Inteligência Artificial, Trabalho e Desigualdade

  • Hugo Castro Silva
  • 15 Novembro 2025

Requalificação deve ser antes que ocorra a perda efetiva de emprego. As iniciativas de requalificação não devem ser exclusivas do Estado; os empregadores têm um papel.

A chegada da inteligência artificial (IA) e das tecnologias de automação está a transformar a economia e o mercado de trabalho em Portugal. Este fenómeno pode criar grandes oportunidades, mas também traz desafios significativos. Um estudo recente para a Fundação Francisco Manuel dos Santos, no qual participei, sobre a exposição dos trabalhadores no setor privado português à IA e à automação, revela-nos que haverá vencedores e perdedores deste progresso tecnológico. O impacto económico líquido da IA pode vir a revelar-se muito positivo, mas o risco de uma distribuição desigual dos seus ganhos exige uma resposta estratégica dos decisores políticos para garantir que o progresso tecnológico seja inclusivo.

Para pensarmos sobre como a IA pode agravar a desigualdade económica, podemos considerar que as tecnologias de IA e de automação podem ter efeitos positivos no trabalho humano (aumentando a sua produtividade), ou efeitos de substituição do trabalho humano (desempenhando tarefas em vez dos humanos). A forma como a combinação dos dois efeitos afeta diferentes trabalhadores determinará os vencedores e os perdedores.

Quase 30% dos trabalhadores estão nas chamadas ‘profissões em colapso’. São profissões que têm uma alta exposição às tecnologias de automação que substituem trabalhadores humanos (por exemplo máquinas, robôs ou computadores), conjugada com uma reduzida capacidade de beneficiar da complementaridade da IA.

Comecemos pelos vencedores. O nosso estudo revela um conjunto de profissões que denominámos de “profissões em ascensão”, que representam mais de 20% do emprego em Portugal. Estas profissões têm uma grande complementaridade com os efeitos positivos da IA e pouca exposição aos efeitos de substituição. Sendo, tipicamente, profissões altamente qualificadas e que exigem competências interpessoais, analíticas, criativas e de comunicação, são aquelas que poderão vir a crescer mais no futuro e ver os seus rendimentos a aumentar consideravelmente, ao mesmo tempo que estão protegidas dos efeitos negativos da automação.

Do lado dos perdedores, o nosso estudo mostra que quase 30% dos trabalhadores estão nas chamadas “profissões em colapso”. São profissões que têm uma alta exposição às tecnologias de automação que substituem trabalhadores humanos (por exemplo máquinas, robôs ou computadores), conjugada com uma reduzida capacidade de beneficiar da complementaridade da IA. Nestas profissões encontram-se três das dez profissões mais numerosas em Portugal. Destaca-se particularmente a profissão com o maior número de pessoas no setor privado — trabalhadores relacionados com vendas — representando cerca de 170.000 empregos, mais de 5% do emprego. Estas profissões enfrentam sérios riscos de obsolescência tecnológica, o que pode trazer consequências sociais graves como baixos salários, precarização laboral e períodos longos de desemprego. O facto de algumas profissões virem a crescer por causa de sinergias com a IA e outras poderem vir a desaparecer ou a tornarem-se ainda mais precárias explica, parcialmente, como a desigualdade económica pode crescer por consequência desta revolução tecnológica.

A exposição às novas tecnologias varia não só entre profissões, mas também geograficamente, de acordo com a composição da força de trabalho de cada região. Distritos como Braga, Aveiro e Viana do Castelo têm grande concentração de empregos altamente vulneráveis à automação, devido à presença significativa de setores industriais de baixa intensidade tecnológica. Por outro lado, o distrito de Lisboa, com maior incidência em serviços intensivos em conhecimento, está muito mais protegido. Esta exposição regional desigual significa que a digitalização pode também aprofundar desequilíbrios económicos regionais já existentes.

Distritos como Braga, Aveiro e Viana do Castelo têm grande concentração de empregos altamente vulneráveis à automação, devido à presença significativa de setores industriais de baixa intensidade tecnológica. Por outro lado, o distrito de Lisboa, com maior incidência em serviços intensivos em conhecimento, está muito mais protegido.

