo de partido único, transformando-o num compromisso com o povo, como se a liberdade fosse moeda de troca pelo crescimento; de fingir que não existem presos políticos e outros atropelos vários aos direitos humanos, de que a política do filho único será o caso mais divulgado, (com os decorrentes abortos forçados e outras consequências que ainda hoje em dia continuam a vitimizar as mulheres.
Aliás, é sobretudo por concordar com Popper quando, no seu ‘A Sociedade Aberta e Os Seus Inimigos’, afirma que “talvez a mais poderosa causa do colapso da sociedade fechada tenha sido o desenvolvimento do comércio e das comunicações por mar. […] o comércio, a iniciativa comercial, parece ser das poucas formas sob as quais a iniciativa e a independência individual se podem afirmar, mesmo numa sociedade em que o tribalismo ainda prevalece”, que tenho esta posição.
Mas a visita, na semana passada, de Xi Jinping abala este meu optimismo. É que a ideia era a de que ela contribuísse para abrir a sociedade chinesa, não dar tiques totalitários à portuguesa. E se fico muito contente por o Ritz em Lisboa ter tido uma taxa de ocupação de 100%, fico ainda mais chocada que se tenha aceitado sujeitar os moradores da zona a uma clara violação da sua privacidade, querendo, por exemplo, conhecer o nome das suas visitas durante a semana.
Há uns dias, uma notícia do The Guardian fazia-nos saber que, em Londres, a China Global Television Network está a recrutar jornalistas para a sua estratégia de influenciar favoravelmente a opinião pública relativa à China, numa campanha mundial de marketing. Para Portugal podem poupar essa despesa: aparentemente, já estamos babados com eles.
Nota: A autora escreve segundo a ortografia anterior ao acordo de 1990.
Disclaimer: As opiniões expressas neste artigo são pessoais e vinculam apenas e somente a sua autora.
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