Hey Joe, what do you know? A tragédia portuguesa resumida numa gargalhada
A audição de Berardo e as reações que se seguiram demonstraram que mesmo 10 ou mais anos depois, a lição do que se passou nos tempos antes da crise ainda está por aprender pela maioria dos políticos.
À boa maneira portuguesa o regime chegou finalmente a um consenso sobre quem é o grande responsável pelos nossos males: o (futuro ex) comendador José Berardo, ou simplesmente, Joe. No entanto, os números da tragédia financeira portuguesa são grandes demais para que o culpado seja apenas aquele que resolveu soltar uma gargalhada no parlamento. Na verdade, os principais responsáveis até já terão passado por lá mas optaram por uma prestação mais sóbria e poderão assim manter as suas condecorações.
Depois da audição de Joe na semana passada na Assembleia da República e do impacto que a sua gargalhada sarcástica teve na opinião pública, a maioria dos políticos entraram numa espécie de competição sobre quem o condena com maior veemência. Muitos tiveram já a oportunidade de lembrar que nada do que Joe contou na AR é propriamente uma novidade. Não só os factos têm mais de 10 anos (alguns remontam a 2006/2007) como na altura muitos escreveram sobre eles. Para além disso, como nos foi relembrado na audição da família Fino, Joe não foi o único a beneficiar de créditos do banco público para a compra de ações garantidos apenas pelas próprias ações.
Na verdade, a audição de Berardo e as reações que se lhe seguiram vieram demonstrar que mesmo 10 ou mais anos depois, a lição do que se passou nos tempos antes da crise ainda está por aprender pela maioria dos políticos. Ou pelo menos assim parece…
Ainda antes de 2007, a maioria dos jornalistas, políticos e opinion makers elogiavam o sistema financeiro português. Portugal passou por várias fases. Primeiro, a prioridade era manter os “centros de decisão nacionais” – como lembrou esta semana o antigo ministro Teixeira dos Santos (julgo que sem ironia…). Ainda nos anos 90, o então ministro das Finanças Sousa Franco impediu a venda do grupo Totta ao Santander.
Alguns anos depois, até tivemos um grande movimento de empresários liberais e conotados com a direita, o Compromisso Portugal, que ainda que tivesse por mote liberalizar Portugal e manter os centros de decisão por cá, terminou com os seus principais mobilizadores a venderem as empresas a concorrentes… estrangeiras. Para além disso, a Portugal Telecom e EDP foram sempre apresentadas como campeãs europeias (e quiçá mundiais) com os custos que conhecemos….
Já depois da crise financeira internacional, era comum ler que Portugal tinha um dos sistemas financeiros mais sólidos da Europa e que não se comparava com nenhum dos outros países. Primeiro a crise era apenas nos EUA, depois na Espanha, Irlanda e Grécia. Quando chegou a Portugal (primeiro ao estado e depois aos bancos) a culpa era da Grécia, da Irlanda, da Espanha, das agências de rating e dos especuladores… enfim…
E principalmente nesta última fase, Berardo era apresentado por quase todos como um brilhante empreendedor, verdadeiramente independente – que até dizia asneiras em inglês em público, vejam lá! – e que iria proteger os bancos e empresas portuguesas do grande capital estrangeiro.
Mais de 10 anos depois e ainda que a gargalhada de Berardo e os 1000 milhões de euros que a sua fundação deve à Caixa Geral de Depósitos sejam de facto chocantes, os números do que mudou no setor financeiro e na economia portuguesa são-no ainda mais. Não só o sistema financeiro português não era dos mais sólidos da Europa, como acabou por se revelar um dos piores.
No fundo, e isto não é nenhuma novidade, na última década temos estado a pagar os custos de tantas “prioridades nacionais” que não só eram erradas, como na verdade apenas serviram como cortina de fumo para beneficiar alguns, com custos para todos.
Mas indo aos números:
Desde 2007, o estado português gastou 11% do PIB com o sistema financeiro. O que compara com apenas 2% na área do euro. De facto, houve quem tivesse gasto mais como a Irlanda, Grécia ou até a Eslovénia (esta última muito devido a problemas específicos em algumas empresas públicas). Mesmo a Espanha, que teve uma bolha imobiliária em termos relativos maior do que a americana, gastou “apenas” 5% do PIB – menos de metade do que a economia portuguesa que não beneficiou do mesmo crescimento que a Espanha antes da bolha rebentar!
Custo com intervenções públicas no setor financeiro entre 2007 e 2019 (% do PIB)
Fonte: Eurostat e cálculos do autor
Até se poderia argumentar que, tal como noutros países, este esforço público foi feito também para ajudar a que os bancos limpassem os seus balanços para conceder mais crédito às empresas em melhor condição. Nada mais errado. Na verdade, o volume de crédito para empresas em Portugal caiu cerca de 30% desde 2007, o que compara com um crescimento de 5% na área do euro. Já o crédito para as famílias caiu também, ainda que menos (16%), tendo crescido 14% na área do euro. Ou seja, na prática o que foi gasto foi para pagar os erros do passado.
E o panorama no mercado de capitais é ainda mais desolador. Uma parte do crédito bancário foi substituído pela emissão de obrigações. Mas na verdade, ainda que o volume de títulos emitidos por empresas esteja praticamente em linha com o registado em 2008, está já 10% abaixo do máximo registado em 2013 (quando as maiores empresas com algum acesso ao mercado internacional substituíram o crédito bancário pelo mercado de capitais).
E, por último, o mercado de ações, se é que ainda lhe podemos dar esse nome. Depois de 2007, não só o nosso maior índice de ações passou de PSI 20 a PSI 18, como está 60% abaixo do valor do verão de 2007 (antes da crise). O Eurostoxx 50 (principal índice da área do euro) está também ainda abaixo do seu máximo de 2007, mas ainda assim com menor distância: “apenas” 20%.
O resultado económico é sabido. Desde 2007, o PIB subiu apenas 3% em Portugal, e 11% na área do euro, com todos os países a crescerem mais do que Portugal, com a exceção da Grécia e Itália. E sem financiamento e com pouca poupança, o investimento agregado só agora voltou para os valores registados antes da crise, algo que apenas se verifica também na Grécia…
Crescimento real acumulado do PIB 2017-2018 (%)
Fonte: Eurostat e cálculos do autor
Conclusão: Vamos voltar ao mesmo?
É certo que muito mudou e Portugal está agora noutra fase. Tem crescido acima da média da área euro e o crédito (e investimento) tem vindo a recuperar. Muito do que foi feito antes da crise seria praticamente impensável hoje em dia, até porque os principais bancos são regulados não a partir da Rua do Comércio, mas de Frankfurt. No entanto, este consenso em “condenar” Joe Berardo com esse grande castigo que será a retirada das condecorações esquecendo que muitos dos outros comendadores foram também responsáveis não augura nada de bom.
Ao condenar Berardo está-se a pôr uma esponja sobre todos os outros, e pior, a caricaturar algo bem sério: A captura do estado, reguladores e bancos por um grupo de empresários e políticos. Com o programa de ajustamento, com as alterações ao nível europeu e com a perceção pública de que algo teria de mudar, estávamos a andar na direção certa, mas será que agora que já há algumas melhorias vamos voltar ao mesmo? Basta retirar as condecorações a alguém apenas porque gozou com os deputados? E foi Berardo o único a gozar?
Como dizia Marx, a história repete-se primeiro como tragédia e depois como farsa. Depois da tragédia da última década chegámos agora à farsa?
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