Depois do vírus
Não sabemos ainda quantas pessoas este vírus vai matar. Muitos vão-se agarrar às certezas reconfortantes das propostas autoritárias. Mas o autoritarismo nunca foi a solução, foi o problema.
Em 1944, Hayek escreveu um livro notável chamado “O caminho da servidão” em que explica passo por passo a transformação de uma sociedade livre numa sociedade autoritária. O ano da publicação não foi um acaso: Hayek era conterrâneo de Hitler e tinha presenciado a forma como este tinha subido ao poder desde a I Guerra Mundial e como um país como a Alemanha se tinha transformado num regime autoritário às ordens de um facínora.
O processo começa com um regime de exceção criado com uma emergência nacional, naquele caso uma guerra, em que os poderes do estado são alargados para responder a essa emergência. O segundo passo é estender esses poderes para lá do período de emergência para ajudar a reconstrução. A cada passo o alargamento desses poderes vai sendo justificado com uma qualquer necessidade do momento. Ao fim de algum tempo, habituados à nova situação, as pessoas vão aos poucos deixando que lhes tirem a liberdade e cedem ao autoritarismo de forma natural. O caso da Alemanha nazi é extremo, mas a história contada no livro encaixa facilmente no crescimento de autoritarismos de todo o tipo e grau.
Portugal está a atravessar uma emergência nacional sem precedentes. Ao contrário de outros países europeus, os portugueses não têm uma memória coletiva de guerra dentro do seu país ou de reconstrução pós-guerra. Tudo isto é novo o que exponencia o medo. Quando começarem a morrer pessoas, algo inevitável a curto prazo, o medo e a irracionalidade aumentarão ainda mais.
Podemos discutir a necessidade ou a altura certa para várias medidas excecionais de emergência. Podemos, e devemos, discuti-las. Até podemos aceitar que algumas medidas ineficazes sejam implementadas apenas porque o medo se apodera de todos e fazer alguma coisa pelo menos ajuda a aliviar o sentimento de impotência. O que não podemos esquecer é que todas estas medidas se devem a uma situação de emergência e que apenas se aplicam a essa situação de emergência. No momento em que nos esquecermos disso, estaremos a escancarar as portas ao autoritarismo de estado no período subsequente.
Depois deste vírus, pode vir outro ainda mais perigoso: o vírus do autoritarismo. O vírus daqueles que utilizarão esta experiência para justificar um maior poder do Estado nas mais diversas áreas da sociedade. Aqueles que virão dizer que temos que fechar fronteiras. Aqueles que virão dizer que o estado tem que ter uma mão mais forte na economia para evitar abusos em futuras crises. Aqueles que exigirão um maior esbulho fiscal e mais limites à iniciativa privada. Muitos irão mesmo utilizar esta situação para questionar a própria democracia.
Não será a primeira vez que defensores de formas autoritárias de exercício de poder irão aproveitar crises para fazer passar as suas ideias. Muitos regimes autoritários nascem de crises e quanto maior a crise, mais autoritarismo subsequente. O medo, especialmente quando justificado, é uma das formas preferidas de políticos com tiques autoritários fazerem avançar a agenda que sempre tiveram.
Depois de passar esta situação de emergência, precisaremos de um país mais livre. Também, mas não só, porque só um país livre se consegue desenvolver suficientemente para ter recursos para combater outra ameaça deste tipo. Precisamos de pessoas a trabalhar, de empresas a investir e de reter o nosso melhor talento.
Não sabemos ainda quantas pessoas este vírus vai matar. Temos alguns indicadores do que aconteceu noutros lados e as perspectivas são péssimas. É certo que dentro de algumas semanas teremos todos muito medo, mais do que hoje. Sairemos desta experiência com algum trauma e muito receio que se volte a repetir. Muitos, com a insegurança de um medo ainda bem fresco, vão-se agarrar às certezas reconfortantes das propostas autoritárias. Mas o autoritarismo, de todos os lados do espectro político, nunca foi solução, só problema.
O autoritarismo é uma fonte de empobrecimento e, nos piores casos, pode ser tão ou mais mortal do que um vírus. Depois de vencermos este vírus, mesmo cansado teremos outra luta importante: vencer o autoritarismo. Que nessa altura estejamos cá todos para combater esse vírus da mesma forma que combatemos este: com distanciamento social em relação a todos os oportunistas autoritários. Este vírus levará muitas vidas, mas é importante que quando for derrotado não sirva também para que nos levem a liberdade.
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