Economia como pedra central de governação? Estado Central vs Municípios

Existe um bom grau de alinhamento de objetivos entre Governo Central e municípios, mas a eficácia dependerá da coordenação entre políticas macro e ações locais

Estive a ler com atenção o programa do Governo na área da economia. No capítulo dedicado à economia no Programa do XXV Governo Constitucional afirma-se “A construção de um país mais próspero e mais justo exige uma visão integrada da economia e da coesão territorial.” Mais assertiva ainda é o início do subcapítulo dedicado à economia onde se afirma: “A ambição de transformar Portugal assenta numa economia que reconhece o talento como motor do desenvolvimento e o pulsar da economia como reflexo da iniciativa dos seus protagonistas.

Significa que vamos finalmente ter um governo que coloque a Economia no centro da estratégia do Pais, assumindo que a mesma é a única base consistente para uma verdadeira coesão territorial num país que, na minha opinião, não tem interior, mas tão somente zonas de verdadeiro deserto económico?

Tendo tido responsabilidades no desenvolvimento de uma estratégia de desenvolvimento económico na cidade do Porto vejo com muitos bons olhos o que vejo escrito e que casa com o que procuramos implementar a nível local:

1. Políticas de atração de investimento

O Programa do XXV Governo enfatiza a importância de reforçar a atração de investimento, nomeadamente estrangeiro, como forma de dinamizar a economia nacional. Afirma-se que se pretende “promover uma economia que reforce a atração de investimento, em particular investimento direto estrangeiro e projetos de dimensão, ganhos de escala e inovação”. O documento sublinha ainda que um quadro regulatório eficiente e previsível (por exemplo, legislação laboral flexível) é crucial para não constituir obstáculo ao investimento externo. Em linha com isso, o Governo propõe simplificação fiscal, benefícios previsíveis para as empresas e uma forte mobilização de fundos públicos (incluindo fundos europeus) para apoiar grandes investimentos estratégicos.

A estratégia municipal Pulsar do Porto também tem tinha meta central alavancar investimentos privados e públicos. A estratégia de desenvolvimento económico Pulsar alavancava-se em 10 projetos “estruturantes”, que envolviam aproximadamente 600 milhões de euros de investimento até 2030 (cerca de metade assegurado pelo município). O plano local articulava esses projetos com as vantagens comparativas do Porto e da região Norte – por exemplo, propondo a criação de uma agência regional de promoção de investimento e pontos de contacto (como a InvestPorto) para atrair multinacionais, especialmente nas áreas tecnológicas. Enquanto o Governo trata de medidas gerais (políticas fiscais, regimes laborais e redes de diplomacia económica), a estratégia local adota uma abordagem territorial e colaborativa: inclui cooperação com outras cidades da macrorregião, prioriza setores-chave (como TIC, saúde e economia azul) e visava posicionar o Porto como “porta de entrada” da região Norte para investidores.

Folgo em ver a atração de investimento como eixo central de uma estratégia do lado da economia. O reconhecimento da necessidade de melhorar o clima para investidores (por exemplo, através de um processo legislativo previsível e incentivos claros, transparentes e não erráticos) e de canalizar recursos para projetos de escala é bem-vinda. Como lacuna, nota-se que as iniciativas nacionais são pouco personalizadas a cada região, devendo beneficiar de uma maior articulação com planos locais como a estratégia Pulsar (por exemplo, alinhando incentivos do Estado com os setores inteligentes definidos pelo Porto).

2. Políticas de retenção de talento

No plano nacional, o programa de Governo reconhece o talento como “motor do desenvolvimento” e busca reforçar a sua atração e fixação. O texto-­quadro afirma que a visão económica se sustenta numa “economia que reconhece o talento como motor do desenvolvimento” e em que o mérito e o investimento são valorizados. Entre as medidas previstas estão programas para atrair emigrantes qualificados de volta a Portugal e facilitar a vinda de profissionais estrangeiros altamente habilitados, bem como iniciativas de formação (pacto nacional para competências digitais, incentivo à literacia digital). Há, ainda, menção explícita a posicionar Portugal como “centro global de talento digital” e empreendedorismo, reforçando programas de bolsas de doutoramento e formação avançada para dotar o país de capital humano competitivo.

No Porto, a retenção de talento é alvo de uma estratégia própria, formalizada na criação de uma plataforma que designamos de TERA (Talento, Evoluir, Reter e Atrair. O objetivo do TERA é “atrair, conhecer, desenvolver e fixar talento” na cidade, potenciando a carreira dos que moram, estudam e trabalham no Porto.

