De costa a costa
De costa a costa, de Norte a Sul, este Governo não vive no recanto de um livro. Este Governo toca na vida dos portugueses com a ponta dos dedos.
Escrever sobre o primeiro-ministro é politicamente um exercício em teflon. Escrever sobre a política nacional é um roteiro pelas rotas da cultura indígena parada no tempo e vestida com os saldos da Europa. Entre a Habitação e o IVA Zero vai a distância entre o improviso e a incompetência de um Governo normal. Normal dizer que sim para depois dizer que não. Normal o milagre da multiplicação das políticas. Normal uma Ministra da Habitação em silêncio e que “não pode ser criticada porque é jovem e mulher”. Uma ofensa para todos aqueles que defendem a paridade absoluta e a igualdade de género. O primeiro-ministro tem o tamanho do palco. E tanto diz “Esquerda” como “Direita” com o mesmo sorriso com que contempla a queda nas sondagens. O PS abstémico com a Maioria Absoluta não diz nada mas deve estar preocupado.
A nova política de Habitação é o novo número na cidade. Como não há tempo para pensar nem gente para pensar recorre-se a uma sebenta de restos jurídicos e sobras sociais para entreter os portugueses em crise de habitação. Mudar um País dá trabalho e exige o conhecimento estrutural da matéria. Quando não há conhecimento de causa, governa-se o País por impulso, de acordo com as sondagens, ao ritmo da agitação social. Como o conhecimento e a preparação são luxos para países ricos, governa-se pelo isolamento político de um problema e agita-se a comunicação política no sentido da solução do problema. Todas as soluções políticas do Governo são estratégias de comunicação. Em bom rigor, o Primeiro-Ministro parece o Anthony Bourdain da política portuguesa viajando pelas excentricidades de um Portugal desconhecido no deserto dos séculos. Se este Governo tivesse uma banda sonora esta seria retirada sem cortes de um qualquer western spaghetti.
Entre a Esquerda Baixa e a Direita Alta está o ministro das Finanças, um génio que é um santo e que funciona como o grande ideólogo do Governo. A ideologia dominante é a das Contas Certas. Eis uma ideologia que contém a ambiguidade dos Oráculos – quando praticada pela Direita chama-se “austeridade regressiva”; quando praticada pela Esquerda chama-se “solidariedade sustentável”. As opções políticas não são bem opções políticas, mas opções políticas derivadas do leque de oportunidades criadas pelas opções económicas.
A convergência entre a economia e a política é normal num país bem governado. Mas para este Governo do PS esta é a negação do discurso do Executivo da Frente de Esquerda, o repúdio do primado economicista face à exigência da sensibilidade social de uma governação para quem as pessoas não são números. O Primeiro-Ministro choca com a realidade e os portugueses voltam a ser súbditos do Tesouro Nacional. O Primeiro-Ministro não é o ditador das finanças nem um aventureiro político. O Primeiro-Ministro é um líder pós-ideológico mas com ideologia e uma dose de cinismo capaz de enfrentar as deficiências estruturais de um País adiado pela delicadeza da incompetência.
Aos políticos que fazem política com esta delicadeza da incompetência gostam os portugueses de chamar Estadistas. Depois de uma política marcada pela insustentável leveza do ser, o primeiro-ministro vê-se agora comparado à figura de um Estadista. A política portuguesa é assim cruel e sentimental. Mas em qualquer dos casos põe o País em circuito fechado com 3 milhões de pobres na fila das prestações sociais. Ainda não é obrigatório passear crianças esfomeadas, ventres inchados e olhares legalizados pelo desespero.
O IVA Zero é a nova maravilha fatal deste tempo Socialista. Que importa que o IVA Zero seja um passaporte para uma Poupança Zero. O que importa é que o Governo mostra iniciativa, mostra vontade, mostra capacidade para copiar medidas também tomadas na Europa, mostra ser um Governo moderno perante a modernidade da pobreza moderna. Primeiro o IVA Zero era uma aberração social e um erro económico. Agora o IVA Zero é uma plataforma social e um sucesso económico.
Depois da negação vem a salvação – o génio inventivo dos cálculos terrestres, a certeza comprovada dos resultados orçamentais, a imaginação política do núcleo doutrinário. Imagine-se que até se assina um Acordo Político entre o Governo e a Grande Distribuição, tudo com a duvidosa dignidade da reconciliação nacional e a elevação do bem-estar dos portugueses. O IVA Zero é uma espécie de desvalorização competitiva. Com o IVA Zero os supermercados são as novas lojas especiais dos tempos soviéticos em versão Ocidental e Democrática.
Veja-se a lista dos produtos a integrar na Carta Social do IVA Zero. Uma operação de larga escala com a participação do Ministério da Saúde e com o contributo da Ordem dos Nutricionistas. Em bom rigor, a lista dos produtos é a Nova Dieta Democrática, a roda dos alimentos para os portugueses ficarem mais saudáveis, mais tonificados, o que obviamente representa uma diminuição da despesa com o SNS e um contributo para o aumento da esperança de vida média democrática. De costa a costa, de Norte a Sul, este Governo não vive no recanto de um livro. Este Governo toca na vida dos portugueses com a ponta dos dedos.
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