China, da imitação à inovação e à afirmação do seu soft power

  • Paulo Monteiro Rosa
  • 3 Outubro 2025

China ainda está na fase da imitação, mas caminha para a criação de algo tecnologicamente revolucionário. O próximo cisne negro pode não estar na Austrália, mas a cerca de 5 mil quilómetros a norte.

Desde sempre, as sociedades que se tornam hegemónicas, na sua ascensão, imitam ou utilizam a ciência de outras civilizações que muitas vezes já se encontram em decadência. Esse declínio resulta de vários fatores, mas sobretudo do implacável ciclo das civilizações. Homens fortes criam tempos fáceis. Tempos fáceis criam sociedades prósperas, onde imperam o conhecimento e a liberdade. No entanto, com o passar do tempo as facilidades enfraquecem a vitalidade das pessoas, porque a abundância instala o conforto. Numa alusão à pirâmide de Maslow, a maioria da população engrossa o topo da pirâmide, invertendo-a, já que as necessidades da base e do meio estão satisfeitas. A abundância acaba por gerar líderes fracos e estes, por sua vez, conduzem a tempos difíceis, durante os quais a necessidade volta a aguçar o engenho e renascem novamente homens fortes.

Muito à semelhança desta inversão das sociedades, quando os tempos se tornam fáceis e acabam por gerar líderes fracos, a experiência do etólogo John B. Calhoun, nos anos 1960 e 1970, conhecida como ‘Universo 25’, evidenciou também o colapso de comunidades, neste caso de ratos. Calhoun criou colónias com comida, água e abrigo ilimitados, sem predadores. Inicialmente, a população cresceu rapidamente, com reprodução elevada, o comportamento normal destes animais. Porém, à medida que a população aumentava e a abundância se mantinha, surgiram comportamentos anómalos como agressividade, isolamento, apatia e abandono da reprodução. Mesmo com recursos abundantes, a natalidade caiu até à extinção da colónia. Calhoun chamou a este fenómeno ‘morte comportamental’ e concluiu que a abundância e a superlotação podem levar ao colapso social.

A história da Península Ibérica ilustra bem o ciclo. Em 711 tropas muçulmanas do Norte de África conquistaram quase toda a região. Os cristãos refugiaram-se nas Astúrias e em 722 venceram a Batalha de Covadonga. Iniciou-se assim a Reconquista [Cristã] que se prolongou durante séculos. Portugal nasceu deste processo, afirmado como reino em 1139 por Afonso Henriques e reconhecido em 1143. Na sua expansão Portugal aprendeu muito com o mundo islâmico, desde a matemática à cartografia, incluindo o astrolábio e a astronomia desenvolvida na Casa da Sabedoria de Bagdade fundada no século IX. Estes conhecimentos foram fundamentais e serviram de alicerces ao lançamento da expansão marítima portuguesa.

Enquanto a Europa medieval vivia no obscurantismo, o mundo árabe florescia no campo científico, sendo Bagdade um importante centro de inovação e saber, impulsionando avanços em medicina, astronomia e filosofia. Porém, a partir do século XI, a ascensão dos teólogos ortodoxos, uma eventual consequência de querelas internas alimentadas pela relativa abundância e facilidades e má gestão das mesmas, começou a limitar a liberdade intelectual, constituindo talvez uma das razões centrais para o declínio do mundo árabe. Esse foi, contudo, apenas um entre vários fatores, aos quais se somaram a fragmentação política, invasões externas e, mais tarde, a perda do monopólio comercial, ditada inicialmente pelos portugueses com a abertura do caminho marítimo para a Índia em 1498. Já com o Renascimento, a Europa inverteu posições e, apoiada pela abundância do Novo Mundo e pelas rotas oceânicas, lançou as bases da Revolução Científica e Industrial. Paradoxalmente, o legado científico árabe ajudou a Europa a superar o mundo árabe, abrindo caminho para o Renascimento, a expansão marítima e, mais tarde, a Revolução Científica.

A hegemonia mundial passou de Portugal para Espanha, Holanda, França e finalmente para a Grã-Bretanha, onde nasceu a Revolução Industrial em meados do século XVIII. O marco decisivo foi o aperfeiçoamento da máquina a vapor por James Watt em 1769, que permitiu mecanizar a produção e transformar setores como o têxtil, a siderurgia e os transportes. A Revolução espalhou-se pela Europa, primeiro para a Bélgica e França e depois para a Alemanha, onde o conhecimento floresceu na física, na matemática e nas ciências aplicadas. Mas ao mesmo tempo chegou também aos EUA, em parte porque estes tinham sido colónia britânica e funcionaram como uma expansão natural da pequena ilha britânica para um espaço muito maior e mais rico em recursos. No início, os americanos limitaram-se a copiar a tecnologia europeia, sobretudo a máquina a vapor, importando técnicas, máquinas e saberes, mas rapidamente começaram a criar invenções próprias. Eli Whitney revolucionou a agricultura com a sua máquina de descaroçar algodão em 1793, Samuel Colt patenteou o revólver de tambor em 1836 e Samuel Morse desenvolveu o telégrafo elétrico e o famoso código em 1837, mudando para sempre a comunicação. Assim, já em 1832, quando Alexis de Tocqueville visitou os EUA e descreveu uma sociedade marcada pela liberdade e pelo espírito associativo, fazia sentido falar num “excecionalismo americano”, sendo uma combinação de conhecimento, liberdade e espaço de expansão que transformava o país numa extensão da Europa, mas com uma energia criativa própria que cedo o colocaria na dianteira mundial.