Na prática, o município oferece um conjunto de serviços integrados: um Observatório do Talento que mapeia o mercado de trabalho local; consultoria de carreira gratuita para orientar jovens e profissionais sobre o mercado; workshops de empregabilidade (In & Out); iniciativas de networking e recrutamento (por exemplo, o evento anual Speed Recruitment); e um selo “Porto Skills Academy” para estimular iniciativas inovadoras de formação em competências digitais e humanas. O objetivo era responder às necessidades crescentes de talento do lado das empresas e posicionar o Porto entre as cidades de topo em talento, reforçando o ecossistema local (empresas, universidades, startups).

O Governo adota políticas macro. Por exemplo, prevê contratos plurianuais para valorizar pessoal investigador, revisita regimes de residência para emigrantes e alinha-se com programas europeus de mobilidade de cérebros. O Porto, por outro lado, implementa ações diretas no território para fixação e desenvolvimento de talentos – abordando problemas práticos como a procura de emprego e formação.

Os dois níveis convergem na valorização do talento como elemento estratégico, mas diferem no alcance. O Governo adota políticas macro. Por exemplo, prevê contratos plurianuais para valorizar pessoal investigador, revisita regimes de residência para emigrantes e alinha-se com programas europeus de mobilidade de cérebros. O Porto, por outro lado, implementa ações diretas no território para fixação e desenvolvimento de talentos – abordando problemas práticos como a procura de emprego e formação. Uma boa prática municipal é o enfoque holístico do TERA, que integra empresas, academia e cidadãos em fóruns regulares (TERA Talks) e oferece apoio personalizado aos jovens (programa Summer Opportunities para estágio profissional). Entretanto, observa-se alguma fragmentação: o município cuida da retaguarda local, enquanto o Governo não menciona explicitamente a atração de talentos para além de medidas fiscais e de imigração.

Há, pois, potencial de articulação: Por exemplo, iniciativas nacionais de ensino superior (bolsas +Talento) e de qualificação poderiam ser alinhadas com os programas de formação do Porto, maximizando o impacto conjunto. Nos pontos a melhorar diria que faltam metas concretas de retenção de talentos (governo) e de recursos estruturados adicionais para o programa TERA (município), sugerindo que a colaboração entre Estado e Municípios pudesse aprofundar-se, por exemplo, fazendo de determinados municípios, como o Porto, um polo piloto das políticas nacionais de talento; este é um exemplo concreto de trazer a coesão territorial para cima da mesa através de projetos piloto que permitam operacionalizar localmente estratégias de âmbito nacional.

3. Políticas de inovação

O programa do Governo insere a inovação no cerne da política económica. Prevê-se elevar o investimento em I&D para cerca de 3% do PIB até 2030, consolidar iniciativas como o Startup Portugal e apoiar empreendedores (regulamentos sandbox, compras públicas de inovação). Em vários pontos, o texto realça setores emergentes (IA, robótica, biotecnologia, cibersegurança, etc.) e a necessidade de difundir conhecimento entre universidades e empresas. O Governo também dirige esforços à inovação nos serviços públicos (digitalização, administração eletrónica, smart government) como parte da Estratégia Digital Nacional, e investe em clusters industriais (por exemplo, defesa, saúde, turismo) com eixos de R&D e formação.

A inovação é hoje algo que tem que estar no ADN de qualquer gestão de território, pelo que no Porto alinha-se essa preocupação ao posicionar a inovação como elemento central da sua identidade económica. A estratégia pulsar incorpora uma reflexão voltada à especialização inteligente, apostando em fatores diferenciadores de territórios, como a qualidade de vida, a sua pool de talento e as infraestruturas de Ciência & Tecnologia e de inovação. Procurou-se a consolidação de uma identidade forte do Porto, centrada na inovação, no talento, na sustentabilidade e na qualificação urbana. O documento identifica oito domínios inteligentes (TIC, saúde, cultura, mobilidade, economia azul, construção sustentável, etc.) onde a inovação deve ocorrer em rede. De notas que apesar de o TERA estar focado na gestão do talento, ele também contribui indiretamente para a inovação ao fortalecer as competências necessárias (Porto Skills Academy) e aproximar academia e empresas.

