De ícone a banalidade: Tesla e a ilusão da Democracia automóvel

Para quem ainda valoriza estética, engenharia e máquinas com alma, esta banalização do luxo automóvel é um problema. E um sinal dos tempos.

Durante anos, ter um Tesla em Portugal era uma afirmação. Representava inovação tecnológica, consciência ambiental e, sobretudo, distinção social. Não era apenas um automóvel — era símbolo de vanguarda, de luxo moderno sobre quatro rodas. Hoje, basta abrir a aplicação da Uber ou da Bolt para perceber o que se perdeu: o Tesla tornou-se banal. Democratizou-se, dirão uns; perdeu a alma, digo eu.

Nas grandes cidades, os Model 3 e Y circulam em massa ao serviço das plataformas TVDE. São ferramentas de trabalho, conduzidas por motoristas muitas vezes em condições laborais precárias, com horários longos, cheiros duvidosos e contratos frágeis. O prestígio da marca, ironicamente, facilitou essa massificação — mas isso é insustentável. Ou não? Depende do objectivo… A economia ensina-nos que bens de luxo não seguem as mesmas regras dos bens comuns: o seu valor reside também na exclusividade.

O economista Thorstein Veblen foi pioneiro ao estudar este fenómeno. No final do século XIX, cunhou o conceito de “consumo conspícuo”: bens cuja procura aumenta à medida que o seu preço sobe, precisamente porque sinalizam riqueza, sucesso e pertença a uma elite. São bens comprados não apenas pela sua utilidade, mas pelo que representam socialmente. O luxo, nesta lógica, não é acessório — é o produto. É por isso que um relógio Patek Philippe, uma carteira Hermès ou um Bentley valem o que valem. São difíceis de obter, exclusivos por natureza, e intencionalmente assim.

O Tesla, no auge, cumpria essa função: era caro, ecológico e tecnologicamente avançado — logo, para muitos, desejável. Mas com a sua proliferação nas ruas, perdeu esse halo. Tornou-se o novo Peugeot, Renault ou Dacia do século XXI: funcional, acessível, repetitivo. Uma máquina de costura Singer com rodas, feita para coser percursos sem qualquer emoção. Nada contra essas marcas francesas — são práticas, eficientes — mas pertencem a outro segmento, por exemplo quando comparadas com marcas premium alemãs como a Mercedes ou BMW. O Tesla, ao deixar-se banalizar, diluiu-se.

Hoje, muitos que compram um Tesla de €40.000-50.000 fazem-no por leasing ou crédito, muitas vezes sem capacidade real para absorver choques económicos. Confunde-se acesso temporário com posse verdadeira. É uma democratização ilusória, onde o luxo se transforma num bem indistinto e desprovido de valor simbólico. Este modelo de consumo — “tudo para todos, a prestações” — é perigoso. Cria endividamento, distorce a perceção de riqueza real e inflaciona artificialmente o mercado automóvel. O leasing automóvel generalizado é o novo subprime da classe média: uma bolha de consumo sustentada em rendimentos instáveis. Isso enfraquece famílias e corrói a função distintiva das marcas. Quando tudo é “premium”, nada o é. A história está cheia de exemplos. A Burberry enfrentou uma crise reputacional quando se tornou demasiado acessível. A Mercedes viu a sua imagem seriamente abalada quando integrou motores Renault-Nissan em modelos como o Classe A, B ou GLA. A recuperação passou por reposicionar a marca, recentrar na qualidade e revalorizar a exclusividade (com motores Mercedes). A Tesla parece ir no sentido contrário: entrega a sua imagem às frotas e incentiva uma falsa acessibilidade via financiamento fácil.

À boleia da transição energética e da ansiedade ecológica, vende-se a ideia de que “todos devem ter um Tesla” ou “todos podem ter um Tesla”. Mas um bem de luxo que todos têm… deixa de o ser. O Tesla tornou-se o uniforme da classe média urbana globalizada — um símbolo reciclado em produto de massas. É mimetismo social com ar ecológico: carneirada travestida de consciência individual. E aqui Veblen continua atual: o consumo de bens de luxo é, muitas vezes, guiado por um impulso de distinção — de se destacar da multidão. Quando esse impulso é frustrado pela massificação, a procura desloca-se para outro símbolo. É por isso que marcas verdadeiramente de luxo protegem a sua raridade como um ativo valioso.

Há também um lado regulatório que importa destacar. Os incentivos à mobilidade elétrica — subsídios, isenções fiscais, benefícios no IUC — foram bem-intencionados, mas geraram distorções. Facilitou-se o acesso a veículos como os Teslas por motoristas e empresas nas plataformas TVDE, sem grande reflexão de fundo sobre o impacto urbano. Em vez de menos carros e mais mobilidade partilhada, temos mais trânsito — agora silencioso, é certo, mas não menos caótico. E como se não bastasse, junta-se o novo “normal” pós-Covid: o “teletrabalho”, essa abstração laboral moderna, espalhou o trânsito por todas as horas do dia. Já não há horas de ponta — há dias de ponta. Ninguém está no escritório, mas todos parecem estar sempre a caminho de algo: do brunch ao cowork, do ginásio ao elétrico engarrafamento das 15h. Sozinhos, claro, dentro do seu Tesla. O trânsito não desapareceu — apenas trocou o motor a combustão por um elétrico e os antigos botões e rodinhas por tablets.

Sim, o Tesla não é o único afetado, mas é, certamente, o mais simbólico — uma espécie de Prius com esteroides: mais rápido, mais caro, mais vaidoso, mas, no fim de contas, igualmente condenado à banalidade quando massificado. O que era excecional tornou-se ordinário. E o luxo, quando comum, desaparece. A distinção social pode ser desconfortável, mas tem função económica: alimenta a inovação, sustenta cadeias de valor e mantém marcas vivas. É precisamente essa segmentação que justifica investimentos em design, engenharia e diferenciação tecnológica, criando margens que financiam investigação e asseguram emprego qualificado. Sem diferenciação, o mercado converte-se numa corrida para o fundo, onde tudo é indiferenciado, barato — e descartável.

O Tesla está numa encruzilhada: quer ser o novo Ford T do início do século XX — acessível, massificado — ou manter-se como objeto de desejo? Porque hoje, quem tem um Tesla é muitas vezes apenas um membro da classe média endividada ou alguém a conduzir o carro do patrão — que, ironicamente, pouco mais tem além disso. E isso, convenhamos, é tudo menos distinção. Mas claro que, para muitos, o carro é só um meio de transporte. Um utensílio funcional, como uma escova de dentes elétrica: carrega-se, desloca-se, cumpre-se. Muitos nem gostam de conduzir — e conduzem mal. Na verdade, uma parte significativa desses condutores nunca deveria ter recebido carta de condução. Mas para quem ainda valoriza estética, engenharia e máquinas com alma, esta banalização do luxo automóvel é um problema. E um sinal dos tempos.

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