Por exemplo, o primeiro automóvel a combustão foi inventado na Alemanha em 1885 por Karl Benz, mas a produção em série só começou mais tarde, mais precisamente nos EUA, em 1908, com Henry Ford e o seu Model T, cimentando a hegemonia global americana a partir dessa data. Assim, enquanto a Europa foi pioneira na invenção, os EUA destacaram-se pela capacidade de industrializar e escalar a produção, tornando-se a principal potência automóvel do século XX.

A história económica mostra que a imitação pode ser um primeiro passo natural antes da afirmação da liderança. No início do século XIX os EUA beberam muito da tradição científica e industrial europeia, em particular da Alemanha e do Reino Unido. Mas rapidamente transformaram essa herança: com a introdução da produção em massa e a inovação organizacional de Henry Ford, passaram de seguidores a líderes, assumindo a hegemonia económica ao longo do século XX.

O Japão seguiu uma trajetória semelhante no pós-guerra. Partiu da imitação e adaptação de tecnologias ocidentais, mas acrescentou disciplina, melhoria contínua e inovação incremental, a chamada filosofia kaizen. Nas décadas de 1970 e 1980 tornou-se referência mundial em setores como a eletrónica e o automóvel, sinónimo de qualidade e eficiência. Ainda assim, nessa época persistia o mito de que o Japão apenas copiava o Ocidente e de que os seus produtos careciam de qualidade, um preconceito comparável ao que hoje se aplica à China. Contudo, também neste caso a perceção está a mudar.

Assim, hoje é a China que percorre este caminho. Sob a liderança de Deng Xiaoping abriu-se ao mundo em 1978 e aderiu à OMC em 2001. Nas décadas de 1980 e 1990 destacou-se sobretudo pela produção barata e pela cópia de produtos estrangeiros, mas evoluiu rapidamente. Primeiro adaptou, depois começou a melhorar e agora investe massivamente em investigação e desenvolvimento em áreas estratégicas como a inteligência artificial, os semicondutores e as tecnologias verdes. Copiou smartphones, aviões, eletrodomésticos e plataformas digitais e em 2025 lançou o DeepSeek, rival do ChatGPT, mais uma imitação. Ainda não criou nada totalmente disruptivo, revolucionário, mas prepara-se para isso. Procura, assim, deixar para trás a fase da imitação, escalar a inovação própria e, tal como fizeram antes os EUA, alcançar a liderança e a hegemonia global.

E com que vantagens conta a China para alcançar esse objetivo? Há, por exemplo, uma diferença crucial e clara em relação à Rússia do século XX, que chegou a ombrear com os EUA, mas implodiu no final dos anos 1980. Apesar de superpotência económica e militar, que apostou no conhecimento após a revolução de 1917, retirando da ignorância um povo maioritariamente analfabeto até essa data, a União Soviética negligenciou a liberdade e sufocou a sociedade. A China, pelo contrário, abriu-se ao mercado e, mesmo mantendo forte controlo político e social, permite uma relativa liberdade económica e mobilidade social. Hoje, os cidadãos podem viajar, estudar e empreender. O turismo internacional confirma essa abertura, com cada vez mais chineses a visitar ou a trabalhar em Portugal e, igualmente, em todo o mundo.

Ainda assim, a memória de Tiananmen, em 1989, lembra que as aspirações de maior liberdade podem ressurgir. O reforço do controlo político após esse episódio mostra os limites da abertura, mas nada impede que, no futuro, mudanças graduais — ou até novas tensões sociais — possam reabrir esse caminho.

A par disso, a China incentiva e premeia o conhecimento, o estudo e o empreendedorismo. Tenta de alguma forma criar o seu próprio “sonho chinês”, não apenas como motor interno de mobilidade social, mas também como instrumento de soft power, projetando para o exterior uma imagem de vitalidade, modernidade e progresso. O exemplo de Jack Ma, fundador da Alibaba e antigo professor de inglês de origem humilde, ilustra bem esse “elevador social” chinês, ainda assim condicionado e, muitas vezes, dependente da proximidade ao Partido Comunista Chinês.

Esse esforço reflete-se no Global Soft Power Index 2025. A China ocupa já o 2º lugar mundial, apenas atrás dos EUA, e pela primeira vez ultrapassou o Reino Unido. Esta ascensão mostra como, para além do poder económico — de “fábrica do mundo” —, Pequim tem reforçado a sua influência cultural e diplomática. Investimentos em universidades, na difusão da língua e cultura chinesa através dos Institutos Confúcio, em megaeventos como os Jogos Olímpicos de Pequim e na Iniciativa Belt and Road (a Nova Rota da Seda, que liga a China à Europa, Ásia e África através de grandes infraestruturas terrestres e marítimas) contribuem para consolidar a sua posição. Em menos de duas décadas, a China deixou de ser associada sobretudo a um país de “cópias baratas” para ser encarada como uma promissora potência cultural, tecnológica e diplomática em ascensão.

Embora ainda esteja na fase da imitação, a China tem já todos os ingredientes para surpreender o mundo. Todos os anos forma cerca de cinco milhões de jovens em ciências, tecnologias, engenharias e matemática (STEM), uma escala sem paralelo, dez vezes superior à dos EUA, que garante massa crítica para a inovação. A sua população de quase mil e quinhentos milhões assegura escala e a criação de riqueza vai-se tornando gradualmente transversal. Ao contrário da Índia, onde as castas podem limitar a mobilidade social, a China reúne melhores condições para assumir a hegemonia global. Ao mesmo tempo, reforça o seu soft power, projetando a cultura, a ciência e a imagem de um “sonho chinês”. Tal como sucedeu com os EUA na sua fase inicial, a China poderá passar de simples imitadora a cabal criadora e inovadora. Assim, o próximo cisne negro pode muito bem não estar na Austrália, mas sim cinco mil quilómetros mais a norte.

  • Paulo Monteiro Rosa
  • Economista Sénior, Banco Carregosa

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