Temos, pois, no plano nacional, bem como no plano local, uma ênfase mútua na inovação como vetor de crescimento. O objetivo é que a competitividade seja baseada em conhecimento. Entretanto, há diferenças de ênfase e escala. O programa nacional atua via financiamento e regulação federal (programas nacionais de I&D, parques tecnológicos nacionais, medidas fiscais para inovação). O Porto adota uma abordagem territorializada: pretende intensificar o seu “posicionamento entre as cidades mais inovadoras”, baseando-se em diagnósticos locais (Presença de multinacionais de TIC e centros de competência) e mobilizando o seu meio científico.

O programa nacional atua via financiamento e regulação federal (programas nacionais de I&D, parques tecnológicos nacionais, medidas fiscais para inovação). O Porto adota uma abordagem territorializada: pretende intensificar o seu “posicionamento entre as cidades mais inovadoras”, baseando-se em diagnósticos locais (Presença de multinacionais de TIC e centros de competência) e mobilizando o seu meio científico.

Em termos de boas práticas, o Pulsar destaca-se por integrar a visão da cidade (colaborando com instituições locais) e investir metade dos recursos com captação de fundos europeus. Como lacuna, notam-se limites orçamentais locais: muitos incentivos à inovação são nacionais ou europeus, exigindo que o Porto alinhe seus projetos com esses programas (ex. enquadrar os 10 projetos Pulsar nos eixos do PRR). Poderia haver mais mecanismos de cooperação, como promover linhas de financiamento municipal para startups locais em consonância com metas do Estado, de modo a articular a inovação em rede local-nacional.

4. Estratégias para a economia digital

A digitalização da economia e da Administração é um eixo transversal do programa nacional. O Governo compromete-se a “implementar celeremente a já publicada Estratégia Digital Nacional (EDN)”, visando posicionar Portugal como líder europeu na transformação digital. Entre as medidas principais estão a completa digitalização de processos públicos, interoperabilidade de sistemas, uso intensivo de inteligência artificial e reforço da cibersegurança. No âmbito económico, planeja-se formar cidadãos e empresas para a “década digital”, através de iniciativas como um Pacto de Competências Digitais. A ideia geral é transformar todos os setores (saúde, educação, justiça, etc.) e o tecido empresarial (incluindo PMEs) mediante tecnologias digitais e inovação.

No Porto, a transição digital é vista tanto como meta como instrumento. A estratégia Pulsar reconhece que há uma tendência “transversal para a transformação digital” em todos os domínios de especialização. O termo “TIC e centros de serviços” aparece como um dos domínios chave (com foco em tecnologia da informação e serviços avançados). Embora não haja um programa exclusivo só para a economia digital, iniciativas como Porto Tech Hub (organização de empresas tecnológicas da cidade), Porto.for Talent (oferta de formação em TI) atendem a esse objetivo. É de destacar o projeto levado a cabo pela ENSICO na cidade. O projeto “Ensico@Porto”, desenvolvido pela associação ENSICO, tem como objetivo integrar o ensino da computação de forma obrigatória no currículo escolar, desde o 1º ciclo até ao ensino secundário, na cidade do Porto. A iniciativa visa preparar os alunos para o futuro, proporcionando-lhes competências digitais e preparando-os para o mercado de trabalho. O projeto-piloto começou com algumas escolas e expandiu-se para abranger mais de três mil alunos na cidade.

A economia digital é assim vista como determinante para a competitividade. O Governo articula isso no nível nacional (EDN, inteligência artificial, inclusão digital); o Porto traduz tal em termos práticos ao formar recursos humanos e promover empresas tecnológicas. A diferença principal é de âmbito: o Estado propõe-se reconfigurar sistemas públicos inteiros digitalmente, enquanto o município adota ações mais pontuais (workshops, selos de qualidade, eventos de recrutamento digital). Como boa prática local, destaca-se o programa de qualificação de jovens em habilidades digitais e a integração de empresas de TI em eventos culturais (como no Primavera Sound) para sensibilização do público. Em termos de lacuna, pode-se notar que o Porto não possui recursos próprios para grandes infraestruturas digitais – por isso, a articulação com iniciativas nacionais (ex. redes 5G, projetos de smart city do Estado) será crucial para não duplicar esforços e tirar partido dos investimentos centrais em conectividade e cibersegurança.

