Corrupções e Coerência

  • José M. Damião da Cunha
  • 21 Novembro 2023

Se a gravidade das molduras representam um sinal da relevância institucional do agente (ou da relevância da atividade), então parece que o futebol está acima do Estado.

O combate à corrupção no Estado ou no setor público tem merecido particular atenção, não só no âmbito jurídico-legal mas também político-mediático. Neste quadro, a questão de saber qual o agente público que, em tese, deve ser mais “punido”, caso venha a incorrer na prática de um crime de corrupção (p. ex., a denominada corrupção passiva), imediatamente nos remete para o elenco dos mais altos cargos do Estado ou da Administração Pública. Em parte, tal inferência será verdadeira, na medida em que o direito penal português prevê uma incriminação específica para os denominados “titulares de cargos políticos” (pena de prisão de dois a oito ou pena de prisão de dois a cinco anos, consoante a corrupção passiva seja para ato ilícito ou para ato lícito – Lei nº 34/87; igual medida está prevista para os titulares de altos cargos públicos – cf. artigo 374º-A, nºs 5 ss do CP); incriminação com moldura penal mais agravada apenas no limite mínimo (o mesmo sucede no enriquecimento indevido de vantagem), em relação à prevista para o “mero funcionário” que se deixe corromper – para este o limite mínimo é pena de prisão de 1 ano, independentemente da qualidade da corrupção passiva e de um mês no recebimento indevido de vantagem. Assim, p. ex., o Presidente da República e os membros do Governo estão incluídos neste grupo de agentes públicos suscetíveis de verem a sua pena “ligeiramente” mais agravada. Acrescem, todavia, circunstâncias agravantes, para todos os agentes públicos, em função do valor do suborno (valor elevado ou consideravelmente elevado, implicando respetivamente uma agravação de 1/4 ou de 1/3 na moldura legal da pena; cf. artigo 374º-A, nº 1 a 4 do CP e 19º-A da L. 34/87). Tendo em conta as molduras previstas, não seria de todo irrazoável entender que a sua amplitude já seria suficiente para o julgador ponderar, em concreto, a posição do agente público como agravante no âmbito da determinação da pena a aplicar (isto é, tendo em conta a relevância pública das suas funções). No quadro dos crimes cometidos no exercício de funções do Estado está cominada moldura mais grave num particular crime de corrupção previsto no Código de Justiça Militar (artigo 36º da L : a corrupção para ato ilícito, que cause perigo para a segurança – externa – nacional; moldura de prisão de dois a dez anos; todavia, neste caso, não estão previstas outras agravações). Não se discute a maior (ou menor) gravidade deste crime, mas, sendo crime restrito a militares e “equiparados”, omite-se aqueles que são politicamente responsáveis por esta área da defesa nacional.

Simplesmente, a incriminação por corrupção estendeu-se a outras áreas de atividade, que não a do setor público-estadual; ao setor privado – Lei nº 20/2008 – e, até há mais tempo, à atividade desportiva (Lei nº 50/2007). Neste último diploma, encontrámos várias tipicidades “derivadas da corrupção do setor público” (i. e, na descrição das condutas proibidas) embora predeterminadas à alteração, falsificação ou à influência indevida nos resultados desportivos. Prevê-se, na corrupção destinada à alteração ou falsificação de resultado desportivo (logo, conduta equiparável à “corrupção para ato ilícito”, a única prevista neste Diploma), uma moldura legal de um a oito anos de prisão para o “agente desportivo” que se deixar corromper (sobre a noção de agente desportivo, cf. o artigo 1º desta Lei). No entanto, esta mesma Lei apresenta a singularidade de, para determinados “agentes desportivos” (no caso: o empresário, o árbitro, o dirigente ou a pessoa coletiva desportiva – cf. artigo 12º), prever uma agravação da pena, em função dessa especial qualidade. Ou seja: qualquer destes especiais “agentes desportivos”, se se deixar corromper (mas não apenas; também se subornarem) é, só por força desta sua qualidade, punido com uma pena de um ano e quatro meses a dez anos e três meses de prisão (agravação de 1/3 em relação à moldura base; acrescem ainda as agravações em razão do valor do suborno, tal como sucede no setor público; as quais, obviamente, já não produzirão efeito no caso; passam a ser circunstâncias, no entanto, que o julgador tem de valorar como agravantes na determinação da pena concreta).

Devemos dizer que temos dificuldade em compreender este “valor” da atividade desportiva, ao ponto de alguns dos seus representantes serem eleitos para a punição mais “exemplar” na corrupção “ilícita”. Não sendo nós defensores do aumento de penas (pelo contrário, no âmbito da corrupção “não pública,” defendemos uma diminuição das molduras legais), cremos que o combate à corrupção é, antes de tudo, aquele dirigido à corrupção no Estado. Se a gravidade das molduras representam um sinal da relevância institucional do agente (ou da relevância da atividade), então parece que o futebol está acima do Estado.

  • José M. Damião da Cunha
  • Professor catedrático na Faculdade de Direito da Universidade Católica Portuguesa

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