Celeridade, precipitação ou abuso de poder?

A decisão da juíza do Marquês de nomear de imediato um oficioso para Sócrates, minutos após a renúncia do seu advogado, reaviva o debate sobre o respeito pelos direitos fundamentais da defesa.

A decisão da juíza do processo Operação Marquês de nomear de imediato um advogado oficioso para José Sócrates, minutos após a renúncia do seu advogado, Pedro Delille, reaviva o debate sobre o respeito pelos direitos fundamentais da defesa. Mais do que um episódio pontual, esta deliberação levanta questões de fundo sobre o equilíbrio entre a eficácia da justiça e as garantias de um julgamento equitativo, sobretudo num caso que tem como principal arguido José Sócrates, que passa tanto tempo a criticar os juízes e jornalistas, como a defender-se perante as acusações de que é alvo.

O despacho que determinou a nomeação imediata de um defensor oficioso foi justificado com base na necessidade de não atrasar o processo. À primeira vista, esta decisão pode parecer um gesto de prudência, traduzindo a preocupação da magistrada em evitar novos adiamentos num processo que se arrasta há anos e cuja morosidade tem contribuído para o descrédito da justiça junto da opinião pública. Todavia, uma leitura mais atenta revela que a celeridade, quando dissociada do respeito pelas garantias de defesa, pode transformar-se em precipitação – e, pior ainda, em fragilização do próprio Estado de Direito.

A Constituição da República Portuguesa consagra de forma inequívoca o direito a uma defesa efetiva, incluindo o direito do arguido a escolher o seu advogado. Essa prerrogativa não é um simples formalismo: representa a base da confiança entre o cidadão e o sistema judicial. Quando um tribunal impõe, sem margem para reorganização, um advogado oficioso a um arguido num processo de tamanha complexidade, corre-se o risco de desvirtuar o sentido dessa garantia. A substituição imediata do defensor pode ser interpretada como uma tentativa de forçar a continuidade processual em detrimento da preparação adequada da defesa, um valor que deve prevalecer em qualquer sociedade que se proclame democrática e garantista.

É compreensível que a juíza procure evitar novos incidentes dilatórios. O caso Sócrates tem sido paradigmático pela sucessão de recursos, nulidades e impugnações, e pela constante batalha entre a defesa e o Ministério Público. Contudo, a celeridade não pode ser um fim em si mesma. O sistema judicial deve resistir à tentação de confundir eficiência com pressa. Uma decisão judicial que, sob o pretexto da eficácia, fragiliza direitos constitucionais, não contribui para a credibilidade da justiça; pelo contrário, alimenta a perceção de arbitrariedade e reforça a ideia de que o sistema procura “dar um exemplo” através do arguido, mais do que alcançar a verdade material dos factos.

A nomeação imediata de um advogado oficioso, sem tempo razoável para o novo mandatário estudar os autos e preparar a sua atuação, cria ainda um problema prático de difícil solução. O processo Operação Marquês é de uma complexidade extraordinária, envolvendo milhares de páginas, dezenas de arguidos, múltiplos crimes e uma teia densa de conexões políticas e financeiras. A entrada súbita de um advogado que não acompanhou a fase instrutória levanta sérias dúvidas quanto à sua capacidade de representar eficazmente o arguido num prazo útil. Mais ainda quando o advogado em causa pede um prazo de 48 horas para se preparar (!) e nem isso foi aceite por Susana Seca.

Há ainda uma dimensão simbólica que não pode ser ignorada. Ao agir com aparente rigidez, a magistrada transmite a imagem de um poder judicial disposto a impor a sua autoridade a todo o custo, mesmo que isso implique um certo sacrifício das garantias individuais. Num contexto em que o caso Sócrates se tornou uma arena de disputa pública entre justiça e política, cada decisão é inevitavelmente interpretada à luz desse confronto. O gesto da juíza, ainda que juridicamente defensável, pode ser lido politicamente como um sinal de intransigência, ou mesmo de impaciência, perante um arguido que representa, para muitos, o rosto de uma era de corrupção e impunidade. Tal leitura, mesmo que injusta, prejudica a imagem de imparcialidade que o poder judicial deve zelar por preservar.

Por outro lado, a nomeação de um advogado oficioso sem consulta prévia ou sem aguardar a eventual designação de um novo mandatário escolhido pelo arguido pode configurar uma ingerência indevida na autonomia da defesa. A justiça deve assegurar que o arguido tenha tempo razoável para encontrar um representante de sua confiança, e apenas na ausência dessa escolha deve proceder à nomeação oficiosa. A inversão dessa ordem natural — primeiro a imposição, depois a eventual substituição — fragiliza o princípio da igualdade de armas e abre espaço para contestação futura da validade de atos processuais praticados nesse contexto.

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