Uma estratégia crítica para atenuar as desigualdades é a requalificação dos trabalhadores mais em risco de substituição. A aquisição de competências alinhadas com a IA permite a transição de mais trabalhadores para as profissões alavancadas pela tecnologia que são precisamente aquelas onde os rendimentos são mais elevados. Ao mesmo tempo, mais e melhores qualificações aumentam a resiliência às ameaças das tecnologias de substituição, prevenindo que estes trabalhadores caiam num ciclo de alternância entre empregos de baixos salários (e de curta duração) e períodos de desemprego (potencialmente longos). Com um número menor de empregos vulneráveis, e uma aproximação às profissões mais valorizadas, a distância entre os segmentos do mercado de trabalho é menor, reduzindo a desigualdade.

Um foco especial deve ser dado à aquisição de competências interpessoais identificadas no nosso estudo como sendo as mais complementares com a IA. Acresce que a requalificação deve ser sobretudo preventiva, ou seja, deve ser feita antes que ocorra a perda efetiva de emprego. As iniciativas de requalificação não devem ser exclusivas do Estado; os empregadores devem assumir um papel importante através de programas internos de formação e de aquisição de qualificações que podem ser incentivados através de políticas ativas do mercado de trabalho.

Mais e melhores qualificações aumentam a resiliência às ameaças das tecnologias de substituição, prevenindo que trabalhadores caiam num ciclo de alternância entre empregos de baixos salários (e de curta duração) e períodos de desemprego (potencialmente longos).

As medidas para combater a desigualdade com origem na adoção tecnológica não se esgotam na requalificação dos trabalhadores. Políticas redistributivas — incluindo impostos progressivos sobre os rendimentos e lucros empresariais — que sejam eficazes deverão continuar a ter um papel importante, mas devem ser exploradas medidas fiscais especificamente relacionadas com a IA e a automação. Ideias como “impostos sobre robôs” ou contribuições específicas para apoiar sistemas de segurança social no caso de desemprego tecnológico têm sido propostas internacionalmente. A implementação prática destas medidas é escassa (em parte devido à sua complexidade), mas continua a ser crucial estudar soluções neste espírito. Estas medidas, coordenadas com as políticas de requalificação e outras intervenções fiscais, devem ser concebidas com atenção tanto à escala nacional como regional, por forma a esbater desigualdades entre regiões.

Contudo, estas medidas não devem levantar barreiras ao potencial que a IA tem para impulsionar significativamente a inovação em Portugal. Existem vários exemplos de empresas que recorrem a ferramentas de deep learning para fazer descobertas científicas com elevado potencial de sucesso comercial que dificilmente seriam descobertas de outra forma, uma vez que esta tecnologia permite detetar combinações de conhecimento que, para os humanos, são difíceis de identificar. Também os large language models (como o ChatGPT), que democratizam o acesso à inteligência artificial, ajudam os humanos na criação de ideias inovadoras e de alta qualidade. Uma utilização mais abrangente destas tecnologias (ou seja, por mais pessoas, e em mais setores de atividade económica) pode resultar numa onda de inovação e crescimento económico sem precedentes e deve ser incentivada.

A inteligência artificial pode trazer crescimento económico, inovação, e melhoria generalizada da qualidade de vida. Mas, para que esses benefícios sejam alcançados por toda a sociedade portuguesa é essencial que haja uma abordagem estratégica, esclarecida e inclusiva.

O problema que se põe, então, é identificar como atingir um equilíbrio entre uma economia menos desigual e uma economia que cresce rapidamente com a ajuda da IA. Daron Acemoglu e Simon Johnson (vencedores do Prémio Nobel da Economia em 2024), no seu livro “Poder e Progresso”, sublinham que a direção que a inovação tecnológica toma não é inevitável nem neutra. Os autores defendem que a sociedade tenha uma palavra a dizer na escolha entre uma tecnologia centrada na complementaridade com os humanos ou uma orientada para a substituição do trabalho humano. Esta palavra pode, e deve, ser expressa através do poder político democraticamente eleito. Assim, é fundamental que os decisores políticos portugueses atribuam uma crescente importância ao impacto que a IA terá no mercado de trabalho, no crescimento económico e na desigualdade económica.

A inteligência artificial pode trazer crescimento económico, inovação, e melhoria generalizada da qualidade de vida. Mas, para que esses benefícios sejam alcançados por toda a sociedade portuguesa é essencial que haja uma abordagem estratégica, esclarecida e inclusiva. O debate sobre o papel da IA e da automação no futuro de Portugal não pode ser deixado apenas ao mercado. É um debate que exige, de forma inequívoca, a atenção prioritária dos cidadãos e dos decisores políticos.

  • Hugo Castro Silva
  • Professor Auxiliar no Instituto Superior Técnico e Investigador no CEGIST

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