Imunidade de grupo
Só no fim da epidemia seremos capazes de ter a informação necessária para que seja possível avaliar o que correu bem e o que correu mal,
A histeria isolacionista, que é bem diferente da necessária e racional contenção de contacto social no desenvolvimento de uma epidemia, tem levado muita gente a contestar agressivamente a utilização do que se sabe sobre imunidade de grupo nas estratégias de contenção de uma doença nova.
A imunidade de grupo não é uma estratégia velhaca inventada por políticos paranóicos que não se incomodam com a sorte dos seus concidadãos, a imunidade de grupo é um conceito básico usado tanto na epidemiologia como na conservação da natureza.
Quando eu era miúdo, o nono de dez irmãos, mal um de nós apanhava uma dessas doenças que não têm grandes riscos em criança, mas podiam ser perigosas mais tarde (rubéola, sarampo, papeira, tosse convulsa, etc.), a minha mãe juntava toda a gente, quer para optimizar a gestão – era preferível ter meia dúzia doentes ao mesmo tempo que ir tendo a mesma meia dúzia doente um a um – quer, sobretudo, para nos tornar imunes a essas doenças.
O que a minha mãe queria não era criar imunidade de grupo, era mesmo criar imunidade individual a cada um dos membros do grupo dos seus filhos.
A vacinação veio resolver isto.
A imunidade de grupo funciona sobretudo para os membros do grupo que, por qualquer razão, não têm imunidade à doença: quanto maior for a proporção do grupo que é imune, menor a probabilidade de contagiar quem não tem imunidade.
No fundo, obtém-se o que se pretende com o isolamento social: quebrar as cadeias de contágio.
Em conservação da natureza há discussões constantes entre quem entende que as epidemias dos coelhos devem ser activamente geridas através de repovoamentos com coelhos vacinados e os que entendem que isso apenas atrasa a adaptação das populações à doença, na medida em que os pais, vacinados, resistem, mas as crias, sem imunidade, acabam por manter a doença activa.
Para estes últimos mais vale que morram os que não têm resistências e os outros se vão tornando dominantes, levando à recuperação das populações de coelhos, até à epidemia seguinte, claro.
Não passa pela cabeça de ninguém que se pretendam aplicar estes princípios às pessoas, não porque estas leis da biologia não se lhes sejam aplicáveis, mas porque temos a capacidade de criar e aplicar princípios éticos que nos impedem de deixar pessoas para trás.
A discussão sobre as melhores formas de lidar com a epidemia em curso não é sobre se é melhor ou não é melhor haver imunidade de grupo, claro que é e que ela ir-se-á instalando de qualquer maneira.
A melhor opção seria haver uma vacina e criar imunidade individual, mas também de grupo para proteger os que não pudessem ser imunizados.
As vacinas nasceram, aliás, desta necessidade de limitar os riscos dos processos de imunização conhecidos na altura, no caso, do processo de variolação que consistia em infectar voluntariamente alguém para a imunizar, procurando-se que a doença tivesse um desenvolvimento menos agressivo e poupasse o paciente, o que nem sempre acontecia.
Um médico inglês, tendo notado que as leiteiras raramente contraíam varíola e sabendo que as vacas tinham uma forma da doença específica que não era fatal para as pessoas, desenvolveu uma vacina (cujo nome deriva do nome latino da vacca) que permitia infectar as pessoas o suficiente para adquirirem imunidade à varíola humana, sem o risco da variolação.
Sem uma vacina, as infecções cujos efeitos queremos limitar podem representar riscos suficientes para que não possamos simplesmente deixá-las avançar sem qualquer reacção da nossa parte.
A discussão sobre o papel da criação de imunidade de grupo num contexto como o da Covid só existe porque:
- Há quem defenda a supressão da infecção, para ganhar tempo até que haja uma vacina;
- Há quem tema que suprimir a infecção sem garantir imunidade suficiente em grupos alargados de pessoas é manter a vulnerabilidade que permitiu a eclosão do actual surto.
Nestas circunstâncias todos estão de acordo que é preciso proteger os mais frágeis e todos estão de acordo que é preciso atrasar o desenvolvimento da epidemia, tanto quanto possível e razoável face aos efeitos secundários das medidas de contenção social possam ter.
Há quem esteja convencido de que em qualquer altura se podem obter os resultados que se teriam obtido se a contenção tivesse funcionado, e por isso clama por medidas progressivamente mais graves para a economia e progressivamente menos eficazes na contenção da epidemia.
Infelizmente só no fim da epidemia seremos capazes de ter a informação necessária para que seja possível avaliar o que correu bem e o que correu mal, esperando-se que se aprenda para as próximas epidemias.
Até lá seria bom não alinhar em cenários apocalípticos e deixar de pressionar os governos para arranjarem soluções mágicas de efeitos imediatos, a reboque do medo que nos tolhe o discernimento, ou iremos pagar isso muito caro no fim da epidemia, porque a pobreza também mata.
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