Conclusão

Enquanto o Governo defende reformas estruturais amplas – redução de burocracia, regime fiscal estável, programas nacionais de I&D e transformação digital, o Porto, por seu lado, operacionaliza essas ideias ao nível local destacando-se a abordagem colaborativa e multifacetada do Pulsar (envolvendo a sociedade civil e cofinanciando com fundos da UE), bem como o caráter abrangente do TERA, que unifica oferta de serviços de carreira, dados de mercado e eventos de networking.

A escala nacional trata de políticas uniformes para todo o país, enquanto os municípios focam-se nas necessidades da sua região. Essa diferença cria lacunas de articulação; por exemplo, programas nacionais de talento e inovação só terão pleno efeito se adaptados às realidades locais. Além disso, algumas ações podem estar incompletas em cada esfera – o governo pode subestimar as especificidades regionais, enquanto o município carece de autonomia fiscal e financeira para ampliar programas próprios.

Temos ainda desafios a superar. O enfoque geográfico difere: A escala nacional trata de políticas uniformes para todo o país, enquanto os municípios focam-se nas necessidades da sua região. Essa diferença cria lacunas de articulação; por exemplo, programas nacionais de talento e inovação só terão pleno efeito se adaptados às realidades locais. Além disso, algumas ações podem estar incompletas em cada esfera – o governo pode subestimar as especificidades regionais, enquanto o município carece de autonomia fiscal e financeira para ampliar programas próprios. O potencial de sinergia é grande: por exemplo, fazer de algumas cidades um território piloto das iniciativas nacionais de digitalização e inovação (alinhando o EDN com a modernização de serviços municipais).

Em conclusão, a análise revela que existe um bom grau de alinhamento de objetivos entre Governo Central e municípios, mas a eficácia dependerá da coordenação entre políticas macro e ações locais. Aproveitar os pontos fortes de cada abordagem – a visão estratégica e recursos do Estado, com a agilidade e especificidade dos projetos municipais – será essencial. Devem ser exploradas as articulações possíveis para que ambas as camadas de governo reforcem mutuamente as suas iniciativas. Em última análise, o desafio é integrar as iniciativas de modo coeso: garantir que a «economia que reconhece o talento como motor» seja construída simultaneamente nas políticas nacionais e nas ruas da cidade, de modo sustentável e inclusivo.

PS: Como nota, o plano de desenvolvimento estratégico do Porto (Pulsar) nunca chegou a ser implementado porque forças de bloqueio ligadas à pequena política ditaram que fosse colocada na gaveta por razões de pequenos egos, lógicas de “vanity fair” e tibieza política. Ou seja, o interesse público foi preterido face à agenda de alguns protagonistas. Espero que o próximo executivo da cidade tenha a capacidade de o concretizar!

Referências Bibliográficas

Câmara Municipal do Porto. (2024a). Estratégia PULSAR – Posicionar o Porto para Liderar no Séc. XXI. Porto: CMP. Disponível em: https://www.cm-porto.pt

Câmara Municipal do Porto. (2024b). TERA – Talento, Evoluir, Reter, Atrair. Gabinete do Vereador Ricardo Valente. Disponível em: https://tera.porto.pt

Governo de Portugal. (2025a). Programa do XXV Governo Constitucional: Visão económica e fiscal. Lisboa: Presidência do Conselho de Ministros. Disponível em: https://www.portugal.gov.pt

Governo de Portugal. (2025b). Políticas de talento, imigração qualificada e reemigração. In: Programa do XXV Governo Constitucional. Lisboa: PCM.

Governo de Portugal. (2025c). Inovação e política científica. In: Programa do XXV Governo Constitucional. Lisboa: PCM.

Governo de Portugal. (2025d). Estratégia Digital Nacional e Administração Pública. In: Programa do XXV Governo Constitucional. Lisboa: PCM.

  • Colunista convidado. Economista e professor na FEP e na PBS

Assine o ECO Premium

No momento em que a informação é mais importante do que nunca, apoie o jornalismo independente e rigoroso.

De que forma? Assine o ECO Premium e tenha acesso a notícias exclusivas, à opinião que conta, às reportagens e especiais que mostram o outro lado da história.

Esta assinatura é uma forma de apoiar o ECO e os seus jornalistas. A nossa contrapartida é o jornalismo independente, rigoroso e credível.

Comentários ({{ total }})

Economia como pedra central de governação? Estado Central vs Municípios

Respostas a {{ screenParentAuthor }} ({{ totalReplies }})

{{ noCommentsLabel }}

Ainda ninguém comentou este artigo.

Promova a discussão dando a sua opinião