Governo Delinquente

O governo deve pensar o que deve ser o país e o propósito da governação em tempos de incerteza. Mas não. Entre a democracia e o caos, o governo está envolvido numa conspiração para parar o tempo.

O governo está à beira do abismo, mas insiste em dar o passo em frente. Espera o empurrão político, a traição ideológica, o escândalo final. Sim, porque o governo já não existe enquanto entidade política ao serviço do país. A atitude do primeiro-ministro no parlamento confunde-se com a disposição de um réu em tribunal. Quem tem a “consciência tranquila” não se comporta como quem esconde um qualquer “pensamento crime”. Aliás, todos os “delinquentes” encartados têm a consciência tranquila – porque não têm consciência ou porque têm a perfeita consciência do que fazem e deixam fazer. Sem pedagogia ou tolerância, o primeiro-ministro defende-se com a demagogia e o expediente de quem é culpado e permite a culpa. Os passa-culpas são insuportáveis. Nem se percebe ao certo os seus defeitos – cobardia ou desonestidade? O passa-culpas é a maior instituição do Portugal democrático. E este governo é uma maquinação de silêncios e de mentiras.

Se este governo não fosse uma emanação da soberania da nação, a consequência de um resultado eleitoral livre e justo, poderia ser confundido como uma ditadura do executivo a tocar uma associação duvidosa. E a certeza está no dano causado aos portugueses. A certeza está no tempo perdido. A certeza está no país adiado. A certeza está na afirmação de que são “eleitos para executar o programa do PS”, quando se verifica que afinal não há programa nenhum. O programa político é o poder suportado pela impunidade de uma maioria absoluta quadrada, humilde, obediente. Cada sorriso de um membro do governo é um insulto aos portugueses.

Depois há ideia estabelecida de que o primeiro-ministro é o maior político da sua geração. Nesta afirmação está a confundir-se o tempo passado nos gabinetes ministeriais com a qualidade da performance política. A habilidade, a destreza, a retórica, representam muitos anos de vida passados no mundo vertiginoso do aparelho político. No aparelho político não existe a realidade dos portugueses, mas a realidade dos lugares na hierarquia das listas, os lugares nos gabinetes ministeriais, os lugares enfim que permitem um lugar ao sol. O talento do primeiro-ministro é o grau superlativo do aparelhismo sectário.

Nesta lógica do aparelho, a política está dividida entre “nós” e os “outros”. “Nós”, os donos da democracia, e os outros, os “populistas” de todos os “extremos” que apenas querem a destruição da ética e dos valores da república. Ninguém é dono de ninguém, mas o PS comporta-se como se fosse a consciência viva do regime, o guardião do poder, o dono da nação.

Convém salientar que no Portugal democrático os partidos de poder são os únicos mecanismos de promoção social que existem. Nos círculos fechados onde não entra a luz, a política hoje é o último refúgio dos incapazes, a primeira opção para os ambiciosos, a única via rápida para sair do subúrbio do anonimato de um administrativo das 9 às 5. Não há economia, não há empregos bem remunerados, não há criação de riqueza que permita a formação de uma classe média independente, próspera e autónoma. A classe média é uma invenção do estado e está garantida por uma lógica clientelar e pouco democrática. A carreira aberta aos talentos é uma ilusão democrática. O actual governo é o exemplo acabado do recrutamento político feito nos corredores partidários com os critérios do aparelho. Esta política democrática dá mau nome à democracia.

E o primeiro-ministro também não colabora com uma linguagem fascizante que convoca o “ovo da serpente”, mais o “vírus” do populismo, e recomenda que a oposição se “vacine” contra a doença política. Esta ideia da “contaminação” é a metáfora política que legitima a censura dos adversários políticos em nome de uma pureza exclusiva e democrática. Só que esta metáfora da “doença” política é a antecâmara de todos os fascismos. Não se defende a democracia com retórica e práticas fascistas.

Quando se analisa a Europa contemporânea, observa-se a degradação dos standards democráticos, o crescimento de uma nova barbárie, a utilização sistemática da crueldade política para humilhação dos adversários. Serão estes tempos felizes? Serão as elites democráticas demasiado complacentes? A verdade é que o mundo se torna a cada dia mais negro. A guerra está de volta ao continente europeu, a ordem liberal parece estar em transição entre a realidade e a quimera.

O que predomina no nosso tempo são as brutais realidades do retorno da geopolítica. Como cinicamente escreve Maquiavel, se a essência da política é o facto e o desejo de não ser dominado, a guerra na Ucrânia vem provar que a ordem liberal é frágil como um poema num estádio ou um cravo no cano de uma espingarda.

O governo deve pensar o país no concerto das nações. Qual o papel do estado? Qual o limite dos mercados? Como reduzir a escassez? O governo deve pensar o que deve ser o país e o propósito da governação em tempos de incerteza. Mas não. Entre a democracia e o caos, o governo está envolvido numa conspiração para parar o tempo. Mas o tempo não pára. O mundo não espera por Portugal.

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